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7 de setembro de 2018

Um segredo importantíssimo


Muitas devotas acordavam antes das cinco da manhã e, nos seus longos vestidos escuros, seguiam pela madrugada cinzenta para ir se ajoelhar na fria nave da igreja, com sua visão periférica protegida por lenços amarrados ao queixo, puxados bem para a frente. Elas enterravam o rosto nas mãos avermelhadas e oravam, contavam histórias para Deus, conseguiam alcançar a paz, a força e o insight. De vez em quando, minha tia Katerin me levava com ela. Quando um dia eu lhe disse: "É tão calmo e bonito aqui", ela piscou enquanto fazia com que eu me calasse. "Não conte para ninguém. É um segredo importantíssimo." E era mesmo, porque o trajeto até a igreja na madrugada e o interior sombrio da nave eram os dois únicos lugares naquela época em que era proibido perturbar a mulher.

Clarissa Pinkola Estés

5 de setembro de 2018

A volta ao lar


Reler trechos de livros e de poemas isolados. Passar até mesmo alguns minutos junto a um rio, um córrego, um regato. Ficar deitada no chão numa sombra rendilhada. Ficar com quem amamos sem as crianças por perto. Sentar na varanda debulhando, tricotando ou descascando. Caminhar ou passear de carro por uma hora, em qualquer direção, e depois voltar. Apanhar qualquer ônibus, com destino desconhecido. Tocar um instrumento enquanto se ouve música. Assistir ao nascer do sol. Ir de carro até um lugar em que as luzes da cidade não prejudiquem a visão do céu noturno. Orar. Estar com uma amiga especial. Ficar sentada numa ponte com as pernas balançando no ar. Segurar um bebê no colo. Sentar-se junto a uma janela num café e escrever. Sentar-se num círculo de árvores. Secar o cabelo ao sol. Pôr as mãos num barril cheio de água da chuva. Envasar plantas, fazendo questão de enlamear muito as mãos. Contemplar a beleza, a graça, a comovente fragilidade dos seres humanos.

Clarissa Pinkola Estés 

Lar


O lar é onde um pensamento ou sentimento pode ser mantido em vez de sofrer interrupções ou de ser arrancado de nós porque alguma outra coisa exige nosso tempo e atenção.

Clarissa Pinkola Estés

30 de agosto de 2018

Trivialização do anormal

 
Existe um importante estudo que esclarece a perda do instinto de autodefesa nas mulheres. No início da década de 1960, alguns cientistas realizaram experiências com animais para tentar determinar algo a respeito do "instinto de fuga" nos seres humanos. Numa das experiências, eles fizeram uma instalação elétrica na metade direita de uma grande jaula, de modo que um cão preso nela recebesse um choque cada vez que pisasse no lado direito. O cão aprendeu rapidamente a permanecer no lado esquerdo da jaula.
Em seguida, o lado esquerdo da jaula recebeu o mesmo tipo de instalação, que foi desligada no lado direito. O cão logo se reorientou, aprendendo a ficar no lado direito da jaula. Então, todo o piso da gaiola foi preparado para dar choques aleatórios, de tal modo que, onde quer que o cão estivesse parado ou deitado, ele acabaria levando um choque. Ele a princípio aparentou estar confuso e depois entrou em pânico. Finalmente, o cão desistiu: se deitou, aceitando os choques à medida que surgissem, sem tentar fugir deles ou descobrir de onde viriam.
No entanto, a experiência não estava encerrada. No próximo passo, a jaula foi aberta. Os cientistas esperavam que o cão saísse dali correndo, mas ele não fugiu. Muito embora pudesse abandonar a jaula quando bem entendesse, ele ficou ali deitado recebendo os choques aleatórios. A partir dessa experiência, os cientistas levantaram a hipótese de que, quando um animal é exposto à violência, ele apresentará a tendência a se adaptar a essa perturbação, de tal forma que, quando a violência pára ou ele tem acesso à liberdade, o instinto saudável de fugir é extremamente reduzido, e em vez de escapar o animal fica paralisado.
Em termos da natureza selvagem das mulheres, é essa trivialização da violência, assim como o que os cientistas subsequentemente denominaram "aprendizado da impotência", que não só influencia as mulheres a ficar com parceiros alcoólatras, patrões exploradores e grupos que se aproveitam delas e as importunam, mas também faz com que elas se sintam incapazes de se erguer para apoiar aquilo em
que acreditam profundamente: sua arte, seu amor, seu estilo de vida, sua preferência política.
A trivialização do que é anormal, mesmo quando existem claros indícios de que essa atitude seja prejudicial a nós mesmas, aplica-se a todos os maus-tratos infligidos às naturezas instintiva, espiritual, criativa, emocional e física. As mulheres enfrentam essa questão sempre que são desorientadas de modo a fazer qualquer coisa que não seja a defesa da sua vida profunda de projeções invasivas, culturais, psíquicas ou de outra natureza.
 
Clarissa Pinkola Estés

23 de agosto de 2018

A patinha feia


As meninas que demonstram ter uma forte natureza instintiva muitas vezes passam por sofrimentos significativos no início da vida. Desde a época em que são bebês, são mantida presas, domesticadas, e ouvem dizer que são inconveniente ou teimosas. Suas naturezas selvagens revelam-se bem cedo. Elas são curiosas, habilidosas e possuem excentricidades leve de vários tipos, características estas que, se desenvolvidas, constituiriam a base para sua criatividade para o resto das suas vidas. Considerando-se que a vida criativa é o alimento e a água para a alma, esse desenvolvimento básico é de importância de dolorosamente crítica.
Geralmente, o isolamento precoce começa sem que seja por nenhuma culpa da criança e é exacerbado pela incompreensão, pela crueldade da ignorância ou pela perversidade proposital dos outros. Nesse caso, o self básico da psique é ferida desde cedo. Quando isso acontece, a menina começa a acreditar que as imagens negativas dela mesma, refletidas pela família e pela cultura em que vive, são não só totalmente verdadeiras mas também totalmente isentas de preconceito, de influência da opinião e de preferências pessoais. A menina começa a acreditar que ela é fraca, feia, inaceitável, e que isso continuará a ser verdade não importa o esforço que ela faça para reverter a situação.
A menina é rejeitada pelo mesmos motivos que vemos na história do patinho feio. Em muitas culturas, existe uma expectativa, quando nasce uma filha, de que ela é ou será um certo tipo de pessoa, que aja de um certo modo consagrado pelo tempo, que siga um certo conjunto de valores que, se não forem idênticos aos da família, pelo menos se baseiem nos valores da família, e que seja como for não abale os alicerces. Essas expectativas têm definições muito estritas quando um dos pais, ou ambos, sofre do desejo de ter um "anjo de filha", a criança "perfeita" e obediente.
Na fantasia dos pais, qualquer dos filhos que tenham será perfeito e refletirá apenas o jeito de ser dos pais. Se a criança for rebelde, ela pode, infelizmente, ser alvo de repetidas tentativas dos pais no sentido de realizar uma cirurgia psíquica, pois eles estarão tentando remodelar a criança e, mais do que isso, alterar o que a alma da criança exige dela mesma. Embora sua alma exija ver, a cultura ao seu redor exige a cegueira. Embora sua alma deseje exprimir sua verdade, ela é forçada ao silêncio. Nem a alma da criança, nem sua psique, podem aceitar essa situação. A pressão no sentido de se "adequar", seja qual for a definição que a autoridade dê ao padrão, pode perseguir a criança até que ela fuja para longe, para um mundo oculto ou para vaguear muito tempo à procura de um lugar para se abrigar e viver em paz.

Clarissa Pinkola Estés

22 de agosto de 2018

Verter a lágrima


Na mitologia grega, havia um homem chamado Filoctetes. Diz-se que ele herdou o arco e flecha mágicos de Héracles. Filoctetes recebeu um ferimento no pé durante um combate. Esse ferimento, porém, não sarava. Pelo contrário, ele se tornou tão fétido e os gritos de dor tão horríveis que seus companheiros o abandonaram na ilha de Lemnos, deixando-o lá para morrer.
Filoctetes mal conseguia se alimentar usando o arco e flecha de Héracles para caçar pequenos animais. Seu ferimento, no entanto, supurou; e o cheiro foi ficando cada vez mais forte, de tal forma que qualquer navegante que se aproximasse da ilha, mesmo de longe, tinha de se desviar. Um grupo de homens, porém, conspirou para enfrentar o fedor do ferimento de Filoctetes a fim de roubar dele o arco e flecha mágicos.
Os homens tiraram a sorte, e a tarefa coube ao mais jovem. Os mais velhos o incentivaram a agir rápido e a viajar sob a proteção da noite. O jovem, portanto, içou as velas. Com o vento, porém, e superando o cheiro do mar, vinha um outro odor tão horrível que o rapaz precisou enrolar o rosto num pano molhado na água do mar para poder respirar. Nada, porém, conseguia proteger seus ouvidos dos gritos lancinantes de Filoctetes.
A lua estava envolta em nuvens. Isso é bom, pensou ele enquanto atracava o barco e se esgueirava até o torturado Filoctetes. Quando ele estendeu a mão para pegar os preciosos arco e flecha, a lua subitamente iluminou o rosto sofrido do velho agonizante. E algo no rapaz — ele não sabia dizer o quê — de repente o fez chorar. Ele foi dominado por uma compaixão e uma misericórdia persistentes.
Em vez de roubar o arco e a flecha do velho, o rapaz limpou o ferimento, preparou uma atadura e permaneceu ao seu lado, alimentando-o, limpando-o, acendendo o fogo e cuidando do velho até poder carregá-lo para Troia, onde Esculápio, o médico semidivino, poderia curá-lo.
A lágrima da compaixão é derramada em reação à percepção do ferimento fétido. Este tem origens e configurações diferentes para cada pessoa. Para alguns, ele representa dedicar toda uma vida a escalar penosamente uma montanha para descobrir, tarde demais, que se estava subindo na montanha errada. Para outros, ele reside em questões não-resolvidas e não-tratadas de abusos sofridos na infância.
Para outros ainda, ele é algum tipo de perda esmagadora na vida ou no amor. Um rapaz sofreu a perda do seu primeiro amor sem ter o apoio de ninguém e sem ter nenhuma noção de como poderia se recuperar. Durante anos a fio, ele vagueou em desalento, sempre negando que estivesse ferido. Outro homem era um jogador principiante numa equipe de beisebol profissional. Um acidente causou dano permanente a uma perna sua, e o sonho de uma vida inteira desapareceu da noite para o dia. O ferimento repugnante não estava apenas na tragédia, no dano físico, mas também no fato de o único bálsamo derramado sobre o ferimento durante vinte anos ter sido o rancor, abuso de drogas e as bebedeiras. Quando os homens sofrem de feridas semelhantes, dá para se sentir o cheiro de longe. Não há mulher, não há amor, não há carinho que cure um problema desses; somente a compaixão pelo próprio estado.
Quando o homem verte a lágrima, é que ele se deparou com a própria dor; e ele a reconhece ao tocá-la. Ele percebe como sua vida foi vivida de forma protegida em virtude do ferimento. Percebe tudo o que perdeu na vida devido ao ferimento. Vê como cerceou seu amor à vida, a si mesmo e ao outro.
Nos contos de fadas, as lágrimas transformam as pessoas, fazendo com que se lembrem do que é importante e salvando sua própria alma. Somente um coração empedernido refreia o choro e a união. Entre os sufis, existe um ditado, ou melhor, uma oração que pede a Deus que nos magoe: "Dilacere meu coração para que se crie um novo espaço para o Amor Infinito."

Clarissa Pinkola Estés

21 de agosto de 2018

Bonecas



Durante séculos, os seres humanos tiveram a sensação de que das bonecas emanava algo de sagrado e de maná — um pressentimento irresistível e impressionante que influencia as pessoas, fazendo com que mudem espiritualmente. Por exemplo, louva-se a raiz da mandrágora por sua semelhança ao corpo humano, com pernas e braços de raízes e um nó retorcido no lugar da cabeça; diz-se também que ela é provida de grande poder espiritual. Acredita-se que as bonecas sejam impregnadas de vida por quem as criou. Elas são usadas em ritos, rituais, vodus, feitiços de amor e de maldade. Elas são empregadas como símbolos de autoridade e talismãs para lembrar à pessoa da sua própria força.
Os museus do mundo inteiro transbordam de ídolos e imagens feitas de barro, madeira e metais. As imagens dos períodos paleolítico e neolítico são bonecas. As galerias de arte estão repletas de bonecas. Na arte moderna, as múmias envoltas em gaze, em tamanho natural, de Segal, são bonecas. Bonecas típicas de cada etnia abarrotam as lojas de souvenirs nas estações ferroviárias e nos postos de abastecimento das principais rodovias interestaduais. Entre os reis, as bonecas costumam ser dadas desde o passado remoto como sinais de simpatia. Nas igrejas rústicas pelo mundo inteiro há bonecas-santas. As bonecas-santas não só são limpas com regularidade e vestidas em trajes feitos à mão, mas também são "levadas a passear" para que possam observar as condições dos campos e das pessoas e, portanto, interceder nos céus em defesa dos seres humanos.
A boneca representa os homunculi simbólicos, a pequena vida. É o símbolo do numinoso e está sufocado nos seres humanos. Ela é um fac-símile pequeno e luminoso do Self original. Superficialmente, trata-se apenas de uma boneca. Por outro lado, existe nela um pequeno fragmento da alma que possui todo o conhecimento do Self maior da alma. Na boneca está a voz, em miniatura, da velha La Que Sabé, Aquela Que Sabe.
A boneca está relacionada aos símbolos do duende, do elfo, da fada e dos anões. Nos contos de fadas, eles representam uma profunda pulsação de sabedoria dentro da cultura da psique. São eles aquelas criaturas que continuam o trabalho interior e prudente, que são incansáveis. Eles estão trabalhando mesmo quando nós adormecemos, e especialmente quando estamos dormindo, mesmo quando não temos plena consciência do papel que estamos desempenhando.
Dessa forma, a boneca representa o espírito interior das mulheres: a voz da razão, do conhecimento e da conscientização íntima. A boneca assemelha-se ao passarinho dos contos de fadas que vem sussurrar no ouvido da heroína. Ele é quem revela o inimigo oculto e a atitude a tomar diante da situação. Essa é a sabedoria do homunculus, o pequeno ser interior. Ele é a ajuda que nem sempre está visível, mas que está sempre disponível.
Não há bênção maior que uma mãe possa dar à filha do que uma confiança na veracidade da sua própria intuição. A intuição é transmitida de pai para filho da forma mais simples. “Você tem um bom raciocínio. O que você acha que está por trás disso tudo?” Em vez de definir a intuição como alguma peculiaridade irracional e censurável, ela é definida como a fala da verdadeira voz da alma. A intuição prevê a direção mais benéfica a seguir. Ela se autopreserva, capta os motivos e intenções subjacentes e opta pelo que irá provocar o mínimo de fragmentação na psique.
 
Clarissa Pinkola Estés

O homem sinistro



Existe um sonho iniciático universal entre as mulheres. Ele é tão comum que é digno de nota o fato de uma mulher ter chegado aos vinte e cinco anos sem tê-lo tido. O sonho geralmente faz com que as mulheres acordem sobressaltadas, se debatendo e ansiosas.
Eis o padrão do sonho. Quem sonha está sozinha, muitas vezes na sua própria casa. Do lado de fora, no escuro, há um ou dois homens rondando. Assustada, ela disca o número de emergência para pedir ajuda. De repente, ela percebe que o ladrão está dentro de casa com ela... perto dela... talvez ela até sinta a respiração dele... talvez ele até a esteja tocando... e ela não consegue ligar para o telefone de emergência. Ela acorda de repente, com a respiração ruidosa, o coração batendo como um tambor descompassado.
O sonho com o homem sinistro tem um forte aspecto físico. Ele muitas vezes é acompanhado de suores, movimentos violentos, respiração difícil, aceleração dos batimentos cardíacos e às vezes de gritos e gemidos de medo. Poderíamos dizer que o criador do sonho desistiu de enviar mensagens sutis à sonhadora e agora manda imagens que abalam o sistema neurológico e o sistema nervoso autônomo da sonhadora, comunicando, assim, a urgência da questão. 
O(s) antagonista(s) nesse sonho com o homem sinistro são geralmente, nas palavras das próprias mulheres, “terroristas, estupradores, bandidos, nazistas de campos de concentração, saqueadores, assassinos, criminosos, homens desagradáveis, pervertidos, ladrões”. Existem diversos níveis para a interpretação de um sonho desse tipo, dependendo das circunstâncias da vida e dos dramas interiores que envolvem quem sonha.
Muitas vezes, por exemplo, esse tipo de sonho é um indicador confiável de que a consciência de uma mulher, como no caso de uma mulher muito jovem, está começando a perceber a existência do predador psíquico inato. Em outros casos, o sonho é um arauto: a mulher que sonha acabou de descobrir, ou está a ponto de descobrir e de começar a liberar, uma função cativa e esquecida da sua psique. Ainda sob outras circunstâncias, o sonho trata de uma situação cada vez mais intolerável na cultura que cerca a vida pessoal de quem sonha, situação que ela precisa combater ou da qual precisa fugir.
Em primeiro lugar, vamos compreender as ideias subjetivas contidas nesse tema em sua aplicação à vida pessoal e interior de quem sonha. O sonho do homem sinistro esclarece à mulher a situação difícil que enfrenta. O sonho fala de uma atitude cruel para consigo mesma, encarnada pelo bandido no sonho. Como a esposa do Barba-azul, se a mulher conseguir dominar conscientemente a pergunta-chave sobre a questão e respondê-la com honestidade, ela poderá se libertar. Então, os agressores, os que espreitam e os predadores da psique exercerão pressão muito menor sobre ela. Eles serão relegados a uma cama da distante do inconsciente. Lá, ela poderá lidar com eles com cuidado, em vez de no meio de uma crise.
O homem sinistro nos sonhos de mulheres aparece quando é iminente uma iniciação - uma mudança psíquica de um nível de conhecimento e de comportamento para outro nível mais maduro e mais cheio de energia. Esse sonho ocorre àquela que ainda será iniciada, bem como àquelas que já são veteranas de diversos ritos de passagem, pois sempre existe uma iniciação a mais. Não importa a idade atingida pela mulher, não importa quantos anos se passem, ela tem outras idades, outros estágios e outras “primeiras vezes” à sua espera. É nisso que se resume a iniciação: ela cria uma abertura através da qual a pessoa se prepara para passar de modo a alcançar um novo modo de ser e de conhecer.
Os sonhos são portais, entradas, preparações e ensaios para o próximo passo na consciência da mulher, para o dia seguinte no seu processo de individuação. Portanto, uma mulher poderia sonhar com o predador quando suas circunstâncias psíquicas estão excessivamente inertes ou complacentes. Poderíamos dizer que o sonho ocorre para provocar uma tempestade na psique para que algum trabalho vigoroso possa ser realizado. Além disso, o sonho dessa natureza afirma que a vida da mulher precisa mudar, que a mulher que sonha ficou enredada em algum hiato ou em algum estado inercial relacionado a alguma escolha difícil, que ela reluta em dar o passo seguinte, concluir o percurso seguinte, que ela está evitando arrancar sua própria força das mãos do predador, que ela não está acostumada a ser/agir/lutar a todo vapor, sem reservas. 
Ainda mais, os sonhos com o homem sinistro são também campainhas de alarme recomendando que prestemos atenção a algo que se desencaminhou radicalmente no mundo exterior, na vida pessoal ou na cultura coletiva. A psicologia tradicional apresenta, por total omissão, uma tendência a segregar a psique humana do relacionamento com a terra onde vivem os seres humanos, a isolá-la do conhecimento das etiologias culturais do mal-estar e do desassossego, bem como a apartar a psique das políticas e procedimentos que modelam as vidas interior e exterior dos seres humanos — como se aquele mundo exterior não fosse tão surrealista, não fosse tão carregado de símbolos, não tivesse tanto impacto e influência sobre a alma de cada um quanto o tumulto interior.
Quando o mundo exterior se intrometeu na vida espiritual básica de um indivíduo ou de muitos, os sonhos com o homem sinistro surgem em grande número. Para mim foi fascinante poder reunir sonhos de mulheres expostas a alguma aflição decorrente de algo de errado na cultura externa, como por exemplo das mulheres que viviam perto da poluente fundição de York City, Idaho, sonhos de mulheres extremamente conscientizadas envolvidas em atividades de natureza social e de proteção ambiental, como por exemplo Las guerrillas compañeras, irmãs guerreiras no sertão de Quebrada na América Central, mulheres nos Cofradios des Santuarios nos Estados Unidos e defensoras dos direitos civis em Latino County. Todas têm muitos sonhos com o homem sinistro.
Em termos gerais, haveria a impressão de que, para as sonhadoras ingênuas ou desinformadas, esses sonhos representariam alarme de despertador: “Hola! Preste atenção, você está correndo perigo.” E, para aquelas que já estão conscientizadas e engajadas em atividades de natureza social, o sonho com o homem sinistro seria quase um estimulante para lembrar à mulher o que ela está enfrentando, para incentivá-la a continuar forte, vigilante e a prosseguir com seu trabalho.
Portanto, quando as mulheres sonham com o predador natural, nem sempre se trata exclusivamente de uma mensagem sobre a vida interior. Às vezes é uma mensagem sobre os aspectos ameaçadores da cultura em que vivemos, quer se trate de uma cultura limitada, porém brutal, no escritório, dentro da própria família, na área da sua comunidade, quer seja tão ampla quanto uma cultura religiosa ou nacional. Como se pode ver, cada grupo e cada cultura parecem também ter seu próprio predador natural da psique. E, a partir da história, observa-se a ocorrência de períodos nas culturas durante os quais o predador é identificado com uma soberania absoluta, que lhe é permitida, até que as pessoas que discordam se transformam numa maré incontrolável.
Embora uma grande ver tente da psicologia dê ênfase às causas familiares na angústia dos seres humanos, o componente cultural tem o mesmo peso, pois a cultura é a família da família. Se a família da família sofre de várias enfermidades, todas as famílias dentro daquela cultura terão de lutar com os mesmos inconvenientes. Há um ditado que diz que a cultura cura. Se a cultura tem essa propriedade medicinal, as famílias aprendem a curar. Elas lutarão menos, serão mais reparadoras, ferirão muito menos, serão muito mais gentis e carinhosas. Numa cultura dominada pelo predador, toda nova vida que precisa nascer, bem como toda velha vida que precisa partir, é incapaz de se movimentar, e a vida espiritual dos seus cidadãos sofre um congelamento tanto pelo medo quanto pela inanição espiritual.
Por que motivo esse intruso que, nos sonhos das mulheres, assume na maioria das vezes a forma de um homem invasor procura atacar a psique instintiva e, em especial, seus poderes selvagens de conhecimento, ninguém sabe dizer ao certo. Dizemos que está na natureza das coisas. No entanto, encontramos esse processo destrutivo exacerbado quando a cultura em volta da mulher alardeia, alimenta e protege atitudes destrutivas para com a profunda natureza instintiva da alma. Com essas atitudes, a cultura fortalece dentro da psique de todos os seus habitantes esses valores extremamente destrutivos — com os quais o predador concorda avidamente. Da mesma forma quando uma sociedade exorta seu povo a desconfiar da profunda vida instintiva e a evitá-la, o elemento autopredatório nas nossas psiques é reforçado e acelerado.
Contudo, mesmo numa cultura opressora, em qualquer mulher na qual a Mulher Selvagem ainda viva e viceje ou apenas cintile, haverá perguntas-chave sendo feitas, não só aquelas que nos são úteis para o insight particular de cada um, mas também aquelas que tratam da nossa cultura. “O que está por trás dessas proibições que vemos no mundo exterior?” “Que parte boa ou útil no indivíduo, na cultura, na terra, na natureza humana foi morta ou está morrendo por aqui?” Uma vez examinadas essas questões, a mulher está capacitada para agir de acordo com sua própria competência, com seu próprio talento. Tomar o mundo nas mãos e agir com ele de um modo inspirado e fortalecedor da alma é um poderoso ato do espírito selvagem.
É por esse motivo que a natureza selvagem das mulheres precisa ser preservada — e até mesmo, em alguns casos, protegida com extrema vigilância para que não seja de repente sequestrada e estrangulada. É importante alimentar essa natureza instintiva, abrigá-la, dar-lhe condições de expansão, pois mesmo nas condições mais restritivas da cultura, da família e da psique, a paralisia é muito menor nas mulheres que mantiveram seu vínculo com a natureza instintiva profunda e selvagem. Embora haja danos se uma mulher for presa e/ou induzida a se manter ingênua e submissa ainda sobra energia suficiente para superar o carcereiro, escapar dele, correr mais do que ele e, finalmente, dividi-lo e desmanchá-lo para seus próprios usos construtivos. 
Existe uma outra ocasião específica na qual é altamente provável que as mulheres tenham sonhos com o homem sinistro; e ela ocorre quando o fogo criador interno está abafado, soltando fumaça, sozinho, quando resta pouca lenha por perto, ou quando as cinzas brancas a cada dia ficam mais altas e a panela continua vazia. Essas síndromes podem surgir mesmo quando somos veteranas na nossa arte, bem como quando começamos a sério a aplicar nossos dons no mundo exterior. Elas surgem quando ocorre uma invasão predatória da psique e, consequentemente, descobrimos todas as razões para fazer qualquer coisa menos sentar ali, ficar ali paradas ou ir até lá para realizar não importa o quê que nos seja caro.
Nesses casos, o sonho com o homem sinistro muito embora acompanhado de um medo que sobressalta o coração, não é um sonho agourento. Ele é muito positivo e trata de uma necessidade correia e oportuna de acordar para um movimento destrutivo dentro da própria psique; para aquilo que está furtando nosso fogo; intrometendo-se na nossa energia; roubando de nós o lugar, o espaço, o tempo e o território para a criação.
Muitas vezes a vida criativa é retardada ou interrompida porque alguma parte da psique tem de nós uma opinião muito desfavorável, e nós estamos ali rastejando aos seus pés em vez de lhe dar um golpe na cabeça e sair correndo livres. Em muitos casos, o que é necessário para corrigir a situação é que levemos mais a sério do que nunca nossas ideias, nossa arte e a nós mesmas. Em virtude de grandes quebras de continuidade nas linhas de auxílio matrilineares pelas gerações afora, esse tema de valorização da nossa vida criativa — ou seja, a valorização das ideias e obras engenhosas e belas que emanam da alma selvagem — tornou-se uma questão permanente para as mulheres.
No meu consultório fiquei olhando enquanto certas poetas jogavam no sofá folhas com seus trabalhos como se sua poesia fosse um lixo em vez de um tesouro. Vi pintoras trazerem seus quadros para uma sessão, deixando que eles bates sem no batente da porta ao entrar. Vi o brilho da inveja nos olhos das mulheres quando tentam disfarçar sua raiva pelo fato de outros parecerem ser capazes de criar enquanto elas próprias, por algum motivo, não conseguem.
Ouvi todas as desculpas que uma mulher poderia conceber. Não tenho talento. Não sou importante. Não tenho instrução. Não tenho ideias. Não sei como fazer. Não sei o que fazer. Não sei quando fazer. E a mais revoltante de todas: não tenho tempo. Sempre sinto vontade de sacudi-las até que se arrependam e prometam nunca mais contar mentiras. Mas não preciso sacudi-las, pois o homem sinistro dos sonhos cumprirá essa função e, se não for ele, outro agente onírico qualquer o fará.
O sonho com o homem sinistro é apavorante, e os sonhos apavorantes com enorme frequência são muito bons para a criatividade. Eles mostram à artista o que lhe acontecerá se ela se permitir ser reduzida a uma talentosa inválida. Esse sonho com o homem sinistro é muitas vezes o suficiente para apavorar a mulher, fazendo com que ela volte a criar. No mínimo, ela poderá criar obras que elucidem o homem sinistro nos seus próprios sonhos.
A ameaça do homem sinistro serve como advertência para todas nós — se você não prestar atenção aos seus tesouros, eles lhe serão roubados. 
 
Clarissa Pinkola Estés

Amélia decide morrer


A imagem de felicidade dessa avó consistia em tomar o trem até Chicago usando um belo chapéu e sair caminhando pela Michigan Avenue, olhando todas as vitrines e sentindo-se elegante. Por um motivo ou outro, ou talvez pelo destino, ela se casou com um homem do campo. Eles foram morar no meio da região tritícola, e a mulher começou a definhar na elegante casa de fazenda que era pequena, exatamente do tamanho certo, com todos os filhos certos e o marido certo. Ela já não tinha mais tempo para a vida "frívola" que havia levado no passado. "Filhos demais." "Serviço doméstico demais."
Um dia, anos mais tarde, depois de lavar o piso da cozinha e da sala de estar com as próprias mãos, ela vestiu sua melhor blusa de seda, abotoou sua saia longa e colocou seu chapéu na cabeça. Empurrou o cano da espingarda do marido contra o céu da boca e puxou o gatilho. Qualquer mulher viva sabe porque ela lavou o chão antes.
Uma alma faminta pode ficar tão cheia de dor que a pessoa não consegue suportar mais. Como as mulheres têm uma necessidade profunda da alma em se expressar em seus próprios estilos de alma, elas precisam se desenvolver e florescer de um modo que faça sentido para elas, sem serem molestadas pelos outros. (...) Quem dentre nós não conhece pelo menos uma mulher amada que perdeu seus instintos para fazer boas opções na vida e foi, assim, forçada a viver uma vida alienada ou pior? Talvez você mesma seja essa mulher.

Clarissa Pinkola Estés
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