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12 de junho de 2020

O instante do rompimento


Quem poderia fotografar, registrar, tatear o instante em que algo rompe entre duas pessoas? Quando aconteceu? De noite, enquanto dormíamos? No almoço, enquanto comíamos? Agora, enquanto vim ao consultório? Ou muito, muito tempo atrás, apenas não percebemos? E continuamos a viver, a falar, a nos beijar, a dormir juntos, a procurar a mão do outro, o olhar do outro, como bonecos animados que continuam a se movimentar ruidosamente por um tempo, mesmo estando a mola de seu mecanismo quebrada... O cabelo e as unhas do morto continuam a crescer, talvez as células nervosas ainda sobrevivam quando os glóbulos vermelhos já estão mortos... Nada sabemos. Que refletor devo acender para encontrar nessa escuridão, nessa trama, aquele momento único, aquele milésimo de segundo em que algo cessa entre duas pessoas?
 
Sándor Marai

12 de janeiro de 2020

O sentido da vida

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No final de tudo, é com os fatos de nossa vida que respondemos às indagações que o mundo nos faz com tanta insistência. E que são estas: Quem você é? O que queria de verdade? O que sabia de verdade? A quem e a quê foi fiel ou infiel? Com quem ou com quê se mostrou corajoso ou covarde? São essas as perguntas capitais. E cada um responde como pode, com sinceridade ou mentindo; mas isso não tem importância. O que importa é que no final cada um responde com a própria vida.

Sándor Márai

4 de outubro de 2019

Inúteis


Eu hoje entendo. Sabe, é preciso que aconteça tudo na vida, tudo tem de se acomodar. E o processo é muito lento. Determinação, devaneio, intenção não ajudam muito. Você já notou como é difícil achar o lugar definitivo dos móveis numa casa? Passam anos e você pensa que está tudo no lugar, mas apesar disso você sente, com uma desconfiança nebulosa e incômoda, que alguma coisa não está inteiramente bem, quem sabe no lugar da cadeira você não devesse colocar uma mesa... E depois, dez ou vinte anos mais tarde, passamos um dia pela sala, onde até então não nos sentíamos bem, onde o espaço e os móveis não se harmonizavam, e de súbito vemos o erro, vemos o desenho interior e a disposição secreta da sala, empurramos alguns móveis, e, parece, acreditamos que tudo encontrou o lugar definitivo. E durante alguns anos de fato sentimos que a sala está por fim perfeita e acabada. E mais tarde, talvez à medida que nós mudamos, também mudam os espaços da vida à nossa volta, jamais existe uma ordem definitiva em torno de uma pessoa. E somos assim também com o modo de vida, construímos costumes, por muito tempo acreditamos que nosso plano é perfeito, de manhã trabalhamos, de tarde passeamos, de noite nos ilustramos... e um dia descobrimos que tudo isso é suportável e racional se for invertido, não compreendemos como pudemos respeitar durante anos as regras insanas da vida... Assim se transforma tudo em nós e à nossa volta. E é tudo temporário, a nova ordem, a serenidade interior, porque tudo acontece segundo as leis da transformação, e um dia será inútil... por quê? Talvez porque nós mesmos vamos nos tornar inúteis um dia. Como tudo o que nos diz respeito.
 
Sándor Márai

24 de junho de 2019

Ser si mesmo


No fundo da alma, ocultava um impulso espasmódico: o desejo de ser diferente do que era. É o tormento mais cruel que o destino pode reservar ao homem. Ser diferente do que somos, é o desejo mais nefasto que pode queimar num coração humano. Pois a única maneira de suportar a vida é se conformar em ser o que somos aos nossos olhos e aos do mundo. Devemos nos contentar em sermos feitos de uma certa maneira e em sabermos que, uma vez aceita essa realidade, a vida não nos louvará por nossa sabedoria, ninguém nos conferirá uma medalha de honra ao mérito só porque nos conformamos em ser vaidosos e egoístas, ou calvos e barrigudos — não, em troca dessa tomada de consciência não obteremos prêmios nem louvores. Devemos nos suportar tais como somos, este é o único segredo. Suportar nosso caráter, nossa natureza profunda, com todos os seus defeitos, seu egoísmo e sua cupidez, que não serão corrigidos nem com a experiência e nem com a boa vontade. Devemos aceitar que nossos sentimentos não são correspondidos, que as pessoas que amamos não retribuem o nosso amor, ou pelo menos não como gostaríamos. Devemos suportar a traição e a infidelidade, e sobretudo a coisa que nos parece mais intolerável: a superioridade intelectual ou moral do outro. (…) Na solidão aprendemos a compreender todas as coisas, e não temos medo de mais nada. (…) Não digo isso para me defender, pois o que busco é a verdade e quem quer a verdade deve iniciar a busca em si mesmo.
 
Sándor Márai
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