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12 de maio de 2018

Farsa e tragédia


Quando um neurótico repete pela décima quarta vez a mesma conduta de fracasso, reproduzindo para si próprio e para seus próximos o mesmo tipo de infelicidade, ajudá-lo a sair disso é eliminar de sua vida a farsa grotesca e não a tragédia; é permitir que ele veja enfim os problemas reais de sua vida e o que podem contar de trágico - que sua neurose tinha por função, em parte, exprimir, mas sobretudo, mascarar.

Cornelius Castoriadis

11 de maio de 2018

Por uma outra sociedade


Tenho o desejo e sinto necessidade, para viver, de uma outra sociedade diferente dessa que me rodeia. Como a grande maioria dos homens, posso viver nesta aqui e acomodar-me - de qualquer forma, vivo nela. Por mais criticamente que tente olhar-me, nem minha capacidade de adaptação, nem minha assimilação da realidade me parecem inferiores ao meio sociológico. Não peço a imortalidade, a ubiquidade, a onisciência. Não peço que a sociedade "me dê a felicidade"; sei que isso não é uma ração que poderia ser distribuída pela municipalidade ou pelo Conselho operário do bairro, e que, se esta coisa existe, somente eu posso construi-la para mim, nas minhas medidas, como já me aconteceu e como ainda acontecerá, sem dúvida. Mas na vida, como ela é feita para mim e para os outros, entrechoco-me com uma quantidade de coisas, inadmissíveis, digo que elas não são fatais e que decorrem da organização da sociedade. Desejo e peço que antes de tudo meu trabalho tenha um sentido, que eu possa aprovar aquilo a que lhe serve e a maneira como é feito e que me permita entregar-me a ele verdadeiramente e usar minhas faculdades, bem como enriquecer-me e desenvolver-me. E digo que isso é possível, com uma outra organização da sociedade, para mim e para todos. Digo que já seria uma mudança fundamental nesse sentido, se me deixassem decidir, com todos os outros, o que tenho a fazer, e, com meus companheiros de trabalho, como fazê-lo.
Desejo poder, com todos os outros, saber o que se passa na sociedade, controlar a extensão e a qualidade da informação que me é dada. Peço para poder participar diretamente de todas as decisões sociais que possam afetar minha existência ou o curso geral do mundo em que vivo. Não aceito que meu destino seja decidido, dia após dia, por pessoas cujos projetos me são hostis ou simplesmente desconhecidos e para quem não passamos eu e todos os outros, de números num plano ou peões sobre um tabuleiro de xadrez e que em última análise minha vida e morte estejam nas mãos de pessoas que sei serem necessariamente cegas.
Sei perfeitamente que a realização de uma outra organização social, e sua vida, não serão absolutamente simples, que elas encontrarão a cada passo problemas difíceis. Mas prefiro antes lidar com problemas reais do que com as consequências do delírio de de Gaulle, as astúcias de Johnson ou as intrigas de Kruchev. Se acaso devemos, eu e os outros, encontrar o fracasso nesse caminho, prefiro o fracasso numa tentativa que tem sentido a um estado que permanece aquém do fracasso e do não fracasso, que permanece irrisório
Desejo poder encontrar o outro como um ser igual a mim e absolutamente diferente, não como um número, nem como um sapo empoleirado sobre outro degrau (inferior ou superior, pouco importa) da hierarquia dos rendimentos e dos poderes. Desejo poder vê-lo e que ele possa ver-me como um outro ser humano, que nossas relações não sejam um campo de expressão da agressividade, que nossa competição permaneça dentro dos limites do jogo, que nossos conflitos, na medida em que não possam ser resolvidos ou superados, digam respeito a problemas e lances reais, envolvam o mínimo possível de inconsciente, o mínimo possível de imaginário. Desejo que o outro seja livre, porquanto minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro, e, sozinho, posso no máximo ser "virtuoso na infelicidade". Não espero que os homens se transformem em anjos, nem que suas almas tornem-se puras como lagos da montanha - que aliás sempre me entediaram profundamente. Sei, porém, o quanto a cultura atual agrava e exaspera a sua dificuldade de ser e de ser com os outros e vejo que ela multiplica ao infinito os obstáculos à sua liberdade.
Sei, certamente, que esse desejo não pode ser realizado atualmente; nem também a revolução se ocorresse amanhã, poderia realizar-se integralmente durante a minha vida. Sei que haverá homens um dia para os quais não existirá nem mesmo a lembrança dos problemas que possam mais nos angustiar hoje. É esse meu destino, o qual devo assumir e assumo. Mas isso não pode reduzir-me nem ao desespero, nem à ruminação catatônica. Tendo esse desejo que é meu, só posso trabalhar para sua realização. E já na escolha que faço do principal interesse de minha vida, no trabalho a que me consagro, cheio de sentido para mim (mesmo se nele encontro, e aceito, o fracasso parcial, os prazos, os desvios, as tarefas em si mesmas sem sentido), no participar de uma comunidade de revolucionários que tenta ultrapassar as relações reificadas e alienadas da sociedade atual - estou em condições de realizar parcialmente esse desejo. Se eu tivesse nascido numa sociedade comunista, a felicidade ter-me-ia sido mais fácil - nada sei e nada posso quanto a isso. Não vou, sob esse pretexto, passar meu tempo livre vendo televisão ou lendo romances policiais.

Cornelius Castoriadis

A atualidade do pensamento marxista


Desde que se registra a história do pensamento humano, as doutrinas filosóficas se sucedem interminavelmente. Desde que podemos acompanhar a evolução das sociedades, ideias e movimentos políticos aí estão presentes. E de todas as sociedades históricas podemos dizer que foram dominadas pelo conflito, aberto ou latente, entre camadas e grupos sociais, pela luta de classes. Mas, a cada vez, a visão do mundo, as ideias sobre a organização da sociedade e do poder e os antagonismos efetivos das classes só se ligaram entre si de forma subterrânea, implícita, não consciente. E a cada vez aparecia uma nova filosofia, que iria responder aos problemas que as precedentes haviam deixado em aberto, outro movimento político fazia valer suas pretensões, numa sociedade dilacerada por um novo conflito - e sempre o mesmo.
O marxismo apresentou, em seu começo, uma exigência inteiramente nova. A união da filosofia, da política e do movimento real da classe explorada na sociedade não seria uma simples adição, mas sim uma síntese verdadeira, uma unidade superior na qual cada um destes elementos iria ser transformado. A filosofia podia ser outra coisa e mais do que filosofia, mais que um refúgio da impotência e uma solução dos problemas humanos na ideia, na medida em que traduziria suas exigências numa nova política. A política podia ser outra coisa e mais do que política, que técnica, manipulação, utilização do poder para fins particulares, na medida em que se tornasse a expressão consciente das aspirações e dos interesses da grande maioria dos homens. A luta da classe explorada podia ser mais do que uma defesa de interesses particulares, na medida em que esta classe visasse, através da supressão de sua exploração, a supressão de toda exploração, através de sua própria liberação a liberação de todos e a instauração de uma comunidade humana - a mais elevada das ideias abstratas a que a filosofia tradicional tinha podido alcançar.
O marxismo estabelecia assim o projeto de uma união da reflexão e da ação, da mais elevada reflexão e da ação mais cotidiana. Ele estabelecia o projeto de uma união entre os que praticam esta reflexão e esta ação e os outros, da supressão da separação entre uma elite ou uma vanguarda e a massa da sociedade. Ele quis ver no dilaceramento e nas contradições do mundo atual, mais do que uma reedição da eterna incoerência das sociedades humanas, ele quis sobretudo fazer disso outra coisa. Ele pediu que se visse na contestação da sociedade pelos homens que nela vivem, mais do que um fato bruto ou uma fatalidade, os primeiros balbucios da linguagem da sociedade futura. Visou a transformação consciente da sociedade pela atividade autônoma dos homens cuja situação real leva a lutar contra ela; e viu esta transformação não como uma explosão cega, nem como uma prática empírica, mas como uma praxis revolucionária, como uma atividade consciente que permanece lúcida quanto a si mesma não se alienando em uma nova "ideologia".
Esta nova exigência foi o que o marxismo trouxe de mais profundo e mais durável. Foi ela, que, efetivamente, fez do marxismo algo mais do que outra escola filosófica ou um outro partido político. É ela que, no plano das ideias, justifica que falemos ainda do marxismo hoje em dia, obrigando-nos mesmo a fazê-lo.

Cornelius Castoriadis

10 de maio de 2018

O discurso histórico também é História


Quando falamos de história, quem fala? É alguém de uma época, de uma sociedade, de uma classe determinada - em suma, é um ser histórico. Ora, exatamente isso que fundamenta a possibilidade de um conhecimento histórico (posto que somente um ser histórico pode ser uma experiência da história e disso falar), é o que impede que este conhecimento possa um dia adquirir o estatuto de um saber totalizado e transparente - já que é, em si mesmo, em sua essência, um fenômeno histórico que exige ser captado e interpretado como tal. O discurso sobre a história está incluído na história.

Cornelius Castoriadis

9 de maio de 2018

O marxismo e o sentido da vida


A ideia de que o sentido da vida consistiria  na acumulação e na conservação de riquezas seria uma loucura para os índios kwakiutl, que acumulam riquezas para poder destruí-las; a ideia de procurar o poder e o comando seria loucura para os índios zuni, entre os quais, para fazer de alguém um chefe de tribo, é preciso espancá-lo até que aceite. Marxistas míopes escarnecem quando citamos estes exemplos que eles consideram curiosidades etnológicas. Mas se existe uma curiosidade etnológica no caso, é precisamente a constituída por estes "revolucionários" que erigiram a mentalidade capitalista em conteúdo eterno de uma natureza humana sempre igual e que, falando interminavelmente sobre a questão colonial e o problema dos países mais atrasados, esquecem, em seus raciocínios, dois terços da população do globo. Porque um dos maiores obstáculos que a penetração do capitalismo encontrou e encontra sempre, é a ausência de motivações econômicas e da mentalidade de tipo capitalista entre os povos de países atrasados. É clássico, e sempre atual, o caso dos africanos que trabalhando como operários durante algum tempo, abandonam o trabalho tão logo conseguem juntar a soma que tinham em vista e voltam para a sua cidade, para retomar o que, a seus olhos, é a única vida normal. A partir do momento em que conseguiu constituir uma classe de operários assalariados entre estes povos, o capitalismo, como já mostrava Marx, não conseguiu somente reduzi-los à miséria, destruindo sistematicamente as bases materiais de sua existência independente. Conseguiu, também, destruir impiedosamente os valores e as significações de sua cultura e de sua vida - isto é, fazer efetivamente este conjunto de um aparelho digestivo faminto e de músculos prontos para um trabalho destituído de sentido, que é a imagem capitalista do homem.

Cornelius Castoriadis
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