Mostrando postagens com marcador Rachel de Queiroz. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rachel de Queiroz. Mostrar todas as postagens

31 de agosto de 2023

Criar seu filho


Alguém me escreve pedindo que lhe diga qualquer coisa sobre a arte de criar um filho. Que neste mundo confuso de hoje uma pobre mãe se vê tonta; dantes era só ensinar o ABC, a doutrina, o temor de Deus e dos pais e dormir de coração descansado, porque a batalha estava ganha. Mas hoje, o menino não aceita singelamente a doutrina que lhe ensinar, como não aceita temor nenhum, do céu nem da terra. E há tantas teorias, tantas receitas de vencer na vida...
Sim, minha senhora, sobre a arte de criar filhos se tem escrito toneladas de tratados. A bibliografia a esse respeito é talvez uma das maiores do mundo. Cada religião, cada seita, cada filosofia, cada ramo didático, tem as suas teorias próprias, e todas se imaginam excelentes. De forma que o melhor recurso de ficar em paz com a sua consciência é verificar qual a teoria religiosa, social ou política à qual a senhora se sente mais ligada e, de acordo com os padrões dessa doutrina, educar o seu filho. O mundo anda cheio de pedagogos, não lhe será difícil a escolha. 
Eu é que não lhe posso indicar nada. Não tenho filhos, não passei nem passarei, portanto, pela experiência de criá-los. E se eu tivesse um filho suponho que o haveria de amar com uma cegueira de amor tão grande que provavelmente esse amor excessivo me haveria de incapacitar para qualquer esforço educativo. Deus sabe o que faz, e talvez por isso mesmo negou-me o que dá às outras. Contudo, se eu conseguisse vencer essa fraqueza amorosa que receio, nem assim acredito que o meu sistema de educação lhe fosse parecer desejável. Porque eu não ensinaria a meu filho nenhuma das artes de vencer na vida, não incutiria nele nenhum desejo de triunfo ou de grandeza. Pelo contrário, a primeira coisa que eu haveria de ensinar a meu filho seria a humildade. A consciência profunda da nossa pequenez, da nossa miséria, da nossa transitoriedade. A sujeição à carne, ao trabalho, à morte. Mostrar-lhe-ia o grande mundo tão povoado e ele tão pequeno e tão só dentro desse mundo. Cada um tão só - ele e eu e nós todos. Sim porque depois da humildade eu ensinaria o meu filho a reconhecer e a aceitar a solidão. Como são ilusórias as multidões, como é frustrado o nosso instinto gregário, como qualquer comunicação real é impossível, como não nos livra da solidão sequer o amor mais profundo e mais completo. Começando por nós dois - embora eu o carregasse ao colo, não via ele como cada um continuava fechado na sua solidão, a alma tão protegida e defesa contra os demais como o corpo na sua pele impermeável? E assim como o corpo não se comunica - e da sua sua impermeabilidade depende a sua integridade - também para a alma a comunicação representa a impossibilidade e a morte.
Depois eu ensinaria a meu filho, naturalmente, o amor dos seus semelhantes; provavelmente talvez nem precisasse ensinar - deixá-lo-ia seguir o seu instinto natural. Mas encaminharia esse amor de preferência aos pequenos, aos numerosos, aos sem nome e sem história. Quando o quisesse arrebatar de admiração ante um heroísmo e uma grandeza, contar-lhe-ia a vida dos povos da terra, chineses e judeus, camponeses da Europa, colonos da América, negros escravos, operários de fábrica, soldados, vaqueiros, desempregados. Como se luta com os flagelos - enchentes, secas, pestes, guerras, senhores. Como se passa fome, como se sofre e como se morre, como os homens se reproduzem feito árvores, feito bichos sem nome, e quanto obscuro heroísmo há nessa obstinação de perpetuar-se e sobreviver a despeito de tudo. Não lhe diria nomes de reis ou de soldados: de modo geral evitaria dizer-lhe nomes. Jamais lhe contaria os feitos de Alexandre ou de César - meu Deus, tremo só de pensar no perigo de ver meu filho contaminado pelo abjeto culto ao herói, querendo ele também ser um malfeitor tal qual eles, matar homens, escravizá-los, possuí-los. Não sei se expliquei direito a minha ideia: é que ao mesmo tempo que ensinasse a meu filho o indiscriminado amor pela humanidade, eu lhe ensinaria também o temor do indivíduo. Basta um homem acreditar em si, imaginar-se diferente ou único, para representar uma ameaça, e eu ensinaria a meu filho a temer essa ameaça. Porque a diferença que em si constata esse homem único fá-lo atribuir a si próprio um valor acima dos demais homens e cobrar dos demais homens o preço desse valor. Tais indivíduos é que representam o perigo máximo para o mundo de criaturas debilitadas pela pobreza e pelo número que o meu filho aprendera a amar, são o mal e são a Besta, quer se chamem Carlos V, Napoleão, Frederico o Grande, ou Hitler. Como primeira defesa contra a sedução desses indivíduos ensinaria eu o meu filho a temer a autoridade, toda vez que essa autoridade tivesse um nome, emanasse de um homem, em vez de representar a força coletiva da defesa comum. Temer a autoridade não só contra si, mas também a seu favor e mormente temer a desgraça de reter nas mãos qualquer partícula dessa autoridade necessariamente espúria, porque sempre representa uma violência. E por falar em violência, aí, acima de tudo, fugir da violência. Que nenhum prêmio paga o preço da violência, nenhum fim justifica o seu uso.
Ensiná-lo-ia também a aceitar e a praticar o trabalho; não propriamente porque acredite na nobreza ingênita do trabalho - muitas vezes ele é vil e humilha. Mas até hoje foi o trabalho o único processo descoberto pelos homens para lhes dar independência e lhes garantir a segurança.
Creio que não mandaria o meu filho seguir de olhos fechados o curriculum obrigatório dos estudos, tal como é feito nas escolas. Deixaria que a sua curiosidade o guiasse; se ele tivesse sede da verdade e da ciência, procuraria satisfazer o seu desejo: o amor do estudo, como qualquer outro amor, tem que ser espontâneo para não ser um castigo. E se ele não tivesse tal sede de estudo, por que fazer do meu filho um cativo de ideias alheias, por amor de o padronizar ao modelo dos homens da sua classe? E pensando nisso, qual seria a classe social do meu filho? De mim, não lhe imporia nenhuma. Antes lhe ensinaria o desamor a qualquer hierarquia e prestígio social. O ridículo dessas camadas sucessivas de homens catalogados pelo preço, como mercadorias numa loja; as misérias que por amor delas se toleram, a negação de humanidade e fraternidade que elas representam. Procuraria fazê-lo sentir como um desejo impuro qualquer ambição de triunfo ou grandeza. "Estude meu filho, se quiser ser alguém". Considero essa frase quase criminosa. O único estímulo que eu lhe ousaria dar nesse sentido seria apenas este: "Estude, meu filho, se se atreve a enfrentar o conhecimento".
E, acima de tudo, não lhe incutiria nenhuma noção de bem ou de mal, porque todo o meu esforço seria no sentido de tornar para o meu filho o bem uma necessidade em si, indiscutível, qualquer coisa obrigatória e sem alternativa.
Vê assim, minha senhora, que o meu programa não serve. Porque o filho, criado de acordo com tais ideias, haveria de viver sem nome e morrer sem ruído, e a senhora não deseja para o seu rapaz destino tão humilde, quer fazer dele um cidadão-modelo e uma glória para o seu país. É o que em geral desejam todas as mães, e afinal talvez tenham razão elas e não eu, já que elas são a maioria esmagadora e eu sou uma miserável e solitária unidade.   

Rachel de Queiroz

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...