6 de setembro de 2017

Procissões


A primeira procissão que tivemos ocasião de observar foi a de quarta-feira de cinzas. Organizada pela Ordem Terceira de São Francisco, partiu da Capela da Misericórdia, percorreu as ruas principais da cidade e entrou no Convento de Santo Antônio. Cerca de vinte ou trinta andores, carregados ao ombro pelos homens, tomaram parte no cortejo. Alguns levavam imagens isoladas, outros transportavam grupos representando passagens das Escrituras ou da história da Igreja. As vestimentas das imagens eram todas muito vistosas. Os andores sobre os quais estavam instaladas aparentavam grande peso, necessitando às vezes de quatro, seis e oito homens para carregá-los, e estes mesmos não os aguentavam por muito tempo. Precisavam revezar com outros que iam ao lado, como se costuma fazer nos enterros. As ruas ficavam apinhadas de povo, notando-se numerosos escravos que pareciam se divertir vendo seus senhores empenhados em trabalhos pesados. De fato, estes se cansavam a ponto de correr o suor sobre seus rostos, como água. As imagens passavam pelo meio da rua entre alas de homens que levavam tocheiros com velas de cera, de diversos pés de comprimento. À frente de cada grupo de imagens ia um anjo conduzido por um padre e espalhando pétalas de flores pelo trajeto.
Como talvez o leitor deseje saber que espécie de anjos eram esses que tomavam parte nas festas, devemos explicar que constituíam eles uma classe especialmente criada para em tais ocasiões servir de guarda de honra aos santos.
Meninas de oito a dez anos eram geralmente as escolhidas para saírem de anjo, sendo então paramentadas com indumentária fantástica. A ideia dessas roupas parecia ser a de imitar o corpo e as asas dos anjos, para o que as mangas levavam armações especiais sobre as quais esvoaçavam gases, fitas, rendas, ouropéis e penas de variegadas cores. Na cabeça levavam uma espécie de tiara. Os cabelos caíam em cachos, e o ar triunfal com que as crianças marchavam indicava que compreendiam perfeitamente a honra de constituírem os principais objetos de admiração.
Contrastando com a roupa e o aparato desses anjos, caminhava ao lado o escravo servil, levando sobre a cabeça uma caixa ou cesta cheia de flores para, de vez em quando, suprir a salva de prata de onde o anjo as tirava para espargir sobre o chão.
Guardas e bandas militares abriam e fechavam o cortejo. O passo era lento e medido, com paradas frequentes para proporcionar aos irmãos pequenos descansos, e ao povo oportunidade de admirar a procissão. Pouca gente parecia se emocionar com o espetáculo. Quando quisessem podiam ver nas igrejas essas mesmas imagens ou outras dos mesmos santos e, se a ideia dessas demonstrações era a de edificar o povo, poderiam adotar outras maneiras mais fáceis e proveitosas. De fato a cena apresentava pouca solenidade e essa mesma era emprestada principalmente pelos irmãos que iam suando e se estafando sob o peso dos andores; até estes, de vez em quando procuravam se estimular dando prosa uns aos outras ou gracejando, quando os rendiam os substitutos.
Quando levavam a hóstia, nessas procissões, pouca gente se ajoelhava à sua passagem, mas ninguém jamais se lembrava de obrigar os recalcitrantes a tão profunda reverência.
Nenhuma outra classe se entregava com maior devotamento a tais demonstrações religiosas que os negros, particularmente lisonjeados com a aparecimento, de vez em quando, de um santo de cor ou de uma Nossa Senhora preta. "Lá vem o meu parente", exclamou certa vez um negro velho que se achava perto de nós quando viu surgir em meio à procissão a imagem de um santo de cabelo encarapinhado e lábios grossos; e, no seu transporte de alegria, o velho exprimiu exatamente os sentimentos visados com tais expedientes.

Daniel Kidder

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