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29 de outubro de 2016

Ananás e jabuticaba


As sutilezas, às vezes bastante arrebicadas, de que se socorre Frei Antônio do Rosário para dar valor demonstrativo às suas preferências, não dissimulam facilmente estas, assim como em outros casos não consegue ele esconder a aversão que lhe produzem determinadas frutas. A propósito de uma delas, objeto de sua particular malevolência, chega a exclamar: "De Jabuticabas livre Deos aos Pastores do rebanho de Christo; são como uvas ferreais, tem raízes fora da terra". E a razão alegada dessa incompatibilidade vinha de que, sendo a cobiça raiz de todos os males, e sendo tão públicas nas jabuticabeiras e tão notadas as suas raízes, só poderia isso representar interesses demasiados e insaciáveis cobiças. Razão nitidamente barroca, no velhíssimo sentido, pelo capcioso do argumento, e também no outro, pela ideia implícita de que a dissimulação pode ser proveitosa, e porventura virtuosa.
Essa dissimulação assim valorizada, segundo o preceito de Frei Heitor Pinto, de que "há verdades que se não hão de dizer", e outras que, sendo mister dizê-las, se querem bem cosidas, "porque uma verdade crua não há estômago de ema que a esmoa", decorre, por sua vez, da soberana importância atribuída às formas mais ostensivas da piedade, oração vocal, devoções flagrantes, obras visíveis ou até vistosas, em vivo contraste com a religião "intimista" das seitas protestantes. Não é por acaso se em Frei Antônio, tão preso, como bom capucho, aos ideais da reforma católica, o pendor para o figurativo e o concreto se harmonizava bem com a devoção do rosário, que, renovada e revigorada sob Pio V (1569), ganharia singular relevo na era do barroco.
E não foi por outro motivo que pretendeu o engenhoso frade enlaçar nesse pomar simbólico à devoção do Santíssimo Rosário de Maria a fruta de sua devoção. Ainda que hoje nos deva parecer bem embotado, esse tipo de "agudeza" que lhe permitiu jungi-las uma à outra não era então muito malquisto ou tido como delituoso. Porque havia de ser o ananás, e não outra fruta do Brasil, a verdadeira metáfora do rosário? Já o dizia o nome, responde Frei Antônio, e aqui vem o jogo de palavras, isto é, a "agudeza": Ananás vale o mesmo que "Anna Nascitur". Nasceu de Sant'Ana a Mãe de Deus. Ana quer dizer graça, e cento e cinquenta vezes se nomeia no rosário a filha de Ana, cheia de graça. Se os nomes são sinais das naturezas que os têm, o ananás é o fruto que melhor significa a Senhora do Rosário, pois que contém a origem da sua, cheia de graça, de que está cheio o rosário. E se lhe objetassem que em "Anna nascitur" há mais letras do que em ananás, não teria dúvida em replicar, com argumentos, que isso não tem importância e nem tira a significação do mistério. Também o nome Pernambuco, por exemplo, provém de Paranabuca, pois assim diziam os índios, e só foi mudado pela corrupção do tempo.

Sérgio Buarque de Holanda

Amazonas


Fez Orellana ir a sua presença um índio aprisionado dias antes, pois já se julgava em condições de entendê-lo e fazer-se dele entender, graças a um vocabulário, elaborado não se sabe como. E as respostas dadas às indagações, que versaram, antes de tudo, segundo se poderia esperar, sobre as denodadas mulheres, foram naturalmente uma confirmação cabal de tudo quanto queriam acreditar o capitão e seus companheiros.
Souberam, assim, que as amazonas existiam realmente, e que sua terra ficava a quatro ou cinco jornadas da costa do rio, embora sujeitassem muitos povos vizinhos; o próprio chefe a quem obedecia o dito índio subordinava-se a elas. Ao perguntar-lhe Orellana se as casas onde moravam eram de palha, retrucou-lhe o informante, homem "de muita razão e muito bom", que eram de pedra e tinham portas. Disse mais, que suas povoações - setenta, ao menos, que tantas conhecia ele pelos nomes e em algumas tinha estado - se comunicavam entre si por meio de corredores com muros dos dois lados, que nesses muros havia portas, de espaço em espaço, onde se postavam guardas, com a incumbência de cobrar direito de quem entrasse.
À pergunta sobre se as mesmas amazonas eram casadas e tinham maridos, respondeu o índio negativamente, e acrescentou que elas participavam com homens em certas épocas. Esses homens, dissera-lhes, vão de uma província confinante com a sua, pertencente a um senhor poderoso, e são de cor branca, se bem que não tenham barbas. Quando apetece às amazonas comunicar-se com eles, fazem-nos ir às suas casas e deixam-nos lá ficar algum tempo. Não pôde apurar o capitão, porém, se os homens iam de sua livre vontade ou por guerra, mas conseguiu entender que os filhos machos, se os tinham, tratavam elas de matá-los ou enviá-los aos pais, só guardando consigo as mulheres, que criavam com grande regozijo. Sujeitavam-se todas ao governo de uma senhora principal, chamada Coroni ou Conhori.
Outra notícia que receberam do informante índio, e que muito os teria confortado, foi a da "grandíssima" riqueza em ouro que havia nas mesmas terras, tanto que de ouro era todo o serviço nas casas das mulheres principais. Na cidade onde tinha sua residência a Coroni existiam cinco "casas do sol", com seus ídolos de ouro e prata, representando figuras femininas. Essas casas eram revestidas, até o meio das paredes, de chapas de prata. De prata, e unidos às mesmas chapas, eram também os bancos onde se sentavam todas para as suas borracheiras. Os tetos das "casas do sol" ou adoratórios eram forrados de penas de papagaio multicoloridas.
As mulheres andavam ordinariamente vestidas de lã, que havia ali "ovelhas" do Peru, ou lhamas, em abundância, e tinham os seus vestidos recobertos de muito ouro. Segundo cuidaram entender ainda os espanhóis, havia também camelos, além de uns bichos corpulentos e munidos de tromba: estes não seriam porém numerosos.
Graças a tais informações, que lisonjeavam de uma parte a imaginação destemperada dos conquistadores, e de outra, a sua cobiça dos bens terrenos, achava-se firmado sobre fundamentos duradouros o mito das amazonas americanas. Em muitos pontos a descrição de Carvajal não é puramente imaginária, e coincide notavelmente, em verdade, com o que ele e seus companheiros teriam podido ver no Peru.
Assim é que na relação de Francisco de Xerez, impressa pela primeira vez em 1534, isto é, seis anos, ou pouco mais, antes da expedição de Orellana, mencionam-se expressamente as "casas do sol", existentes em toda aquela província e que o autor também denomina mesquitas. "Esta casa", escreve de uma delas, "dicen que es del sol, porque en cada pueblo hacen sus mesquitas al sol". Algumas eram de pedra, e pelo menos a do Cuzco velho aparece chapeada não só de prata como de ouro. Do largo emprego ali das penas de papagaio pode dar ideia a descrição, feita pelo cronista, da carruagem de Atahualpa: "una litiera aforrada de plumas de papagayo de muchos colores y guarnecida de oro y plata". Dos caminhos diz tamabém Xerez que eram cercados de taipa dos dois lados e em alguns lugares havia a casa do guarda, encarregado de arrecadar a portagem. Nenhum viajante pode entrar ou sair por outro caminho, levando carga, senão por aquele onde haja guarda, e isso sob pena de morte. Os serviços de prata e ouro seriam frequentes entre a gente principal, e um embaixador mandado por Atahualpa a Francisco Pizarro levava cinco ou seis vasos de ouro fino, onde bebeu e deu de beber aos espanhóis.
 
Sérgio Buarque de Holanda

28 de outubro de 2016

Peste dos mares


Sobre o escorbuto, essa peste do mar tanto quanto dos desertos e regiões gélidas, onde não crescia erva verde, a doença "crua e feya" de que falara o poeta e que, sobretudo na dilatada caneira da Índia, mais dilatada que as de Guiné e Brasil, chegava a condenar à morte nada menos do que a quarta ou terça partes dos navegantes, segundo valioso depoimento quinhentista, mostrara a experiência constante que os enfermos, depois de desembarcados, recobravam prontamente a saúde em muitos casos. Escrevendo de Santa Cruz de Cochim a Piero Vettori de Florença em janeiro de 1585, são estas, com efeito, as palavras de Sassetti: "Chegam de Portugal todos os anos dois mil e quinhentos e três mil homens ou rapazes, da gente mais perdida que por lá se acha: desses é jogada ao mar a quarta ou terça parte, por vezes até a metade".
O próprio Sassetti apresentara, em sua viagem, alguns dos sintomas da doença comum àquela carreira. Em carta dirigida a Francesco Valori, de dezembro de 1583, a primeira ao que se saiba escrita após sua chegada à Índia, informava ele que em um só dia adoeceram a bordo cento e sessenta pessoas, acrescentando que, nos enfermos, à inchação desmedida das gengivas, que haveriam de ser cortadas para o paciente poder fechar a boca, com o que desprendiam um cheiro insuportável, seguia-se uma inflamação dos joelhos e dos membros inferiores. Por fim sobrevinha fortíssima dor no peito que, embora sem proibir a respiração, punha termo à vida do paciente, que se extinguia "como a luz num candeeiro sem óleo". Contra esse terrível mal, a que se teriam familiarizado, provavelmente desde cedo, os mareantes portugueses, sobretudo depois que, abandonando a navegação à vista da terra, passaram a engolfar-se no pego do mar, a medicina do tempo, ignorante de sua etiologia e terapêutica, socorria-se geralmente de um ou outro paliativo de eficácia muitas vezes duvidosa.
João de Barros, escrevendo em sua primeira "Década" da Ásia acerca da enfermidade que da armada de Vasco da Gama no caminho de Mombaça, e que na sua maior parte foi de "herisipolas e de lhes crescer tanto a carne das gengivas, que quase não cabia na boca aos homens, e assim como crescia apodrecia, e cortavam nela como em carne morta, cousa mui piadosa de ver", observa como se conheceu depois proceder tudo isso das carnes, peixes salgados e biscoito apodrecido numa viagem de dezoito meses. Outros não hesitariam em fazer proceder a doença dos ares poluídos e infeccionados que se formariam no alto mar ou mesmo, por certas épocas, em lugares de terra firme.
É significativo o fato de um dos mais conhecidos historiadores modernos das Cruzadas ter ainda falado em "miasmas" - o vocábulo que durante tantos séculos servira de espalhado a navegantes e guerreiros -, no qual alude ao mal que, em 1250, invadiu os acampamentos de tropas de São Luís, rei de França, diante dos muros de Masourah, precipitando a derrota e prisão do soberano, bem assim como o malogro completo da Terceira Cruzada, embora os textos mais autorizados da época não pareçam permitir dúvidas sobre a diagnose de tão nefasto mal.
Há certa dose de injustiça, talvez, na afirmação de um notável conhecedor da história da conquista e do descobrimento da América pelos europeus, de que os portugueses, tanto quanto os espanhóis, se mostraram de todo inermes contra essa enfermidade, ao passo que os franceses no Canadá, desde a segunda viagem de Cartier, e os ingleses, desde os dias de Hudson, Baffin e Bylot, disporiam sempre de recursos apropriados para enfrentá-lo decisivamente. O fato é que bem antes de Cartier e, sobretudo, daqueles navegantes ingleses do século XVII, os portugueses, ao contrário do que pretende esse autor, tinham podido conhecer e utilizar a eficácia de determinados vegetais, mormente dos frutos das chamadas "árvores de espinho", em seu tratamento.
Em realidade, desde a primeira viagem de Vasco da Gama ao Oriente, se não antes, tinham podido ser verificadas e aproveitadas as virtudes antiescorbúticas desses frutos. O redator anônimo do roteiro da memorável navegação, que só se publicou em 1838, não descreve apenas o mal, que já à altura da foz do Zambeze principiara a perseguir os tripulantes, de maneira que lhes "inchavam os pés e as mãos, e lhes cresciam gengivas tanto sobre os dentes que os homens não podiam comer, mas ainda o bom modo de combatê-lo. Ao chegarem naus a Mombaça, levam-lhe os indígenas muitas laranjas "muito boas, melhores que as de Portugal". Em seguida refere, é certo, como "quiz Deus, por sua misericórdia" que, ao aportarem naquela cidade, "todo los doentes que traziamos foram sãos, porque esta terra é de muitos bons ares", o que parece excluir o bom efeito das frutas nessa recuperação.
Ao regressarem, porém, como as calmarias e os ventos contrários tivessem retardado de quase três meses a travessia do Índico, voltou a gente a adoecer das gengivas, que lhes cresciam sobre os dentes de tal maneira que já não podiam comer, e também "lhes inchavam as pernas, e grandes outros inchaços pelo corpo, de guisa que lavraram um homem tanto ate que morria sem ter outra nenhuma doença. Da qual nos morreram em o dito tempo trinta homens, afora outros tantos que já eram mortos. E os que navegavam em cada nau seriam sete ou oito homens, e esses não eram ainda sãos como haviam de ser. Do que vos afirmo que se nos mais durara aquele tempo quinze dias, andáramos por esse mar através; que não houvera ali quem navegara os navios". E dessa vez, para atender à vontade dos doentes, Vasco da Gama, logo à chegada de Melinde, fez-lhes dar laranjas, sem todavia alcançar o mesmo resultado.
O texto do roteiro diz, efetivamente, que o capitão mandou um homem a terra, para "ao outro dia trazer laranjas, que muito desejavam os doentes que trazíamos; como de feito as trouxe logo, com outras muitas frutas, posto que não aproveitaram aos doentes, que a terra os apalpou em tal maneira que aqui se nos finaram muitos". A circunstância de desejarem os enfermos daquelas frutas e a observação de que "não aproveitaram" dessa vez são indícios de que já seria conhecido dos marinheiros o valor antiescorbútico das laranjas. Quando menos, teriam aprendido a conhecê-lo na viagem de ida, em consequência dos bons resultados obtidos em Mombaça, ou através de informações de pilotos árabes como o Canaca, habituados tradicionalmente à travessia do Índico. O não ter aproveitado o remédio dessa vez prende-se, conforme um moderno pesquisador, ao maior adiantamento do mal e ainda ao ser este recidivo, de sorte que estaria comprometida a capacidade de resistência das vítimas. Só depois de dobrado o Cabo de Boa Esperança começaria a maior parte da gente a convalescer e poder servir na mareagem, pois tamanho fora o desbarato da equipagem durante a travessia do golfão que se chegara a pensar em retroceder à Índia.
Se a eficácia do uso da laranja no combate ao escorbuto não parecesse todavia certificada pela experiência alcançada nessa primeira viagem marítima de Portugal ao Oriente bastaria, para tanto, a segunda, precisamente a de Pedro Álvares Cabral. Um dos documentos conhecidos acerca de sua derrota, a relação do Piloto Anônimo, de que se ignora até hoje o texto original, refere que o rei de Melinde, quando lá chegou a armada, mandou visitar o comandante e levar a bordo "muitos capados e galinhas, patos, limões e laranjas, as melhores do mundo". E acrescenta textualmente: "em nossos navios tínhamos alguns doentes da boca, e com aquelas laranjas ficaram sãos". O número escasso de mortos em resultado do escorbuto entre a equipagem de Cabral - três ao todo, segundo parece - destoa do descalabro que representou a incidência do mal em navegações ulteriores dos portugueses.
(...)
Naquele mesmo ano de 1593, em que escrevia suas impressões de bordo, pudera Richard Hawkins certificar-se pessoalmente de como era bem fundada sua confiança no poder curativo da laranja e do limão. Essa certeza ele a poderia ter obtido justamente na costa brasileira onde, assolada a gente de sua expedição pelo escorbuto, a tal ponto que em três navios que a compunham mal se contariam vinte e quatro pessoas inteiramente sãs, decidira ancorar na barra de Vitória do Espírito Santo, esperando obter ali agasalho, a fim de poderem restabelecer-se os seus homens.
Em resposta à carta que escreveu ao governador, provavelmente o Capitão Miguel de Azevedo, recebeu deste uma comunicação, bastante cortês (sobretudo quando se considere que partia de quem fora vítima um ano antes, do ataque, aliás malogrado, de outro inglês, Cavendish), que o impossibilitava no entanto de realizar aqueles desígnios. Invocando as determinações expressas de seu soberano para que não tolerasse comércio algum com súditos ingleses e nem desse abrigo e refresco aos seus navios, temperava sua formal negativa com um pedido de desculpas. E dava o prazo de três dias, no máximo, para que as três embarcações largassem a barra: essa mesma tolerância haveria de ser entendida como homenagem à boa compostura de Hawkins e sua gente. Porque, ajuntava o governador, se algum outro navio inglês se aproximasse do porto, tudo seria feito para que nele achasse os piores estorvos e dissabores.
Um conforto bem maior do que as boas palavras de Azevedo, destinadas apenas a dourar a pílula, iria surgir providencialmente, no entanto, para mudar em alegria a decepção do navegante. Enquanto não chegava de volta o mensageiro com a resposta ao pedido de Sir Richard, dois homens, devidamente instruídos por este, tinham procurado estabelecer contato com os soldados da guarnição de terra, os quais, depois de alguns entendimentos, consentiram afinal que suas mulheres e filhas levassem comida fresca aos marujos. De modo que, em troca de uma gratificação, puderam estes conseguir dois ou três centos de laranjas e limões, além de certa quantidade de galinhas, para enganar sua aflição.
Logo que a notícia chegou aos navios foi como se uma verdadeira graça dos céus caísse sobre aqueles homens, nem faltou quem se sentisse curado só com ver as frutas. Tantas eram agora as vítimas que, repartindo tudo entre eles, mal deram três ou quatro para cada um, entre laranjas e limões. Foi o bastante, contudo, para curar-se inteiramente ou sustentar-se com vida a gente, sem perda de um só homem. Assim puderam, tendo saído dentro do prazo fixado, aportar depois a umas ilhas, embora durante esse percurso interminável, sem escalas, precisasse o pessoal destilar a própria água do mar para matar a sede e cozinhar os alimentos.
Do bom efeito das laranjas e limões do Brasil não se esqueceriam aqueles marujos que viam nele coisa verdadeiramente milagrosa. "É maravilhoso segredo do poder e sabedoria de Deus", escreve Sir Richard em suas Observações, "o encobrir virtude tamanha e tão mal sabida nessa fruta...". A Providência, assim como se serve muitas vezes das pestes epidêmicas para punir a maldade dos homens, também distribui no mundo criado os remédios de que estes se hão de socorrer na hora do desalento.
(...)
Além das frutas cítricas, logo se conheceram outros remédios vegetais de notáveis propriedades antiescorbúticas. Um dos que merecem maior realce foi certamente a infusão de galhos das árvores anneda. (...) Em realidade, o bom préstimo desse vegetal revelou-se não nas viagens marítimas, mas nos desertos gélidos da América do Norte, que foi onde a equipagem de três navios da expedição de Cartier pudera ter notícia e certeza de sua virtude curativa. As circunstâncias relacionadas com o achado da anneda foram ainda mais impressionantes, aliás, do que o milagre dos limões e das laranjas de que se tinham socorrido, pelo menos desde a grande viagem de Vasco da Gama, os marinheiros lusitanos no Oriente, pois do pessoal da expedição de Cartier, abrangendo três navios, que se vira segregado meses seguidos entre os gelos canadenses, apenas três homens estavam ainda perfeitamente sãos e considerável era já o número de mortos quando um índio iroquês amigo indicou aquele remédio, levando-lhes nove ou dez galhos da árvore milagrosa. Feita a infusão, os expedicionários que dela provaram, depois de vencida a repugnância que provocou de início o cozimento exótico, logo recobraram a saúde.
Grande e generosa maravilha essa, obrada sobre inúmeros doentes que pouco antes ainda invocavam em sua miséria o socorro da Virgem Maria e, tendo entoado em coro sete salmos de Davi, com a litania, tinham começado a clamar pela divina misericórdia! Com o encontro oportuno daquela planta desconhecida, conseguira-se, afinal, alcançar em oito dias apenas o que em um ano certamente não teriam podido obter os pacientes, valendo-se embora de todos os médicos de Lovaina e Montpellier, com todas aquelas suas famosas drogas de Alexandria.
A pronta cura dos enfermos tinha, nesse caso, as aparências de prodígio celeste, e como tal a tomaram naturalmente Cartier e seus companheiros. Embora haja incerteza quanto à exata identidade da árvore salvadora, não se pode sustentar a ideia de que fosse o sassafrás, espécie desconhecida no sítio atual da cidade de Quebec onde o milagre se produziu. (...) As preferências dirigem-se atualmente para certas coníferas da mesma região, onde análises recentes feitas nas entrecascas revelaram a presença de vitamina C, o agente antiescorbútico por excelência. Durante os anos seguintes, continuaram os franceses a buscá-la no Canadá com vivo empenho, e não apenas nos meses de inverno em que grassava mais o escorbuto, porém em qualquer época e para combater qualquer doença de caráter epidêmico. E é compreensível que a fama de sua eficácia logo se disseminasse. Marc Lescarbot chama-lhe, em 1609 "árvore da vida" e escreve que Champlain fora incumbido de fazer uma provisão de seus galhos durante as viagens que empreendeu à região do Rio São Lourenço.
Os próprios doutores de Lovaina e Montpellier, tão amigos de receitar drogas do Oriente, não seriam infensos à crença na possibilidade de uma intervenção sobrenatural que permitisse tão maravilhosas curas. Muitos deles, com efeito, mesmo professando as doutrinas galênicas, admitiam que a expressa vontade de Deus, segundo o atestam passagens das Sagradas Escrituras, era a causa primeira das "moléstias populares" ou epidêmicas, mandadas como flagelo e castigo contra os pecadores.
É certo, porém, que, no invocar as causas naturais das pestilências, os mesmos doutores apontavam, quase indefectivelmente, para a célebre corrupção do ar, nascida de imundícies, vapores ou abundância de corpos mortos, assim como procuravam mostrar o perigo do contato de coisas infeccionadas e, naturalmente em maior grau, do consumo de alimentos corrompidos e putrefatos. Essas contaminações, desde que assumissem caráter de epidemias, faziam-se acompanhar frequentemente de algum ajuntamento menos propício de astros, ou de eclipses de aspecto infausto: a conjunção de Saturno e Marte, por exemplo, no signo de Aquário, relacionava-se para muitos com o surto de várias pestilências particularmente perigosas.
Supunha-se, em muitos círculos respeitados, que Nosso Senhor, servindo-se de causas secretas como instrumento de justiça, permitia que, através de influências boas e salutares em si mesmas, os quatro elementos se alterassem de tal maneira que o próprio ar, de que em maior escala nos servimos por meio da respiração, chegava a adquirir alguma intemperança ou qualidade adversa à vida. O hábito de constantes fumigações por meio de vegetais aromáticos e vários outros produtos, aconselhados para a purificação do ar viciado, origina-se claramente nessa ideia e tinha como fito limpar a atmosfera viciada, servindo de preventivo e paliativo para qualquer pestilência eventual. Sir Richard Hakluyt, em suas Observações já citadas, recomendava especialmente que, nos navios sob seu comando, ao lado da limpeza indispensável e permanente das diversas dependências, tudo fosse borrifado de vinagre, queimando-se, por outro lado, alcatrão ou breu, assim como certos aromas suaves.
Os regimes dietéticos julgados aptos, ao menos para a prevenção, se não para o tratamento de males epidêmicos, tinham em regra a mesma razão de ser. O que era exato no caso dos alimentos sólidos não deixava de sê-lo no das bebidas, do vinho, da cerveja, da aguardente, esta de preferência retificada e, quando possível, adubada de canela, cravo e noz moscada, especiarias que passavam por maravilhas contra os contágios de toda e qualquer natureza, para não falar em outra beberagem de fundo orgânico, a qual, mais acessível do que as primeiras, embora menos compatível com os paladares mimosos, sempre conservará bom número de adeptos.

Sérgio Buarque de Holanda

26 de outubro de 2016

Você sabe com quem está falando?


Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsa­bilidade compreenderem a distinção fun­damental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e mui­to menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocráti­co. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.
No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedica­dos a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente pró­prio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação im­pessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência dos chamados “con­tatos primários” , dos laços de sangue e de coração — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o mo­delo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.

Sérgio Buarque de Holanda

Mimosa pudica


"He planta emula do Sol; em quanto elle vive, vive ella; e em se pondo, com elle se sepulta, enrolando a gala de seus ramos, quasi amortalhada em suas mesmas folhas, tornadas de cor de luto, até passar o triste da noite, e tornar o alegre do dia: segredo só do Autor que a fez".
A própria singularidade da sensitiva, independentemente de quaisquer simpatias mágicas que se lhe atribuíssem, parecia penhor seguro de maravilhosas qualidades. Da mesma forma que o gambá fornecia a muitos colonos mezinha admirável para todo achaque, pois sua cauda, pisada e misturada com água na quantidade de uma onça, era excelente contra doenças de rins, especialmente as litíases, tomada em jejum, além de curar cólicas, fazer gerar o leite, tirar espinhas, se mastigada, acelerar o parto..., que prodígios não prometia essa erva, à vista dos efeitos admiráveis que nela pôs a Providência?
De tal suspeita já se fizera intérprete Gandavo, onde escreveu: "Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós encoberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deus criou, ter cada huma particular virtude, com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta, a que a natureza nisto tanto quiz assinalar, dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras". Passados mais de cinquenta anos, Frei Vicente do Salvador repisava as mesmas considerações, para sugerir finalmente que esse vegetal deveria trazer em si, com certeza, alguma propriedade miraculosa comparável à do ímã, ou, como diz, da "pedra de cevar, que tem o dom de atrair o ferro". Por mais que procurassem, não conseguiram os curiosos descobrir-lhe outra propriedade miraculosa, entretanto, senão o fato de ser justamente veneno e contraveneno. Secas e desfeitas em pó, suas folhas, mesmo tomadas em pequena porção, eram mortíferas. Por outro lado não se encontrara melhor antídoto contra a fineza dessa peçonha senão a raiz da própria erva, bebida em pó ou em sumo.
Para imaginações menos rasteiramente utilitárias, bastava porém a lição moral que se poderia tirar de seu exemplo. Houve, ao menos nas Índias de Castela, quem fosse tentado a retorcer um pouco os fatos para realçar a lição. Pois, sendo certo, embora que a sensitiva reage muitas vezes ao simples movimento do ar, quanto mais ao contato de um corpo sólido, seja ele qual for, não hesitou frei Bartolomeu de Las Casas em dizer que, "si le tocamos con un palo o con otra qualquiera cosa, ningúm movimiento hace, pero si con el dedo, luego todas sus ramitas o arpaduras, y toda ella se encoge, como si fuese una cosa sensible, viva". É claro que para melhor justificar-se o conceito em que era tida de erva casta (e foi este um dos nomes que recebeu), destinada a servir de exemplo aos humanos, convinha mais que se encolhesse, mostrando seu agravo e pudor, quando tocada por homens e não tanto por coisas isentas do vício da concupiscência.
Isso concordaria melhor com a ideia, então geralmente admitida, de que a natureza se acha impregnada de mistérios e significações encobertas. Esse modo de pensar só começara a ser completamente liquidado a partir do século XVIII, quando o mundo principia a ser interpretado, de preferência, segundo critérios fornecidos pelas ciências físicas e matemáticas. Se é bem verdade, porém, que o desenvolvimento das ciências naturais acabou por desterrar a interpretação moral da natureza, não é menos exato que a viva impressão causada pelo que corria da pudicícia da sensitiva deixou sua marca na própria denominação científica ainda conservada até os nossos dias por essa mimosa.
 
Sérgio Buarque de Holanda
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