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8 de outubro de 2017

A morte é motivo de riso


A nossa religião não teve fundamento humano mais seguro do que o desprezo pela vida. Não somente o exercício da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa que perdida não pode ser lamentada; e, já que somos ameaçados por tantas formas de morte, não haverá maior mal em temê-las todas do que em suportar uma?
Que importa quando ela será, pois que é inevitável? A alguém que dizia a Sócrates: "Os trinta tiranos condenaram-te à morte", respondeu ele: "E a natureza a eles". Que tolice nos atormentarmos sobre o momento da passagem para a isenção de todo o tormento!
Assim como o nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim a nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso, chorar porque daqui a cem anos não estaremos a viver é loucura igual a chorar porque há cem anos atrás não vivíamos. A morte é origem de uma outra vida. Assim choramos nós; assim nos custou entrar nesta aqui; assim nos despojamos do nosso antigo véu quando entramos naquela.
Não pode ser penoso algo que o é apenas uma vez. Será certo temer por tão longo tempo uma coisa de tão breve duração? A morte torna iguais o viver por longo tempo e o viver por pouco tempo. Pois o longo e o breve não se aplicam às coisas que não existem mais. Diz Aristóteles que há no rio Hípanis animaizinhos que vivem apenas um dia. O que morre às oito horas da manhã morre na juventude; o que morre às cinco horas da tarde morre na decrepitude. Quem de nós não ri ao ver considerar como ventura ou desventura esse momento de duração? O mais e o menos da duração da nossa vida, se a compararmos com a eternidade ou ainda com a duração das montanhas, dos rios, das estrelas, das árvores e mesmo de alguns animais, não é menos risível.
 
Michel de Montaigne

18 de julho de 2017

Só de você deixar


Os homens (diz uma antiga máxima grega) são atormentados pelas ideias que têm das coisas, e não pelas próprias coisas. Haveria um grande ponto ganho para o alívio da nossa miserável condição humana se pudéssemos estabelecer essa asserção como totalmente verdadeira. Pois, se os males só entraram em nós pelo nosso julgamento, parece que está em nosso poder desprezá-los ou transformá-los em bem. Se as coisas se entregam à nossa mercê, por que não dispomos delas ou não as moldarmos para vantagem nossa? Se o que denominamos mal e tormento não é nem mal nem tormento por si mesmo, mas somente porque a nossa imaginação lhe dá essa qualidade, está em nós mudá-la. E, tendo essa escolha, se nada nos força, somos extraordinariamente loucos de bandear para o partido que nos é o mais penoso e dar às doenças, à indigência e ao desvalor um gosto acre e mau, se lhes podemos dar um gosto bom e se, a fortuna fornecendo simplesmente a matéria, cabe a nós dar-lhe a forma.
Porém vejamos se é possível sustentar que aquilo que denominamos por mal não o é em si mesmo, ou pelo menos que, seja ele qual for, depende de nós dar-lhe outro sabor e outro aspecto, pois tudo vem a ser a mesma coisa. Se a natureza própria dessas coisas que tememos tivesse o crédito de instalar-se em nós por poder seu, ele se instalaria exatamente da mesma forma em todos; pois os homens são todos de uma só espécie e, exceto por algo a mais ou a menos, acham-se munidos de iguais órgãos e instrumentos para pensar e julgar. Mas a diversidade das ideias que temos sobre essas coisas mostra claramente que elas só entram em nós por mútuo acordo: alguém por acaso coloca-as dentro de si com a sua verdadeira natureza, mas mil outros dão-lhes dentro de si uma natureza nova e contrária.

Michel de Montaigne

27 de outubro de 2016

Coitadinho...


Todos os dias desfaço-me, por via da razão, desse sentimento pueril e inumano que faz que desejemos que os nossos males suscitem a compaixão e o pesar nos nossos amigos. Fazemos valer os nossos infortúnios desproporcionadamente para provocar as suas lágrimas. E a firmeza face à má fortuna, que louvamos em toda a gente, reprovamo-la e repudiamo-la aos nossos íntimos quando a má fortuna é a nossa. Não nos contentamos com que eles sejam sensíveis às nossas dores, precisamos que com elas se aflijam. Deve-se espalhar a alegria, mas conter, tanto quanto possível, a tristeza. Quem quer ser compadecido sem razão é homem que não o merece ser quando houver razão para tal. Estar sempre a lamentar-se é caso para se não ser lamentado, pois quem tantas vezes faz de coitadinho não inspira dó a ninguém. Quem faz de morto estando vivo sujeita-se a ser tido por vivo em morrendo. Vi doentes abespinharem-se por os acharem de bom semblante e com o pulso normal, reprimirem o riso porque este denunciava a sua cura e odiarem a saúde por ela não suscitar compaixão.
 
Michel de Montaigne

24 de outubro de 2016

Virtude


Parece-me que a virtude é coisa diferente e mais nobre do que as inclinações para a bondade que nascem em nós. As almas bem ajustadas por si mesmas e bem nascidas seguem o mesmo andamento e apresentam nas suas ações a mesma aparência que as virtuosas. Porém a virtude significa não sei quê de maior e mais ativo do que, por uma índole favorecida, deixar-se conduzir docemente e tranquilamente na esteira da razão. Aquele que com uma doçura e complacência naturais menosprezasse as ofensas recebidas faria coisa mui bela e digna de louvor; mas aquele que, espicaçado e ultrajado até o âmago por uma ofensa, se armasse com as armas da razão contra o furio­so apetite de vingança e após um grande conflito finalmen­te o dominasse, sem a menor dúvida seria muito mais. Aquele agiria bem, e este virtuosamente: uma ação poder-­se-ia dizer bondade; a outra, virtude, pois parece que o nome de virtude pressupõe dificuldade e oposição, e que ela não pode se exercer sem combate. Talvez seja por isso que chamamos Deus de bom, forte e liberal, e justo; mas não O chamamos de virtuoso: os Seus atos são todos natu­rais e sem esforço. Metelo, o único de todos os senadores romanos a se ter proposto, pela força da sua virtude, a resistir à violência de Saturni­no, tribuno do povo em Roma, que queria à viva força fazer passar uma lei injusta em favor da plebe, e tendo assim in­corrido nas penas capitais que Saturnino estabelecera contra os que a rejeitassem, mantinha com os que naquela situação extrema o conduziam à praça uma conversa assim: que agir mal era coisa fácil demais e muito covarde, e agir bem quan­do não houvesse risco era coisa vulgar; mas agir bem quando houvesse risco era o próprio ofício de um homem de virtude. Essas palavras de Metelo representam-nos mui­to claramente o que eu queria provar: que a virtude rejeita a comodidade como companhia; e que esse caminho fácil, ameno e em suave declive, por onde se conduzem os pas­sos bem ajustados de uma boa inclinação natural, não é o da verdadeira virtude. Ela pede um caminho áspero e es­pinhoso; quer ter ou dificuldades externas para combater, como a de Metelo, por meio das quais o destino se com­praz em interromper o vigor da sua marcha, ou dificulda­des internas que lhe são provocadas pelos apetites desor­denados e pelas imperfeições de nossa condição.
 
Michel de Montaigne
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