Mostrando postagens com marcador Pedro Chagas Freitas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pedro Chagas Freitas. Mostrar todas as postagens

10 de outubro de 2017

E siga


Não existem vidas grátis. 
Tens de ir à procura de merecer a vida que tens, a vida que queres. Atira-te. Esfrangalha-te todo, se for preciso. Mas também não temas espreguiçar-te todo, vezes sem conta, se for preciso. O que é preciso é que sejas capaz de conquistar a vida. Arrebatá-la. Merecê-la. Sê credor – daqueles credores chatos, que cobram com persistência e sem misericórdia – do que és merecedor. E só do que és merecedor. Se não mereceste nunca aconteceu. Merece-te. E siga.
Não existe displicência feliz. 
A displicência mata. Muito mais do que todo o resto. A displicência mata, consome, aperta por todos os lados. O displicente deixa-se atropelar pela incapacidade de superar. Pior ainda: o displicente deixa-se atropelar pela tolerância. Tolera o que lhe acontece porque, coitadinho, tem de ser assim, porque alegadamente só pode ser assim. Alegadamente que se vá catar. Quem tolera não ama. Não podes tolerar o que te incomoda. Se te incomoda tens duas possibilidades: ou entendes o que te incomoda como parte do que amas e então tens de amar também o que te incomoda; ou então se não o entendes como parte do que amas tens de assumidamente tentar alterar o que te incomoda. Amar não é tolerar; é revolucionar, se for necessário, o que alegadamente os politicamente corretos dizem que tens de tolerar. Alegadamente que se vá catar. Tolerar é o não coisar nem sair de cima dos pobres de espírito. Não vás no engodo. Não te encolhas. A tolerância é um anticlímax. A tolerância é o oposto da paixão. Não toleres, não sejas displicente. Nunca nenhum displicente mudou a ponta de um corno no mundo. Nunca ninguém displicente soube o que era a euforia. Nenhum orgasmo é displicente. É isso o que, mais do que tudo o resto, não deves tolerar: a ausência de luta, até à ultima possibilidade, pelo orgasmo, pela euforia, pelo pico, pelo desassossego feliz e pela paz feliz. Quando te sentires capaz de ser tolerante perante a displicência foge. Foge rápido. E siga. 
Não existem humilhadores; só existem humilhados. 
Em cada humilhação há pelo menos dois seres humilhados. Quem humilha humilha-se. E avança em queda. Humilhar é avançar em queda – é a contra-humanidade. O humilhador coloca-se muito mais numa posição de escravo do que de escravizador. É escravo da sua efêmera necessidade de humilhar. E nada é mais humilhante do que um humano que procura valorização na desvalorização do outro. Humilhar humilha-te. Quando te sentires humilhado sorri, levanta a cabeça. Não percas um segundo a humilhar de volta. Nenhuma humilhação se devolve – até porque, por ser humilhação, já está devolvida por defeito. E por excesso. Repito: quando te sentires humilhado sorri. E siga. 
Não existem defeitos; existem singularidades.
As tuas singularidades e as singularidades dos outros. Esquece os que te exigem que mudes o que julgam que é mau. Exige-te, apenas, a manutenção íntegra, e intocável, do que pensas que és – e do que pensas que deves ser. O que és é uma construção objetivamente – e profundamente - tua. Não permitas interferências. Quem te vê não está a ver-te; está a ver-se através do que lhe dás. Não dividas o mundo em certo ou errado. Não dividas, sequer, o mundo. Dividir o mundo divide-te. E é isso – dividir para reinar – o que deves evitar. Comanda-te. Ordena-te. Não dividas nem te dividas. Nem sequer adiciones nem te adiciones. Se queres optar por uma operação matemática: multiplica-te. E siga. 
Não existem voos se não existirem locais de aterragem. 
Voar não consiste, apenas, em andar no ar; voar consiste, também (talvez sobretudo), na capacidade de entender quando e onde se pode levantar voo; e, mais ainda, quando e onde se pode pousar. Não queiras estar sempre em voo. O pássaro feliz não é só aquele que tem onde voar; é também aquele que tem onde pousar. Pousa. Não penses que pousar é uma seca. Não. Pousar é o outro lado da adrenalina – a adrenalina pacífica, serena. Serena quando serenar é urgente. Pousa-te sobre ti, olha-te com atenção. Percebe se está tudo em ordem com aquilo que te faz voar. Sem medo de tocar na ferida – tocar na ferida, se for feito como deve ser, é a única forma de a curar. Cura-te antes de voares. Estuda sempre que possível, ainda, os locais de aterragem. Ou então não estudes nada mas tem em ti pelo menos dez ou vinte paraquedas prontos. Se um falhar tens outro e se outro falhar tens outro. É certo que o perigo pode trazer felicidade; mas a morte, é pelo menos essa a ideia que eu tenho (contrarie-me quem já a tiver experimentado), não traz felicidade nenhuma. O voo consiste em todo o processo que te leva do chão ao ar – e é muito mais do que somente andar no ar. Pensa nisso. Sente isso. E siga.
 
Pedro Chagas Freitas

A diferença entre ir vivendo ou ir morrendo


Intragável é estar parado. Não mudar. Aguentar. Sobreviver. Permanecer. Mesmo que seja pouco, mesmo que seja insuficiente. Manter tudo como está apenas para não correr o risco de ficar pior. Intragável é não perdoar, não ilibar. E só criticar, só apontar, só atacar. E não criar, não refazer, não imaginar. Intragável é não acreditar. Intragável é o que não é maravilhoso, o que não é delicioso, o que não é fantástico, monumental, abençoado, miraculoso, espantoso. Intragável é acordar para o dia a recusar o dia, a não querer o dia, a não apetecer o dia, a não pensar nas mil e uma maneiras de o tornar inesquecível. Deixar estar. Não mexer, não querer a ferida se for através da ferida que se chega à cura. Ser cauteloso, prevenido. Intragável é o que não é exagerado, o que não é desproporcionado, o que não parece incomportável. Se não parece incomportável, é insuportável. Não quero. Não admito. Não me admito. Intragável é repetir. Hoje como réplica exata de ontem e como réplica exata de amanhã. As mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos atos, os mesmos movimentos. Sempre igual. Sempre o mesmo. Intragável é continuar por continuar, andar por andar, viver por viver. intragável é o normal, o regular. O que nunca matou ninguém mas que também nunca mudou a vida de alguém. O que não mexe nas entranhas. O texto que não revolve, a decisão que não transforma, o beijo que não arrepia, o sexo que não faz gemer, gritar, saltar. Intragável é não estar apaixonado. Por uma mulher, por um homem, por um gato, por um cão, por um cheiro, por um sol, por uma casa, por uma pele, por um sabor, por um sonho, por um trabalho, por um caminho, por um desejo, por um pecado. Apaixonado. Como um louco. Apaixonado. Inconsequentemente, desvairadamente. Sem parar. Apaixonado. Com todas as veias à procura da paixão, com todo o corpo à procura do prazer. Intragável é o que não é extraordinário. E as coisas extraordinárias não exigem atos extraordinários. As coisas extraordinárias só pedem momentos fáceis. Tão ordinários como aconchegar um cobertor, partilhar uma sobremesa, dar um mergulho no mar, roubar laranjas da árvore do vizinho, passar a tarde a contar anedotas, ouvir as histórias dos pais, ir ao parque com os filhos, partilhar a mesa com os amigos. As coisas extraordinárias não te exigem nada de extraordinário. E é precisamente por isso que são extraordinárias. Como as pessoas extraordinárias. Ah, as pessoas extraordinárias. Sou viciado em pessoas extraordinárias. Nas que conseguem feitos incríveis. Como fazerem-me feliz, por exemplo. A minha mulher é extraordinária. Tão linda que nem se diz. E ama-me. Como me ama. Como me quer. Como a quero. E todos os dias é mais extraordinária. Ai de mim se não fosse. E o mais difícil é manter a paixão. Evitar o intragável. O intragável replicar, o intragável vamos andando, o intragável vai-se aguentando. O intragável gerúndio. Ir vivendo é o mesmo que ir morrendo. Intragável é o normal. Eu exijo o extraordinário. E todos os que amo são extraordinários. Sou tão feliz, meu Deus. Tão feliz. Mesmo quando choro, mesmo quando dói, mesmo quando custa, mesmo quando parece tão pouco isto tudo que sou, isto tudo que vivo, isto tudo que preciso. Sou tão feliz. É tão extraordinário sentir assim, querer assim, existir assim. Até ao final das vísceras, até ao fundo dos ossos. Intragável é não sofrer, não custar. Intragável é o que não é demais. E só o que não é demais é erro. Intragável é não errar, disso estou certo. Mas mais intragável é não amar. Amo-te excessivamente, desculpa. Mas intragável mesmo, não sei se te disse, é não amar. 
 
Pedro Chagas Freitas

20 de julho de 2017

No teu colo


No teu colo cabem todos os meus medos.
E se Deus existir, é a calma do teus ombros, o sossego divino que vai do teu pescoço ao teu peito. E eu ali, tão pequeno que nem meço os centímetros que tenho, e ainda assim tão grande que nem o céu teria espaço para me guardar assim. Somos criaturas para além do mundo, pares únicos de uma viagem que nem o final dos corpos conseguirá parar.
Até o pior da vida se acalma quando estou nos teus olhos.
Há pessoas más, mãe. Pessoas que não imaginam o que é resistir por dentro deste corpo, por trás destes ossos, sob os escombros de uma idade por descobrir. Há pessoas que não sabem que sou uma criança com medo como todas as crianças (uma pessoa com medo como todas as pessoas: os adultos também têm medo, não têm, mãe?, toda a gente tem medo, não tem, mãe?), e ontem um adulto disse-me para crescer e aparecer, e uma criança menos criança do que eu agarrou-me pelos cabelos e atirou-me ao chão, a escola toda a olhar e a rir, e o adulto a dizer "cresce e aparece" e a criança a dizer "toma lá que é para aprenderes".
Ninguém sabe o tamanho de uma criança.
E doeu tanto, mãe. A escola toda a rir-se dos meus cabelos com sangue, das palavras cada vez piores ("a ver se este filho da puta aprende de uma vez por todas a não ser diferente dos outros todos"), e naquele momento eu percebi, percebi que afinal toda a estupidez tem a mesma idade, todos os homens e todas as mulheres agem da mesma maneira por mais que os corpos cresçam ou deixem de crescer; chama-se escola ao lugar para onde vou todos os dias, mas bem que se podia chamar mundo – porque é lá que toda a sociedade existe por dentro como existe por fora, num coro obediente a uma multidão domesticada.
Nenhuma pessoa sabe o que é a liberdade.
E depois vieste tu, mãe. Tu e o teu olhar, as tuas palavras ("amo-te, meu amor; amo-te e ninguém vai mudar isso"), o teu colo (já te disse que no teu colo nem o diabo consegue entrar?), e parece que todo o meu corpo se ergue, toda a minha vida está pronta para mais um adulto mau, para mais uma criança má. Chegas tu e os teus olhos e o teu colo e amanhã é um novo dia. Tudo na vida se resume a acreditar que amanhã é um novo dia.
Se Deus existir chama-se Tu.

Pedro Chagas Freitas

18 de julho de 2017

A forma como me amas, mãe


Há qualquer coisa de Deus na forma como me amas, mãe.
As pessoas não são tão grandes como tu, as pessoas não aguentam tanto a vida como tu. As pessoas choram, as pessoas sofrem, as pessoas passam pela vida à procura da melhor maneira de viver. Mas tu amas-me, mãe. Tu amas-me assim, sem condições, e parece que quando me amas nem sequer existes. Apenas ficas ali, a ver-me existir, e é assim que descobres e me ensinas que a vida se resume a ver quem amas viver.
Há qualquer coisa de impossível na forma como me amas, mãe.
O possível teria de exigir que parasses quando te dói, que parasses quando o mundo, filho da puta do mundo, te obriga a inventares novas maneiras de me dares tudo o que eu preciso. O possível iria dizer-te que não, que uma só pessoa, tão pequena e tão grande como tu, não pode suportar todo o peso de duas vidas. E tu ainda aí estás, tão forte como só tu, tão impossível como só tu, a sorrir quando me vês de caderno na mão a dizer que sou o melhor aluno da turma. É claro que é bom ser bom aluno, mas o meu maior orgulho é ser filho da mãe mais impossível do mundo.
Há qualquer coisa de genial na forma como me amas, mãe.
As pessoas não inventam o tempo como tu, as pessoas não conseguem entender qual é a equação que permite estar sempre onde tem de se estar, as pessoas chegam atrasadas, as pessoas falham as responsabilidades, as pessoas por vezes esquecem-se do que têm de fazer, as pessoas não conseguem fazer com que metade do que precisariam para viver chegue para viverem sem nada lhes faltar. E tu consegues o milagre da multiplicação dos pães e dos corpos, estás no lugar exato onde te preciso na hora exata onde te preciso com as palavras exatas de que preciso, a falares-me de como é importante acreditar que sabemos tudo mesmo que seja importante acreditar que não sabemos nada, e eu ouço-te e percebo que o segredo da tua existência é saberes que só o amor derrota a matemática, e que número nenhum está à altura de quando me abraças.
Há qualquer coisa de eu todo na forma como me amas, mãe.
E quando me perguntarem que idade tem a minha mãe direi apenas que para sempre.

Pedro Chagas Freitas
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...