
Sobre o escorbuto, essa peste do mar tanto quanto dos desertos e regiões gélidas, onde não crescia erva verde, a doença "crua e feya" de que falara o poeta e que, sobretudo na dilatada caneira da Índia, mais dilatada que as de Guiné e Brasil, chegava a condenar à morte nada menos do que a quarta ou terça partes dos navegantes, segundo valioso depoimento quinhentista, mostrara a experiência constante que os enfermos, depois de desembarcados, recobravam prontamente a saúde em muitos casos. Escrevendo de Santa Cruz de Cochim a Piero Vettori de Florença em janeiro de 1585, são estas, com efeito, as palavras de Sassetti: "Chegam de Portugal todos os anos dois mil e quinhentos e três mil homens ou rapazes, da gente mais perdida que por lá se acha: desses é jogada ao mar a quarta ou terça parte, por vezes até a metade".
O próprio Sassetti apresentara, em sua viagem, alguns dos sintomas da doença comum àquela carreira. Em carta dirigida a Francesco Valori, de dezembro de 1583, a primeira ao que se saiba escrita após sua chegada à Índia, informava ele que em um só dia adoeceram a bordo cento e sessenta pessoas, acrescentando que, nos enfermos, à inchação desmedida das gengivas, que haveriam de ser cortadas para o paciente poder fechar a boca, com o que desprendiam um cheiro insuportável, seguia-se uma inflamação dos joelhos e dos membros inferiores. Por fim sobrevinha fortíssima dor no peito que, embora sem proibir a respiração, punha termo à vida do paciente, que se extinguia "como a luz num candeeiro sem óleo". Contra esse terrível mal, a que se teriam familiarizado, provavelmente desde cedo, os mareantes portugueses, sobretudo depois que, abandonando a navegação à vista da terra, passaram a engolfar-se no pego do mar, a medicina do tempo, ignorante de sua etiologia e terapêutica, socorria-se geralmente de um ou outro paliativo de eficácia muitas vezes duvidosa.
João de Barros, escrevendo em sua primeira "Década" da Ásia acerca da enfermidade que da armada de Vasco da Gama no caminho de Mombaça, e que na sua maior parte foi de "herisipolas e de lhes crescer tanto a carne das gengivas, que quase não cabia na boca aos homens, e assim como crescia apodrecia, e cortavam nela como em carne morta, cousa mui piadosa de ver", observa como se conheceu depois proceder tudo isso das carnes, peixes salgados e biscoito apodrecido numa viagem de dezoito meses. Outros não hesitariam em fazer proceder a doença dos ares poluídos e infeccionados que se formariam no alto mar ou mesmo, por certas épocas, em lugares de terra firme.
É significativo o fato de um dos mais conhecidos historiadores modernos das Cruzadas ter ainda falado em "miasmas" - o vocábulo que durante tantos séculos servira de espalhado a navegantes e guerreiros -, no qual alude ao mal que, em 1250, invadiu os acampamentos de tropas de São Luís, rei de França, diante dos muros de Masourah, precipitando a derrota e prisão do soberano, bem assim como o malogro completo da Terceira Cruzada, embora os textos mais autorizados da época não pareçam permitir dúvidas sobre a diagnose de tão nefasto mal.
Há certa dose de injustiça, talvez, na afirmação de um notável conhecedor da história da conquista e do descobrimento da América pelos europeus, de que os portugueses, tanto quanto os espanhóis, se mostraram de todo inermes contra essa enfermidade, ao passo que os franceses no Canadá, desde a segunda viagem de Cartier, e os ingleses, desde os dias de Hudson, Baffin e Bylot, disporiam sempre de recursos apropriados para enfrentá-lo decisivamente. O fato é que bem antes de Cartier e, sobretudo, daqueles navegantes ingleses do século XVII, os portugueses, ao contrário do que pretende esse autor, tinham podido conhecer e utilizar a eficácia de determinados vegetais, mormente dos frutos das chamadas "árvores de espinho", em seu tratamento.
Em realidade, desde a primeira viagem de Vasco da Gama ao Oriente, se não antes, tinham podido ser verificadas e aproveitadas as virtudes antiescorbúticas desses frutos. O redator anônimo do roteiro da memorável navegação, que só se publicou em 1838, não descreve apenas o mal, que já à altura da foz do Zambeze principiara a perseguir os tripulantes, de maneira que lhes "inchavam os pés e as mãos, e lhes cresciam gengivas tanto sobre os dentes que os homens não podiam comer, mas ainda o bom modo de combatê-lo. Ao chegarem naus a Mombaça, levam-lhe os indígenas muitas laranjas "muito boas, melhores que as de Portugal". Em seguida refere, é certo, como "quiz Deus, por sua misericórdia" que, ao aportarem naquela cidade, "todo los doentes que traziamos foram sãos, porque esta terra é de muitos bons ares", o que parece excluir o bom efeito das frutas nessa recuperação.
Ao regressarem, porém, como as calmarias e os ventos contrários tivessem retardado de quase três meses a travessia do Índico, voltou a gente a adoecer das gengivas, que lhes cresciam sobre os dentes de tal maneira que já não podiam comer, e também "lhes inchavam as pernas, e grandes outros inchaços pelo corpo, de guisa que lavraram um homem tanto ate que morria sem ter outra nenhuma doença. Da qual nos morreram em o dito tempo trinta homens, afora outros tantos que já eram mortos. E os que navegavam em cada nau seriam sete ou oito homens, e esses não eram ainda sãos como haviam de ser. Do que vos afirmo que se nos mais durara aquele tempo quinze dias, andáramos por esse mar através; que não houvera ali quem navegara os navios". E dessa vez, para atender à vontade dos doentes, Vasco da Gama, logo à chegada de Melinde, fez-lhes dar laranjas, sem todavia alcançar o mesmo resultado.
O texto do roteiro diz, efetivamente, que o capitão mandou um homem a terra, para "ao outro dia trazer laranjas, que muito desejavam os doentes que trazíamos; como de feito as trouxe logo, com outras muitas frutas, posto que não aproveitaram aos doentes, que a terra os apalpou em tal maneira que aqui se nos finaram muitos". A circunstância de desejarem os enfermos daquelas frutas e a observação de que "não aproveitaram" dessa vez são indícios de que já seria conhecido dos marinheiros o valor antiescorbútico das laranjas. Quando menos, teriam aprendido a conhecê-lo na viagem de ida, em consequência dos bons resultados obtidos em Mombaça, ou através de informações de pilotos árabes como o Canaca, habituados tradicionalmente à travessia do Índico. O não ter aproveitado o remédio dessa vez prende-se, conforme um moderno pesquisador, ao maior adiantamento do mal e ainda ao ser este recidivo, de sorte que estaria comprometida a capacidade de resistência das vítimas. Só depois de dobrado o Cabo de Boa Esperança começaria a maior parte da gente a convalescer e poder servir na mareagem, pois tamanho fora o desbarato da equipagem durante a travessia do golfão que se chegara a pensar em retroceder à Índia.
Se a eficácia do uso da laranja no combate ao escorbuto não parecesse todavia certificada pela experiência alcançada nessa primeira viagem marítima de Portugal ao Oriente bastaria, para tanto, a segunda, precisamente a de Pedro Álvares Cabral. Um dos documentos conhecidos acerca de sua derrota, a relação do Piloto Anônimo, de que se ignora até hoje o texto original, refere que o rei de Melinde, quando lá chegou a armada, mandou visitar o comandante e levar a bordo "muitos capados e galinhas, patos, limões e laranjas, as melhores do mundo". E acrescenta textualmente: "em nossos navios tínhamos alguns doentes da boca, e com aquelas laranjas ficaram sãos". O número escasso de mortos em resultado do escorbuto entre a equipagem de Cabral - três ao todo, segundo parece - destoa do descalabro que representou a incidência do mal em navegações ulteriores dos portugueses.
(...)
Naquele mesmo ano de 1593, em que escrevia suas impressões de bordo, pudera Richard Hawkins certificar-se pessoalmente de como era bem fundada sua confiança no poder curativo da laranja e do limão. Essa certeza ele a poderia ter obtido justamente na costa brasileira onde, assolada a gente de sua expedição pelo escorbuto, a tal ponto que em três navios que a compunham mal se contariam vinte e quatro pessoas inteiramente sãs, decidira ancorar na barra de Vitória do Espírito Santo, esperando obter ali agasalho, a fim de poderem restabelecer-se os seus homens.
Em resposta à carta que escreveu ao governador, provavelmente o Capitão Miguel de Azevedo, recebeu deste uma comunicação, bastante cortês (sobretudo quando se considere que partia de quem fora vítima um ano antes, do ataque, aliás malogrado, de outro inglês, Cavendish), que o impossibilitava no entanto de realizar aqueles desígnios. Invocando as determinações expressas de seu soberano para que não tolerasse comércio algum com súditos ingleses e nem desse abrigo e refresco aos seus navios, temperava sua formal negativa com um pedido de desculpas. E dava o prazo de três dias, no máximo, para que as três embarcações largassem a barra: essa mesma tolerância haveria de ser entendida como homenagem à boa compostura de Hawkins e sua gente. Porque, ajuntava o governador, se algum outro navio inglês se aproximasse do porto, tudo seria feito para que nele achasse os piores estorvos e dissabores.
Um conforto bem maior do que as boas palavras de Azevedo, destinadas apenas a dourar a pílula, iria surgir providencialmente, no entanto, para mudar em alegria a decepção do navegante. Enquanto não chegava de volta o mensageiro com a resposta ao pedido de Sir Richard, dois homens, devidamente instruídos por este, tinham procurado estabelecer contato com os soldados da guarnição de terra, os quais, depois de alguns entendimentos, consentiram afinal que suas mulheres e filhas levassem comida fresca aos marujos. De modo que, em troca de uma gratificação, puderam estes conseguir dois ou três centos de laranjas e limões, além de certa quantidade de galinhas, para enganar sua aflição.
Logo que a notícia chegou aos navios foi como se uma verdadeira graça dos céus caísse sobre aqueles homens, nem faltou quem se sentisse curado só com ver as frutas. Tantas eram agora as vítimas que, repartindo tudo entre eles, mal deram três ou quatro para cada um, entre laranjas e limões. Foi o bastante, contudo, para curar-se inteiramente ou sustentar-se com vida a gente, sem perda de um só homem. Assim puderam, tendo saído dentro do prazo fixado, aportar depois a umas ilhas, embora durante esse percurso interminável, sem escalas, precisasse o pessoal destilar a própria água do mar para matar a sede e cozinhar os alimentos.
Do bom efeito das laranjas e limões do Brasil não se esqueceriam aqueles marujos que viam nele coisa verdadeiramente milagrosa. "É maravilhoso segredo do poder e sabedoria de Deus", escreve Sir Richard em suas Observações, "o encobrir virtude tamanha e tão mal sabida nessa fruta...". A Providência, assim como se serve muitas vezes das pestes epidêmicas para punir a maldade dos homens, também distribui no mundo criado os remédios de que estes se hão de socorrer na hora do desalento.
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Além das frutas cítricas, logo se conheceram outros remédios vegetais de notáveis propriedades antiescorbúticas. Um dos que merecem maior realce foi certamente a infusão de galhos das árvores anneda. (...) Em realidade, o bom préstimo desse vegetal revelou-se não nas viagens marítimas, mas nos desertos gélidos da América do Norte, que foi onde a equipagem de três navios da expedição de Cartier pudera ter notícia e certeza de sua virtude curativa. As circunstâncias relacionadas com o achado da anneda foram ainda mais impressionantes, aliás, do que o milagre dos limões e das laranjas de que se tinham socorrido, pelo menos desde a grande viagem de Vasco da Gama, os marinheiros lusitanos no Oriente, pois do pessoal da expedição de Cartier, abrangendo três navios, que se vira segregado meses seguidos entre os gelos canadenses, apenas três homens estavam ainda perfeitamente sãos e considerável era já o número de mortos quando um índio iroquês amigo indicou aquele remédio, levando-lhes nove ou dez galhos da árvore milagrosa. Feita a infusão, os expedicionários que dela provaram, depois de vencida a repugnância que provocou de início o cozimento exótico, logo recobraram a saúde.
Grande e generosa maravilha essa, obrada sobre inúmeros doentes que pouco antes ainda invocavam em sua miséria o socorro da Virgem Maria e, tendo entoado em coro sete salmos de Davi, com a litania, tinham começado a clamar pela divina misericórdia! Com o encontro oportuno daquela planta desconhecida, conseguira-se, afinal, alcançar em oito dias apenas o que em um ano certamente não teriam podido obter os pacientes, valendo-se embora de todos os médicos de Lovaina e Montpellier, com todas aquelas suas famosas drogas de Alexandria.
A pronta cura dos enfermos tinha, nesse caso, as aparências de prodígio celeste, e como tal a tomaram naturalmente Cartier e seus companheiros. Embora haja incerteza quanto à exata identidade da árvore salvadora, não se pode sustentar a ideia de que fosse o sassafrás, espécie desconhecida no sítio atual da cidade de Quebec onde o milagre se produziu. (...) As preferências dirigem-se atualmente para certas coníferas da mesma região, onde análises recentes feitas nas entrecascas revelaram a presença de vitamina C, o agente antiescorbútico por excelência. Durante os anos seguintes, continuaram os franceses a buscá-la no Canadá com vivo empenho, e não apenas nos meses de inverno em que grassava mais o escorbuto, porém em qualquer época e para combater qualquer doença de caráter epidêmico. E é compreensível que a fama de sua eficácia logo se disseminasse. Marc Lescarbot chama-lhe, em 1609 "árvore da vida" e escreve que Champlain fora incumbido de fazer uma provisão de seus galhos durante as viagens que empreendeu à região do Rio São Lourenço.
Os próprios doutores de Lovaina e Montpellier, tão amigos de receitar drogas do Oriente, não seriam infensos à crença na possibilidade de uma intervenção sobrenatural que permitisse tão maravilhosas curas. Muitos deles, com efeito, mesmo professando as doutrinas galênicas, admitiam que a expressa vontade de Deus, segundo o atestam passagens das Sagradas Escrituras, era a causa primeira das "moléstias populares" ou epidêmicas, mandadas como flagelo e castigo contra os pecadores.
É certo, porém, que, no invocar as causas naturais das pestilências, os mesmos doutores apontavam, quase indefectivelmente, para a célebre corrupção do ar, nascida de imundícies, vapores ou abundância de corpos mortos, assim como procuravam mostrar o perigo do contato de coisas infeccionadas e, naturalmente em maior grau, do consumo de alimentos corrompidos e putrefatos. Essas contaminações, desde que assumissem caráter de epidemias, faziam-se acompanhar frequentemente de algum ajuntamento menos propício de astros, ou de eclipses de aspecto infausto: a conjunção de Saturno e Marte, por exemplo, no signo de Aquário, relacionava-se para muitos com o surto de várias pestilências particularmente perigosas.
Supunha-se, em muitos círculos respeitados, que Nosso Senhor, servindo-se de causas secretas como instrumento de justiça, permitia que, através de influências boas e salutares em si mesmas, os quatro elementos se alterassem de tal maneira que o próprio ar, de que em maior escala nos servimos por meio da respiração, chegava a adquirir alguma intemperança ou qualidade adversa à vida. O hábito de constantes fumigações por meio de vegetais aromáticos e vários outros produtos, aconselhados para a purificação do ar viciado, origina-se claramente nessa ideia e tinha como fito limpar a atmosfera viciada, servindo de preventivo e paliativo para qualquer pestilência eventual. Sir Richard Hakluyt, em suas Observações já citadas, recomendava especialmente que, nos navios sob seu comando, ao lado da limpeza indispensável e permanente das diversas dependências, tudo fosse borrifado de vinagre, queimando-se, por outro lado, alcatrão ou breu, assim como certos aromas suaves.
Os regimes dietéticos julgados aptos, ao menos para a prevenção, se não para o tratamento de males epidêmicos, tinham em regra a mesma razão de ser. O que era exato no caso dos alimentos sólidos não deixava de sê-lo no das bebidas, do vinho, da cerveja, da aguardente, esta de preferência retificada e, quando possível, adubada de canela, cravo e noz moscada, especiarias que passavam por maravilhas contra os contágios de toda e qualquer natureza, para não falar em outra beberagem de fundo orgânico, a qual, mais acessível do que as primeiras, embora menos compatível com os paladares mimosos, sempre conservará bom número de adeptos.
Sérgio Buarque de Holanda