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6 de setembro de 2017

Enterros


Muitas são as descrições de enterros, no Rio de Janeiro. Caracteriza-os o mesmo gosto pelas exterioridades e ostentações que se nota nas outras cerimônias religiosas. Variam, porém, largamente de acordo com a idade e a condição do morto. Quando se trata de criancinha, o enterro é considerado motivo de júbilo e organizam, então, uma procissão triunfal. Cavalos brancos, festivamente ornamentados, com níveas plumas na cabeça, puxam um coche aberto no qual vai um padre paramentado, de cabeça descoberta, levando ao colo, num ataúde aberto, o corpo da criança ricamente vestida e coberta de laços de fitas e de flores. Os portadores das tochas, se não inteiramente de branco, levam rendas prateadas nos paletós e tocheiros brancos.
Quando o funeral é de adulto, o contraste é o maior que se possa imaginar. O cortejo sai geralmente à noite. No dia anterior armam um catafalco na casa do morto. À porta colocam um reposteiro preto. Os cavalos, o carro mortuário, os portadores das tochas, vão todos vestidos de negro. O cocheiro leva dragonas pretas sobre os ombros e, na cabeça, um "chapeau de bras" com pluma ondulante. O número de tocheiros está sempre em relação com o das carruagens, ao lado das quais formam alas. Vão em geral montados, e os seus longos tocheiros negros, chamejando na escuridão, produzem efeito imponente.
Quando o féretro chega à igreja, é transferido para um pedestal alto a que chamam mausoléu, coberto de panos pretos e cercado de círios acesos. Aí fica o morto enquanto celebram as cerimônias fúnebres. O corpo é depois enterrado sob uma das lages de mármore de que o piso da igreja está repleto, ou colocado em alguma catacumba aberta nas paredes laterais do edifício.
O caixão usado no cortejo não é enterrado com o cadáver, mas conservado na igreja ou na sede da irmandade que o aluga para tais ocasiões. Quando o corpo é colocado na catacumba, atiram sobre ele cal virgem para acelerar o processo de decomposição; depois de mais ou menos um ano abrem novamente o túmulo e tiram os ossos, para limpá-los. Os parentes do morto mandam então encerrar os restos mortais em uma urna que poderá ficar na igreja ou ser removida para a casa.
Em geral, porém, as urnas ficam na igreja e as famílias levam as chaves; conta-se, porém, o caso de um homem que levou os ossos de sua mulher para o seu próprio dormitório.
Tais urnas são de tamanhos e formatos variados, mas raramente têm aparência de féretro. Algumas são grandes como mausoléus; outras, pela sua ornamentação externa, dão ideia de caixa para roupa. O lugar e as circunstâncias parecem altamente impróprios para a exibição de ornamentos, entretanto, algumas dessas urnas mortuárias são enfeitadas com brocados de ouro e prata aplicados sobre cetim e veludo, para admiração dos visitantes.
Quão diferente do "pomposo e magnificente" cerimonial fúnebre dos abastados é o enterro do pobre escravo. Nem tocheiros nem ataúde no diminuto cortejo. O corpo vai balançando numa rede cujas extremidades vão atadas a um longo pau apoiado ao ombro de seus companheiros. Esses enterros saem pela manhã, num andar cadenciado, os negros em fila, a caminho da Misericórdia. O cemitério dessa instituição resume-se em um terreno acanhado fechado por muros, no qual se vê pintada de vez em quando a figura de uma cabeça de cadáver.
Nesse recinto, abrem diariamente uma cova de sete pés quadrados. Aí enterram em promiscuidade os corpos dos que morrem no hospital durante a noite e dos escravos ou indigentes sepultados gratuitamente. Dessa forma, o terreno inteiro é escavado no decurso de um ano, mas nos anos seguintes continuam o mesmo processo.
Representando essas escavações prematuras bem como o enterramento nas igrejas sério perigo para a saúde pública, a Misericórdia comprou recentemente um vasto terreno para cemitério na Ponta do Caju, logo ao norte de São Cristóvão, para onde os cadáveres são levados por via marítima e enterrados em túmulos permanentes.

Daniel Kidder

Sr. Bastos


Essa chácara era uma propriedade agrícola em miniatura, ocupada pelo seu proprietário - o senhor de terras, como costumamos dizer - que residia junto à nossa casa. Tratava-se de um português que, à custa de trabalho e economia, havia conseguido enriquecer e, já beirando os cinquenta anos mas ainda solteirão, vivia rodeado de seus oito ou nove escravos. Era homem de preparo regular e dotado de desenvolvimento intelectual acima do comum; despendia, porém, toda a sua energia em dar serviço aos negros e evitar que se entregassem à ociosidade. Qualquer trabalho que poderia ser facilmente feito por três homens, era executado displicentemente por nove ou mais escravos.
Sua atenção se dividia entre o pedreiro, o carpinteiro, o cocheiro e os criados de dentro; mesmo assim, porém, uns atrapalhavam aos outros. Finalmente conseguiu descobrir a forma de mantê-los ocupados. Precisava levantar um muro em redor de sua chácara; não de construção precária, comum, mas um trabalho sólido, de alvenaria espessa. Para tanto comprou a necessária pedra e, ajustando um mestre de obras, conseguiu que a cada escravo fosse distribuída uma certa tarefa de longa duração. Isso parece ter proporcionado grande alívio ao Sr. Bastos, que se mostrava irreconciliável inimigo da ociosidade, apesar de nada mais fazer que dar trabalho aos outros. Levantava-se pela manhã bem cedo, mas não tendo tempo de se vestir, atirava sobre os ombros seu capote, calçava as tamancas e punha-se em atividade. Se algum serviço não estava sendo feito de conformidade com as suas ordens, o escravo faltoso recebia o competente número de chibatadas. Depois disso o almoço lhe sabia bem. Durante o resto do dia visitava e inspecionava todos os recantos de sua propriedade. Parecia ter aversão de pisar sobre solo que não fosse seu; entretanto, quando por acaso encontrava os amigos tornava-se extremamente sociável e desabafava com eles suas alegrias e tristezas numa linguagem fluente e elegante. Gostava também de leituras, mas os livros que possuía estavam de tal forma atacados pelas baratas e por outros insetos, que jamais pensava em aumentar-lhes o número. Era ávido por notícias, mas os jornais estampavam tantas tolices que não gostava de comprá-los. Costumava, porém, tomá-los por empréstimo e ficava sempre penhoradíssimo pela leitura dos diários. Certa vez cedemos-lhe um livro impresso em Lisboa, em 1833, sob o título de "Explicação das superstições, a verdade revelada; no qual se encontram as superstições da missa, dos altares privilegiados, das indulgências, o abuso das esmoladas para as almas do purgatório, as férias dos padres, etc, etc". O Sr. Bastos achou o livro muito interessante e teceu várias considerações com relação aos assuntos nele versados; acrescentou, porém, que, em outros tempos qualquer passagem do livro poderia ter custado a vida ao seu autor; mesmo em 1833 o escritor não tivera coragem de revelar sua identidade, apesar de que todo o mundo sabia que o que ele escrevera era verdade. Apesar de tudo, porém, é grande o perigo de se verberarem costumes religiosos ainda que corruptos. A religião é como um grande rio e é perigoso tentar impedir ou alterar o seu curso.

Daniel Kidder

Malhação de Judas


O Sábado de Aleluia é mais conhecido como o "Dia de Judas" devido às diversas maneiras simbólicas pelas quais o inglório patriarca sofre a vingança do povo. Os preparativos são feitos com antecedência e, a certa altura da missa, soltam-se foguetes em frente à igreja. O espoucar dos rojões indica que está sendo cantada a aleluia. Começa então, em todos os recantos da cidade, a brincadeira da molecada. Bonecos grotescos representando Judas sofrem toda espécie de tormentos. São enforcados, estrangulados, afogados, etc. Em resumo, o traidor é representado em fogos de artifício e das maneiras mais fantásticas concebíveis, cercado de dragões, demônios e diabretes que o agarram de todos os lados.
Além das cenas mais custosas e complicadas que preparam para esse dia, os garotos e os negros também fazem seus Judas, que enforcam numa esquina ou arrastam pelo pescoço, nas ruas.

Daniel Kidder

Procissões


A primeira procissão que tivemos ocasião de observar foi a de quarta-feira de cinzas. Organizada pela Ordem Terceira de São Francisco, partiu da Capela da Misericórdia, percorreu as ruas principais da cidade e entrou no Convento de Santo Antônio. Cerca de vinte ou trinta andores, carregados ao ombro pelos homens, tomaram parte no cortejo. Alguns levavam imagens isoladas, outros transportavam grupos representando passagens das Escrituras ou da história da Igreja. As vestimentas das imagens eram todas muito vistosas. Os andores sobre os quais estavam instaladas aparentavam grande peso, necessitando às vezes de quatro, seis e oito homens para carregá-los, e estes mesmos não os aguentavam por muito tempo. Precisavam revezar com outros que iam ao lado, como se costuma fazer nos enterros. As ruas ficavam apinhadas de povo, notando-se numerosos escravos que pareciam se divertir vendo seus senhores empenhados em trabalhos pesados. De fato, estes se cansavam a ponto de correr o suor sobre seus rostos, como água. As imagens passavam pelo meio da rua entre alas de homens que levavam tocheiros com velas de cera, de diversos pés de comprimento. À frente de cada grupo de imagens ia um anjo conduzido por um padre e espalhando pétalas de flores pelo trajeto.
Como talvez o leitor deseje saber que espécie de anjos eram esses que tomavam parte nas festas, devemos explicar que constituíam eles uma classe especialmente criada para em tais ocasiões servir de guarda de honra aos santos.
Meninas de oito a dez anos eram geralmente as escolhidas para saírem de anjo, sendo então paramentadas com indumentária fantástica. A ideia dessas roupas parecia ser a de imitar o corpo e as asas dos anjos, para o que as mangas levavam armações especiais sobre as quais esvoaçavam gases, fitas, rendas, ouropéis e penas de variegadas cores. Na cabeça levavam uma espécie de tiara. Os cabelos caíam em cachos, e o ar triunfal com que as crianças marchavam indicava que compreendiam perfeitamente a honra de constituírem os principais objetos de admiração.
Contrastando com a roupa e o aparato desses anjos, caminhava ao lado o escravo servil, levando sobre a cabeça uma caixa ou cesta cheia de flores para, de vez em quando, suprir a salva de prata de onde o anjo as tirava para espargir sobre o chão.
Guardas e bandas militares abriam e fechavam o cortejo. O passo era lento e medido, com paradas frequentes para proporcionar aos irmãos pequenos descansos, e ao povo oportunidade de admirar a procissão. Pouca gente parecia se emocionar com o espetáculo. Quando quisessem podiam ver nas igrejas essas mesmas imagens ou outras dos mesmos santos e, se a ideia dessas demonstrações era a de edificar o povo, poderiam adotar outras maneiras mais fáceis e proveitosas. De fato a cena apresentava pouca solenidade e essa mesma era emprestada principalmente pelos irmãos que iam suando e se estafando sob o peso dos andores; até estes, de vez em quando procuravam se estimular dando prosa uns aos outras ou gracejando, quando os rendiam os substitutos.
Quando levavam a hóstia, nessas procissões, pouca gente se ajoelhava à sua passagem, mas ninguém jamais se lembrava de obrigar os recalcitrantes a tão profunda reverência.
Nenhuma outra classe se entregava com maior devotamento a tais demonstrações religiosas que os negros, particularmente lisonjeados com a aparecimento, de vez em quando, de um santo de cor ou de uma Nossa Senhora preta. "Lá vem o meu parente", exclamou certa vez um negro velho que se achava perto de nós quando viu surgir em meio à procissão a imagem de um santo de cabelo encarapinhado e lábios grossos; e, no seu transporte de alegria, o velho exprimiu exatamente os sentimentos visados com tais expedientes.

Daniel Kidder

Entrudo


O Entrudo, que corresponde ao carnaval italiano, prolonga-se por três dias, antes da Quaresma e a ele o povo costuma se entregar com a aparente determinação de desforrar a falta de divertimentos dos quarenta dias que se seguem. Não é, porém, com confeitos que brincam durante esses dias, mas com quantidades enormes de laranjas e ovos, ou melhor, de bolas de cera trabalhadas no formato de laranjinhas e de ovos, mas cheias de água. Essas laranjinhas são preparadas em quantidades prodigiosas e expostas à venda nas lojas, antes do Entrudo. A cera de que são feitas tem resistência suficiente para que se possa atirá-las a distâncias consideráveis, mas, quando batem em alguém, estouram e soltam a água de dentro. Ao contrário do esporte que se lhe assemelha - o brinquedo das bolas de neve - esse jogo não se limita aos meninos, nas ruas, antes avassala tanto os aristocratas como os plebeus e é praticado nos salões e nos lugares públicos. Ao que parece há uma permissão tácita para se envolverem nesses folguedos todos os transeuntes ou qualquer pessoa que entre nas casas, mesmo em visita.
De fato, quem sai durante os dias de Entrudo, corre o risco de levar uma ducha e, por isso, é sempre prudente andar de guarda-chuva, pois no entusiasmo da brincadeira as laranjinhas logo se acabam e os foliões começam então a lançar mão de seringas, bacias, tigelas e, às vezes, de jarros de água, com os quais molham as vítimas até as deixarem literalmente encharcadas.
Homens e mulheres põem-se nas sacadas de onde brincam entre si e com os transeuntes. Tais eram os excessos praticados durante o Entrudo que este chegou a ser proibido por lei. Em vão, porém, os magistrados dos diversos distritos se declararam contrários a esses excessos. Os documentos oficiais que os coíbem são tão hilariantes como os próprios folguedos, pois ameaçam com grandes penas - detenção e multa para os culpados comuns e prisão com açoites para os negros - a todos os transgressores.

Daniel Kidder

5 de setembro de 2017

João de Almeida, o jesuíta


Esse personagem notável cujo verdadeiro nome parece ter sido John Martin, era inglês nascido em Londres durante o reinado de Isabel. Aos dez anos de idade fora raptado por um mercador português, possivelmente para conservá-lo na fé católica; sete anos depois esse comerciante o levou para o Brasil onde, entregue aos cuidados dos jesuítas, entrou para a Companhia.
Anchieta, seu superior, já velho e alquebrado pelos trabalhos e mortificações, sofria de repetidas vertigens. Almeida costumava então friccionar os pés do superior, pelo que mais tarde costumava dizer que qualquer virtude que suas mãos pudessem ter, provinha dos pés de Anchieta. Nenhum voluptuoso jamais inventou tantos artifícios para estimular os seus sentidos quantos Almeida imaginou para mortificá-los. Considerava seu corpo como escravo rebelde que, morando em sua casa, comendo em sua mesa e dormindo em sua cama, estava continuamente arquitetando meios de perdê-lo; por isso odiava-o, e, como medida de justiça e de legítima defesa, perseguia-o, flagelava-o e o castigava de todas as maneiras concebíveis. Para isso dispunha de seleta coleção de açoites; uns eram de couro trançado, outros de catgut, de couro em tiras e até de fios de arame. Tinha cilício de arame para os braços, coxas e pernas, sendo que um deles era atado em torno do corpo com sete cadeias; outro ao qual chamava sua jaqueta de estimação, era uma espécie de colete feito da mais áspera crina animal, tendo do lado de dentro, sete cruzes de ferro cobertas de agudas pontas, como um raspador de pêlo ou um ralador de noz-moscada. Tais eram as armaduras de probidade com que esse soldado de Cristo se equipava para as suas batalhas com o infernal inimigo. Entre os seus atos virtuosos, conta-se que jamais incomodou os mosquitos e as pulgas quando o picavam; que, por mais exercício que fizesse neste clima quente, nunca mudava de camisa mais que uma vez por semana; e que, em suas longas caminhadas, punha pedrinhas e grãos de milho nos sapatos.
A rotina de sua vida cotidiana obedecia a um programa que a si mesmo se impusera e no qual prometia não tomar alimentação alguma às segundas-feiras em honra à Santíssima Trindade e usar um de seus cilícios, conforme a disposição e a força do pobre animal - como se referia ao seu corpo - acompanhado dos açoites costumeiros, por amor, em reverência e memória da flagelação que o Salvador sofreu por nós. Às terças-feiras sua alimentação devia constituir-se apenas de pão e água, a ela sucedendo a sobremesa acima descrita, em honra e glória do Arcanjo São Miguel, seu protetor e de todos os outros anjos. Às quartas-feiras ele se permitia o excesso de seguir a regra da Companhia. Às quintas-feiras não se alimentava em honra ao Espírito Santo, ao Santíssimo Sacramento, a São Inácio de Loiola e a todos os santos e santas. Às sextas-feiras devia ter em mente que a regra da Companhia recomendava jejum e que há muito havia proscrito o vinho de suas refeições, salvo em caso de necessidade.
Aos sábados abstinha-se de todo alimento em honra à Virgem Maria e o jejum devia ser acompanhado por atos que lhe pudessem ser agradáveis; praticava, então, exercícios de severidade e orava longamente. Aos domingos, como às quartas-feiras, observava a regra da comunidade.
Como devoção particular costumava rezar três horas por dia à Santíssima Trindade e à Virgem Maria.
"Essas orações", dizia ele, "faço-as diante de um oratório imaginário, engastado em meu coração e do qual me utilizo dia e noite, onde quer que eu esteja, no mar ou na terra, no mato ou na cidade. Esse oratório é dividido em três altares: no do centro, a Santíssima Trindade; no da esquerda, a custódia com o Santíssimo Sacramento, e no da direita a Santíssima Virgem e São José, ambos segurando Nosso Senhor por uma das mãos. Aí minh'alma com toda a sua força, inteligência e vontade ajoelha-se, face contra o chão, e faz suas orações enquanto com a boca do espírito vou beijando os pés de cada um e com a do corpo pecaminoso, vou repetindo sem cessar: Jesus, Maria, José e recitando ao fim de cada jaculatória, Glória ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo e à Virgem Maria", suplemento que sempre fazia mentalmente ao Glória.
O grande tema de suas mais caras meditações consistia em recordar que tendo nascido na Inglaterra, em Londres, no centro mesmo da heresia, tinha sido por fim conduzido à vida feliz que levava.
Apesar dos tormentos e flagelos que se impunha, o padre Almeida atingiu a provecta idade de oitenta e dois anos. Quando já muito velho e alquebrado tiravam-lhe os cilícios para que não se lhe abreviassem os dias, percebiam que seu corpo perdia as forças como se o organismo se ressentisse da mudança. Os exercícios de mortificação se tinham tornado para ele tão necessários como uma pústula, sem a qual, o corpo já afeito a ela, não poderia continuar normalmente as suas funções. João de Almeida costumava pedir aos outros, pelo amor de Deus, que lhe emprestassem um açoite ou um cilício, exclamando: "De que meios disponho eu agora para propiciar ao Senhor! Que farei para me salvar!" Tais eram as obras que uma igreja corrupta sobrepunha à verdadeira fé e aos deveres do genuíno cristianismo.
Nem tal exemplo deve ser considerado caso isolado de insânia. Já em vida o padre Anchieta era reverenciado e admirado, não só pelo povo do Rio de Janeiro mas também por personalidades de destaque. Seus exageros se enquadravam no espírito da religião, e, depois de sua morte foram catalogados, para exemplo e edificação dos fieis, com a sanção dos superiores de uma Ordem que ocupava o primeiro lugar na estima do mundo católico.
Durante a enfermidade que o vitimou, o convento esteve sempre cheio de pessoas ansiosas por assistirem aos últimos momentos de um santo. Na cidade não se falava de outra coisa e os conhecidos trocavam condolências como se se tratasse de calamidade pública. Começaram logo a afluir ao convento inúmeros pedidos de objetos que tivessem pertencido ao jesuíta: pedaços de papel com sua letra, fragmentos da estamenha, cilícios, etc., e o porteiro da casa via-se em apuros para receber e entregar terços, roupas e outras coisas que os devotos enviavam para que fossem colocadas junto ao corpo do santo agonizante afim de se embeberem de virtude curativa. Durante a enfermidade, o doente foi sangrado diversas vezes, tendo sido o seu sangue carinhosamente aparado em panos que depois foram distribuídos em pedacinhos, como relíquia, aos mais íntimos do colégio.
Quando o sino anunciou a morte do jesuíta, toda a cidade se agitou como se tivessem dado alarme de uma invasão. O governador, o bispo, os magistrados, a nobreza, o clero, os religiosos das diversas ordens e todo o povo acorreram ao seu enterro. O comércio cerrou as portas e até os aleijados e doentes se fizeram transportar para assistir às cerimônias fúnebres.
Aconteceu que no mesmo dia outro cidadão qualquer também passou desta para melhor e só com grande dificuldade encontraram quem carregasse o féretro até o túmulo.

Daniel Kidder

Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro


O maior hospital da cidade e até mesmo do país é a Santa Casa de Misericórdia. O estabelecimento está localizado na praia, mesmo ao pé do Morro do Castelo e tem as suas portas constantemente abertas aos enfermos e aflitos. A administração do hospital presta a mais eficiente assistência que pode, a todos indistintamente: homens e mulheres, pretos e brancos, mouros e cristãos, não sendo necessário a quem quer que seja pedir recomendação a influentes para lá ser recebido. Pelas estatísticas da casa, vê-se que mais de cinco mil doentes são aí anualmente tratados, sendo que desses, mais de mil morrem. Contudo, as beneméritas finalidades da instituição têm sido até agora bastante dificultadas por falta de acomodações, pois os prédios em que está instalada são antigos e mal construídos. Já se acha em vias de ereção o novo hospital cuja pedra foi lançada em julho de 1840. Na Santa Casa são tratados muitos marinheiros ingleses e franceses vítimas de moléstias ou acidentes por ocasião da chegada ou durante a sua permanência no porto. De fato, poucas são as nações não representadas nas enfermarias dessa instituição. Sendo livre o ingresso às suas dependências, existe aí vasto e interessante campo para o exercício da caridade entre os doentes e moribundos, não apenas em colóquios cristãos mas também na pregação religiosa.
A ação piedosa desta verdadeira casa de misericórdia não se limita aos doentes das suas enfermarias, estende-se também às cadeias da cidade cujos sentenciados dela recebem alimentação e medicamentos.
Além do hospital gratuito a instituição mantém um asilo para enjeitados e um recolhimento para meninas órfãs. O Asilo dos Expostos é também chamado Casa da Roda em alusão ao dispositivo nela existente, no qual, da rua, depositam as crianças enjeitadas que, com meia volta do aparelho vão ter dentro do estabelecimento. Essa roda ocupa toda uma janela e gira em torno de um eixo perpendicular. É dividida em quatro setores, um dos quais está sempre aberto para o lado de fora, convidando a aproximação de todos os que forem suficientemente desalmados a ponto de desejar se desfazer de seus rebentos. Para tanto têm apenas de depositar a criança na caixa e, movimentando a roda, passá-la para o interior do prédio, seguindo, depois, seu caminho sem ser visto.
Tais instituições, tanto no Brasil como em outros países provêm de mal compreendida filantropia. Não somente oferecem elas incentivo ao afrouxamento dos costumes, mas ainda estimula a mais clamorosa das desumanidades. De três mil, seiscentas e trinta crianças abandonadas no Rio de Janeiro, durante a década que precedeu o ano de 1840, somente mil e vinte e quatro estavam ainda vivas ao findar aquele ano. No período compreendido entre 1838 e 1839, quatrocentos e quarenta e nove inocentes foram depositados na roda sendo que dentre eles seis foram encontrados mortos quando retirados da caixa. Muitos morreram no primeiro dia após o abandono e duzentos e trinta e oito faleceram pouco depois. A despeito de todos os esforços despendidos e das despesas feitas com a contratação de todas as amas que puderam encontrar, só foi possível salvar um terço dos enjeitados. Quase todos os médicos do estabelecimento que nos acompanharam em nossas visitas tinham a mesma eloquente expressão: "Isto é uma carnificina, meu amigo!"
De trinta a quarenta crianças dão entrada no Asilo, mensalmente. A que nível deve ter caído o sentimento de humanidade das inúmeras pessoas que contribuem para tão degradante espetáculo!
O fator preponderante desse estado de coisas reside no fato de muitos dos expostos serem filhos de escravas cujos senhores, não querendo ter trabalho nem fazer gastos com a criação dos negrinhos, ou precisando das mães para amas, obrigam-nas a abandoná-los na "enjeitaria" de onde, se sobreviverem, sairão libertos.
O Recolhimento das Meninas Órfãs é um estabelecimento bastante popular. As meninas provêm principalmente da Casa da Roda. Não só visa, a instituição, a proteção das meninas durante a infância, mas, ainda, providencia seu casamento e dá a cada uma delas um dote de duzentos a quatrocentos mil réis.
No dia dois de julho, data em que a Igreja Católica celebra com missas, procissões e outras cerimônias litúrgicas, a visitação de Santa Isabel à Santíssima Virgem, o Recolhimento franqueia suas portas ao público que para lá flui em quantidade; algumas pessoas levam presentes às recolhidas; rapazes vão pedir a mão de suas eleitas. Em 1840, as celebrações desse dia se revestiram de pompa desusada. Diversas órfãs se casaram. O Regente a Família Imperial assistiram às cerimônias religiosas e visitaram o Recolhimento. 

Daniel Kidder  

4 de setembro de 2017

Escravos carregadores


Os carregadores de café andam geralmente em magotes de dez ou vinte negros sob a direção de um que se intitula capitão. São em geral os latagões mais robustos dentre os africanos. Quando em serviço, raramente usam outra peça de roupa além de um calçãozinho curto; põem de lado a camisa, para não incomodar. Cada um leva na cabeça uma saca de café pesando setenta e três quilos e, quando todos estão prontos, partem num trote cadenciado que se logo se transforma em carreira.
Sendo suficiente apenas uma das mãos para equilibrar o saco, muitos deles levam, na outra, instrumentos parecidos com chocalhos de criança, que sacodem marcando o ritmo de alguma canção selvagem de suas pátrias distantes. A música tem, em elevado grau, a faculdade de espairecer o espírito dos negros, e, naturalmente que ninguém lhes pretenderia negar o direito de suavizar sua dura sorte cantando essas todas que lhes são tão caras quão desagradáveis aos ouvidos dos outros. Consta que certa vez se pretendeu proibir que os negros cantassem, para não perturbar o sossego público. Diminuiu, porém, de tal forma a sua capacidade de trabalho que a medida foi logo suspensa. Em compensação eles agora exibem livremente seus dons vocais cantando e gritando de um para outro enquanto trotam, ou apregoando os artigos que oferecem à venda. Não é fácil ao forasteiro esquecer a impressão que lhe causa o alarido confuso de centenas de vozes simultâneas. 

Daniel Kidder

29 de agosto de 2017

Ilha de Itamaracá


O Sr. Martinho era homem de cinquenta anos mais ou menos, baixo, forte e agradável, conquanto de maneiras francamente rudes. A família compunha-se da mulher, uma filha e cinco netos. A filha enviuvara um ano antes e se acolhera à casa paterna com seus filhos. Estes eram muito engraçadinhos e aparentavam inteligência acima do comum. Agradou-nos sobremaneira o fato de sermos obsequiados tanto pelos mais velhos como pelas crianças, coisa deveras admirável em se tratando de estrangeiro vindo de país distante. Depois da ceia - que constou de bolacha, manteiga e chá, do qual não nos servimos - penduraram uma rede em dois ganchos, no canto do quarto e nos deixaram entregues às nossas devoções, sinceramente gratos por termos escapado aos ricos e perigos da viagem e pela amável hospitalidade com que mais uma vez nos acolhiam em país estranho.
Era a primeira vez que dormíamos em uma dessas camas oscilantes, adotadas no Brasil, e, depois da primeira noite de descanso, aprovamo-la sem restrição. Na manhã seguinte fizemos presente à dona da casa do farnel que havíamos preparado para a viagem, o qual foi muito apreciado. O almoço foi servido tarde e à mesa sentamo-nos com o dono da casa e seu neto mais velho. As mulheres almoçaram depois, em outro cômodo, apesar de termos insistindo em que nos fizessem companhia. A mesa era uma peça alta, de aparência nobre, colocada a um canto da sala com uma extremidade e um lado encostados às paredes. A nós, reservaram a honra de sentar à outra ponta, numa das duas únicas cadeiras que se encontravam na sala e que, como mais tarde ficamos sabendo, eram de fato as duas únicas da casa. À nossa direita sentou-se o menino em um banco e sobre a mesa, sentado "à la turque", presidia o dono da casa. Essa cena repetia-se em todas as refeições.
Serviram-nos leite de cabra puro, que, com os comestíveis que havíamos trazido, constituiu excelente almoço. Ao meio dia ofereceram-nos deliciosa sobremesa de coco verde. Nosso primeiro passeio na ilha foi ao longo da praia, na maré baixa. Saímos em companhia do neto do Sr. Martinho. Numerosos objetos nos atraíram a atenção, e, à medida que caminhávamos, íamos ensinando ao garoto elementos de zoologia.
Percebemos um brigue ancorado a pouca distância da barra. Naturalmente se tratava de algum navio negreiro que ainda não tinha terminado o desembarque de sua carga humana. Esse é um dos recantos preferidos por essa espécie de traficantes, pois aí raramente são incomodados. Soubemos então que pouco tempo antes haviam descarregado duas remessas, na praia da ilha, a primeira de trezentas e cinquenta peças e a segunda de quatrocentas. Foi próximo a essa localidade que, por exceção, capturaram recentemente um brigue-escuna. Rumava para o Rio de Janeiro, mas, tenazmente perseguido por uma chalupa de guerra inglesa, o brigue-escuna aportou à ilha e descarregou cento e trinta escravos. Sabedor da ocorrência, o presidente de Pernambuco deu ordem a um brigue de guerra brasileiro para que saísse em perseguição do navio negreiro. Este foi, finalmente, aprisionado e comboiado para o porto. Tinha sido armado na Ilha do Príncipe e o que era mais extraordinário é que, tanto o capitão como os homens da tripulação, eram negros livres.

Daniel Kidder

Baleeiros de Salvador


Junto às fraldas do Morro de Santo Antônio, visitamos o principal estabelecimento ligado à indústria da pesca de baleia desse porto. Haviam apanhado um dos gigantescos cetáceos, no dia anterior, e estava sendo espostejado na praia. Outro tinha sido arpoado momentos antes, ao alcance da vista, e vinha sendo rebocado por três embarcações. O proprietário do estabelecimento mostrou-nos os aparelhos com que extrai o óleo. Informou-nos de que, em alguns casos, a qualidade do óleo é igual à do norte-americano. Conquanto fosse fácil contestar a exatidão de sua afirmativa, não estávamos dispostos a discutir. De fato, conjecturávamos que, se o óleo norte-americano não tivesse outro mérito, só o fato de ser preparado em alto mar e não nas imediações de uma cidade populosa, já constituiria ótima recomendação.
Apesar do incômodo que causa ao olfato de toda a população, a captura de uma baleia constitui acontecimento notável na Bahia. Centenas de pessoas, principalmente as de cor, acotovelavam-se na praia para assistir os estertores do monstro agonizante e conseguir um pouco de sua carne que é preparada e vendida nas ruas, pelas quitandeiras. Inúmeros suínos também se banqueteiam na carcaça do cetáceo, e quem não souber escolher a carne de porco, no mercado, durante a época da pesca, pode comprá-la com gosto de baleia.

Daniel Kidder

26 de agosto de 2017

Revolta da cemiterada


Uma das primeiras curiosidades que visitamos foi um velho cemitério, cujos muros caíam em ruínas. A necrópole havia sido organizada por uma companhia fundada especialmente para esse fim. A essa empresa fora concedido o privilégio de fazer os enterros de toda a cidade, desviando-os das igrejas. A medida era de tal modo imperiosa, principalmente no que respeitava à saúde pública, que pouca oposição encontrou de início. tendo mesmo conseguido a sanção do arcebispo. Logo, porém, que o cemitério ficou pronto, contra ele se elevou a ira popular. Reuniu-se o povo, provavelmente sob as vistas dos padres cuja fonte de renda estava a ponto de se extinguir. Quando a força armada foi chamada para abafar o movimento, confraternizou-se com a multidão, que não descansou enquanto não depredou e demoliu inteiramente o cemitério.

Daniel Kidder

Salvador


Não só devido à irregularidade do leito das vias públicas como à diferença de nível entre a cidade baixa e a alta, o uso de carruagens se torna impraticável. Nem ao menos se veem carroças ou caminhões para o transporte de carga pesada. Tudo quanto precise ser transferido de um lugar para outro, nesse porto de mar que é o segundo da América do Sul, é carregado à cabeça ou aos ombros de homens. Aí, entretanto, quase todo o transporte é feito exclusivamente aos ombros, pois que, sendo o açúcar acondicionado em caixas e o algodão em fardos, essas principais mercadorias de exportação não podem ser carregadas à cabeça como o são as sacas de café.
Por isso veem-se chusmas de negros altos, atléticos, aos pares ou em grupos de quatro ou seis, transportando a carga suspensa em grossos paus. Outros tantos ficam encostados nos madeiros, tecendo palha, deitados nos passeios, dormitando pelas esquinas e dando aos transeuntes a impressão de enormes rolos de negras serpentes, reluzindo ao sol. Os que estão cochilando têm geralmente uma sentinela encarregada de os despertar, quando procurados por algum serviço, e, ao sinal combinado, levantam-se como elefantes, com sua carga. Tal qual os carregadores de café do Rio de Janeiro, os da Bahia cantam e gritam, quando em serviço. Seu andar, porém, é sempre tardo e medido qual marcha fúnebre, comparado com o trote acelerado de seus colegas fluminenses. Há outra classe de negros que se dedica ao transporte de passageiros, numa espécie de "sedan" a que chamam cadeira.
Estafante para o branco e mesmo perigosa, é a escalada das escarpas abruptas que vão ter à cidade alta, principalmente quando os raios do sol escaldam-lhe a cabeça livremente. O transeunte não encontra ônibus, carro ou sege que o transporte. Condizente com esse estado de coisas, acha porém, em todas as esquinas ou logradouros públicos, uma fila de cadeiras fechadas com cortinas, cujos portadores, de chapéu na mão, cercam avidamente os possíveis fregueses - sem a ousadia dos cocheiros de Nova York, é verdade - mas, perguntando com insistência: "Quer cadeira, Senhor?" Depois de acomodar o passageiro numa dessas cadeiras, os portadores suspendem-na e põem-se em movimento, provavelmente tão satisfeitos por terem conseguido um passageiro quanto este pela oportunidade de se deixar carregar. Na Bahia, as famílias precisam manter uma ou duas cadeiras, com os respectivos negros, da mesma forma que em outros lugares se tem carruagens e animais. O fardamento dos portadores, a finura das cortinas e dos ornamentos da cadeira, indicam a nobreza e os recursos de cada família.

Daniel Kidder
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