Mostrando postagens com marcador Hermann Hesse. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Hermann Hesse. Mostrar todas as postagens

24 de junho de 2019

Castálicos


Preferiria não defender a reivindicação de Platão de que o erudito, ou melhor, o sábio deveria dirigir o Estado. Naquela época o mundo era mais novo. E Platão, mesmo sendo o fundador de uma espécie de Castália, estava longe de ser um castálico, mas era um aristocrata de berço, de ascendência régia. Também nós somos aristocratas e formamos uma nobreza, mas do espírito e não do sangue. Não creio que o homem conseguirá um dia criar e cultivar uma nobreza que fosse ao mesmo tempo do sangue e do espírito; seria uma aristocracia ideal, mas não passa de um sonho. Nós castálicos, embora sendo gente decente e muito inteligente, não servimos para mandar. Se tivéssemos de governar, não o faríamos com a força e a simplicidade de que o genuíno chefe necessita, e também neste tipo de atividade o nosso campo próprio e nossas preocupações específicas, o cultivo de uma vida espiritual exemplar, bem depressa seriam negligenciados. [...]
Faz-se mister para exercer o mando o gosto permanente de uma atividade voltada para fora, a paixão de identificar-se com metas e objetivos e por certo também uma certa rapidez e falta de escrúpulos na escolha dos caminhos para o êxito. São portanto propriedades que um erudito – pois não queremos designar-nos sábios – não deve ter e não tem, já que para nós a meditação é mais importante que a ação e, na escolha dos meios e dos métodos para chegar a nossos fins, aprendemos a agir o mais escrupulosa e desconfiadamente possível. Portanto, não é nosso dever governar nem fazer política.
Somos especialistas da pesquisa científica, da análise, das medições, somos os depositários e contínuos examinadores de todos os alfabetos, tabuadas e métodos, nós somos os aferidores das medidas e dos pesos espirituais. Por certo nós somos também muitas outras coisas, podemos ser talvez inovadores, descobridores, aventureiros, conquistadores e alargadores de horizontes, mas a nossa função primária e capital, em virtude da qual o povo nos conserva e recorre a nós, é a manutenção da limpidez das fontes do saber. Na política, no comércio, onde quer que seja, pode ser que signifique uma proeza e uma genialidade, de vez em quando, vender gato por lebre; conosco, porém, jamais.
Em épocas, anteriores, nos tempos agitados, assim chamados "grandes", por ocasião das guerras e revoluções, exigia-se por vezes dos intelectuais a sua politização. Isso era corrente principalmente na era folhetinesca. Figura ainda entre essas exigências, além da politização, a militarização do espírito. Assim como os sinos das igrejas eram fundidos para a fabricação de canhões e a juventude escolar ainda imberbe era convocada para suprir as tropas dizimadas, também o espírito era confiscado e empregado como instrumento bélico. [...]
Quanto mais elevada a cultura de um homem, quanto maiores os privilégios de que ele goza, tanto maiores devem ser, em caso de necessidade, os sacrifícios. Esperamos que isto seja evidente a todos os castálicos. Se, porém, estamos prontos a sacrificar o nosso bem-estar, nosso conforto, nossa vida para o povo, quando ele está em perigo, isto não significa que estejamos dispostos a sacrificar nosso próprio espírito, a tradição e moral de nossa espiritualidade aos interesses do dia, da nação e dos generais. É um covarde quem se subtrai aos atos, sacrifícios e perigos que seu povo tem de enfrentar. Mas não menos covarde e traidor é aquele que trai os princípios da vida espiritual diante dos interesses materiais, aquele que, por exemplo, está disposto a confiar os detentores do poder a decisão sobre o resultado da conta dois vezes dois! É traição sacrificar a qualquer outro interesse, mesmo ao interesse da pátria, o senso da verdade, a honestidade intelectual, a fidelidade às leis e aos métodos do espírito.
Quando, na luta dos interesses e slogans, a verdade corre perigo de tornar-se desvalorizada, deformada e violentada na mesma proporção em que o são a linguagem, as artes, o homem e todas as criações orgânicas e refinadas de uma cultura superior, então é nosso único dever resistir e salvar a verdade, digo melhor, a busca da verdade, nosso dogma mais elevado.
O erudito que, como orador, autor ou professor, cientemente diz coisas falsas, que apoia cientemente mentiras e mistificações, não somente age contra leis orgânicas fundamentais, mas também, longe de trazer ao seu povo algum proveito, a despeito de todas as aparências em contrário, causa-lhe pesado prejuízo, poluindo-lhe o a ar e contaminando-lhe a terra, os alimentos e a bebida, envenenando-lhe o pensamento e o direito, e no fundo presta auxílio a todas as potências malignas e hostis que pretendem aniquilar o próprio povo.
O castálico não deve tornar-se político. Ele deve, é certo, em caso de necessidade, sacrificar a sua pessoa, jamais porém a fidelidade ao espírito. O espírito só é benéfico e nobre na obediência à verdade. Tão logo trai a verdade, tão logo lhe perde o respeito e se torna venal e flexível aos caprichos, ele é a força diabólica em potência, é muito pior que animalesco, pois a bestialidade instintiva pelo menos ainda conserva alguma coisa da inocência da natureza.
 
Hermann Hesse

15 de agosto de 2017

Personalidade


Nem todos estão predestinados a terem a oportunidade de criar a sua própria personalidade, a maioria permanece numa cópia de um tipo de personalidade, sem nunca chegarem à experiência de se tornarem um indivíduo com identidade própria. Mas aqueles que o conseguem, inevitavelmente descobrem que a luta pela personalidade envolve o conflito com as vidas normais das pessoas comuns e os valores tradicionais e convenções burguesas que defendem. A personalidade é o produto do confronto entre duas forças opostas, o impulso de criar uma vida própria, e a insistência do mundo que nos rodeia em que nos conformemos a ele. Ninguém consegue desenvolver uma personalidade a menos que esteja mentalizado para passar por experiências revolucionárias. A extensão dessas experiências difere, claro, de pessoa para pessoa, assim como a capacidade de conduzirem uma vida que é verdadeiramente pessoal e única.

Hermann Hesse

23 de outubro de 2016

O poder do fogo



- Vem cá. Vamos praticar um pouco de filosofia, ou seja, calar a boca, deitar-nos sobre o ventre e pensar.
Acendeu um fósforo e deitou fogo ao papel e à lenha que estavam na lareira junto à qual se encontrava e que eu não advertia senão agora. A chama elevou-se, alta, e ele atiçou e alimentou o fogo com extremo cuidado. Cheguei-me para o lado dele e cravei também os olhos no fogo. Durante cerca de uma hora permanecemos em silêncio, deitados sobre o ventre, diante dos lenhos crepitantes, e o vimos arder retorcendo-se e extinguindo-se, estalando e palpitando até desvanecerem-se num ardente braseiro silencioso.
- A adoração do fogo não foi das coisas mais idiotas que se tem inventado - murmurou entre dentes o meu acompanhante.
A não ser isso, nenhum de nós pronunciou qualquer palavra. Com os olhos fitos no fogo, afundado no sonho e no silêncio, via figuras na fumaça e formas na cinza. Num momento fiquei surpreso. Meu companheiro havia atirado ao fogo um pedaço de resina, do qual surgiu uma breve chama esbelta, na qual imaginei ver o pássaro de meu desenho, com sua amarela cabeça de gavião. Na brasa surgiam dourados fios ardentes formando caprichosas redes e apareciam letras e figuras, recordações de rostos, de animais, de plantas, de vermes e serpentes. Quando despertei de minha contemplação, e voltei a vista, meu companheiro fitava a cinza ainda com fanática fixidez.
(...)
Pistórius me dera uma primeira lição enquanto estávamos ambos reclinados no chão diante da lareira de seu triste quarto de eremita. A contemplação do fogo me fizera bem, confirmara e fortificara em mim tendência que sempre trouxera em meu interior, mas que jamais buscara estimular. Pouco a pouco fui apreciando-as, fragmentariamente, com maior nitidez.
Desde criança sempre me agradava contemplar as formas estranhas da natureza, não como observador que investiga, mas abandonando-me apenas ao seu encanto peculiar, à sua profunda e complexa linguagem. As longas raízes das árvores, os veios coloridos das pedras, as manchas de óleo sobrenadando na água, as fendas dos cristais, todas as coisas desse gênero tiveram desde muito para mim um singular encanto, como também a água e o fogo, a fumaça, as nuvens, o pó, e sobretudo as luminosas máculas que via movendo-se ao fechar os olhos. Nos dias seguintes à minha visita a Pistórius tudo aquilo começou a atrair-me de novo, pois percebi que certa sensação de alegria e de força, surgida em mim após aquela tarde, uma intensificação da consciência de mim mesmo, era devida inteiramente à longa contemplação do fogo, benéfica e enriquecedora.
Às escassas afirmações amadurecidas em mim até então na demanda do verdadeiro fim da minha vida, veio agregar-se agora esta: a contemplação dessas criaturas, o abandono às formas irracionais, singulares e retorcidas da Natureza, despertam em nós um sentimento de consciência do nosso interior com a vontade que as fez nascer e acabam por parecer-nos criações próprias, obras de nosso capricho; vemos tremer e dissolver-se as fronteiras entre nós e a Natureza, e conhecemos um novo estado de ânimo em que já não sabemos se as imagens refletidas em nossa retina procedem de impressões exteriores ou interiores. Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo. Uma mesma divindade indivisível atua sobre nós e a Natureza, e se o mundo exterior desaparecesse, qualquer um de nós seria capaz de reconstituí-lo, pois a montanha e o rio, a árvore e a folha, a raiz e a flor, todas as criaturas da Natureza estão previamente criadas em nós mesmos, provêm de nossa alma, cuja essência é a eternidade, essência que escapa ao nosso conhecimento, mas que se faz sentir em nós como força amorosa e criadora.
Hermann Hesse
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...