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6 de outubro de 2017

Babel medieval


Os clérigos tentaram exorcizar essa sombra medieval de Babel. Seu instrumento: o latim. Este teria realizado a unidade da civilização medieval e, além disso, da civilização europeia. Sabe-se que Ernst Robert Curtius o afirmou brilhantemente. Mas que latim? Um latim artificial, do qual se destacam seus verdadeiros herdeiros, as línguas "vulgares", e que é esterilizado um pouco mais por todos os renascimentos, a começar pelo carolíngio. Latim de cozinha, dirão os humanistas. Exatamente o contrário, apesar do êxito literário de alguns grandes escritores como Santo Anselmo ou São Bernardo e da grande construção do latim escolástico, latim inodoro e sem sabor, latim de casta, latim dos clérigos, instrumento mais ainda de dominação sobre a massa do que de comunicação internacional. Próprio exemplo da língua sagrada que isola o grupo social que tem o privilégio, não de compreendê-la - o que pouco importa -, mas de falá-la, bem ou mal. Giraud de Barré coleta, em 1199, uma série de "pérolas" proferidas pelo clero inglês. Eudes Rigaud, bispo de Rouen de 1248 a 1269, recolhe outras junto dos sacerdotes de sua diocese. O latim da igreja medieval tendia a se tornar a linguagem incompreensível dos irmãos arvais na Roma antiga.
A realidade viva do Ocidente medieval é o triunfo progressivo das línguas vulgares, a multiplicação dos intérpretes, das traduções, dos dicionários.
O recuo do latim diante das línguas vulgares não se faz sem manifestações de nacionalismo linguístico. Eis uma "nação" em formação que se afirma defendendo sua língua: Jacob Swinka, arcebispo de Gniezno no final do século XIII, queixa-se à Cúria dos franciscanos alemães que não entendem o polonês e ordena que se pronunciem as prédicas em polonês ad conservacionem et promocionem lingue Polonice, "pela defesa e ilustração da língua polonesa". Um bom exemplo de nação que tende a se identificar coma língua é o da França medieval, que dificilmente funde França do Norte e França do Sul, líndua d'oïl e língua d'oc.  
Em 920, por ocasião de um encontro em Worms entre Carlos o Simples, e Henrique I o Passarinheiro, uma batalha sangrenta, segundo Richer, teria se travado entre cavaleiros alemães e franceses "encolerizados pelo particularismo linguístico".
Segundo Hildegarda von Bingen, Adão e Eva falavam alemão. Alguns entendem que havia uma preexcelência do francês. Na Itália, em meados do século XIII, o autor anônimo de um poema sobre o anticristo, escrito em francês, afirma:

... a língua da França
É tal que quem primeiro a aprende
Nunca poderá de outro modo
Falar nem outra língua aprender.

E Brunetto Latini escreve seu Trésor em francês "por que essa fala é mais deleitável e mais comum a toda gente".
Quando, na unidade rompida do Império Romano, nações bárbaras instalaram sua diversidade e a "nacionalidade" acompanhou ou substituiu a "territorialidade" das leis, clérigos haviam criado um gênero literário que associava a cada nação uma virtude e um vício nacionais. Na escalada dos nacionalismos, depois do século XI, o antagonismo parece triunfar, pois só os vícios passam a acompanhar, como atributo nacional, as diversas nações. Observa-se isso nas universidades, onde estudantes e professores agrupados em "nações", que aliás estão longe de corresponder a uma só "nação" no sentido territorial e político, veem-se qualificados, segundo Jacques de Vitry, "os ingleses como bêbados providos de cauda, os franceses como orgulhosos e afeminados, os alemães como brutos e devassos, os normando como fúteis e fanfarrões, os do Poitou como traidores e aventureiros, os borguinhões como vulgares e estúpidos, os bretões como inconstantes e volúveis, os lombardos como avaros, corruptos e medrosos, os romanos como sediciosos e caluniadores, os sicilianos como tirânicos e cruéis, os brabanteses como sanguinários, incendiários e salteadores, os flamengos como pródigos, glutões moles como manteiga e preguiçosos". "Depois disso", conclui Jacques de Vitry, "dos insultos passava-se à pancadaria".

Jacques Le Goff
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