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16 de junho de 2017

A dependência é a raiz de todos os males


O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.
Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é um servir o outro. Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos. Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes subdividem-se em mil outras, essas outras num sem número de cambiantes diferentes. Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da sua própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras terminam com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo o homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo o homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem. Tal como é, é impossível o gênero humano subsistir, a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará a sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: este país é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer no vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir. Nos íntimos refolhos do coração todo o homem tem o direito de crer-se de todo o ponto de vista igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar ao seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: "Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço". Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte. 
 
Voltaire

28 de outubro de 2016

O velho brâmane


Durante as minhas viagens encontrei um velho brâmane – homem muito sábio, cheio de espírito e erudição; além do mais, era rico, e portanto mais sábio ainda, já que, como não lhe faltava nada, não precisava enganar ninguém. Sua casa era otimamente governada por três lindas mulheres que faziam de tudo para agradá-lo; e quando não se divertia com elas, sua ocupação era filosofar.
Perto de sua moradia, que era bonita, bem decorada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, muito devota, imbecil e extremamente pobre.
- Quem me dera não ter nascido! – disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. – Faz quarenta anos que eu estudo – respondeu-me -, e foram quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tanta humilhação e desgosto que faz com que minha vida seja insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; encontro-me num ponto no meio das duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima ideia do que seja a eternidade. Sou feito de matéria, penso, e nunca pude saber o que é que produz o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de caminhar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não apenas o princípio do meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio dos meus movimentos: não sei porque existo. Não obstante, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo depois de haver falado. O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vishnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! Meu reverendo”, imploram-me, “dizei-me como é que o mal inunda toda a Terra.” Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que foram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco; retiro-me abatido pela sua curiosidade e pela minha ignorância. Vou consultar nossos antigos livros, e estes duplicam minha escuridão. Vou consultar meus companheiros: respondem-me alguns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros acreditam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo contribui para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Às vezes me sinto à beira do desespero, quando penso que, depois de todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho nem para onde vou nem no que me transformarei.
O estado desse excelente homem me causou verdadeira compaixão: ninguém tinha mais senso e boa fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.
Vi no mesmo dia a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez havia ficado aflita por querer saber como era a sua alma. Ela nem entendeu a minha pergunta: jamais em sua vida refletira um instante sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vishnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, considerava-se a mais feliz das mulheres.
Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei ao meu filósofo e lhe disse:
- Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta uma velha autômata que não pensa em nada e vive feliz?
- Tens razão – respondeu-me ele. – Mil vezes eu disse a mim mesmo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, contudo não desejaria tal felicidade.
Essa resposta me impressionou mais que todo o resto; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil.
Apresentei a questão a filósofos, e eles concordaram com a minha opinião. “Contudo”, dizia eu, “existe uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se trata, afinal? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo mesmos estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não têm tanta certeza de raciocinar bem. “É claro”, dizia eu, “que se deveria preferir não ter senso comum, desde que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.” Todos concordaram comigo, porém não encontrei ninguém que aceitasse se tornar imbecil para se sentir contente. Daí concluí que, se damos muito valor à felicidade, damos mais ainda à razão.
Contudo, pensando bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como explicar, então, tal contradição? E também todas as outras. Há muito a discutir a respeito disso.
 
Voltaire

Tortura


Trata-se de uma estranha maneira de interrogar as pessoas. Não foram, porém, simples curiosos os que a inventaram; segundo todas as aparências, esta parte da nossa legislação deve a sua origem primeira a um ladrão de estrada. Na sua maior parte, estes senhores conservam o hábito de serrar polegares, de queimar os pés e de interrogar mediante outros tormentos os que se recusam a revelar onde têm o dinheiro.
Os conquistadores, que sucederam a estes ladrões, acharam que a invenção era muito útil para os seus interesses; puseram-na em prática quando suspeitaram que haveria alguns maus desígnios contra eles, como, por exemplo, o de ser-se livre, verdadeiro crime de lesa-majestade divina e humana. Era preciso conhecer os cúmplices; e, para esse efeito, fazia-se sofrer mil mortes a todos aqueles que eram objeto de suspeitas, pois, segundo a jurisprudência desses primeiros heróis, quem quer que fosse suspeito de ter tido algum pensamento pouco respeitoso contra eles era digno de morte. Desde que assim se merece a morte, pouco importa acrescentar tormentos pavorosos durante muitos dias e até semanas; esta prática tem mesmo um não-sei-quê de Divindade. A Providência submete-nos algumas vezes à tortura empregando a pedra, areias na urina, a gota, o escorbuto, a lepra, a varíola grande ou pequena, o despedaçamento das entranhas, as convulsões de nervos e outros executantes das vinganças da Providência.
Ora, posto que os primeiros déspotas foram, segundo confissão de todos os seus cortesãos, imagens da Divindade, trataram de a imitar tanto quanto puderam.
Os franceses que passam, não sei por que, por serem um povo muito humano, admiram-se que os ingleses, que tiveram a desumanidade de nos tomarem todo o Canadá hajam renunciado ao prazer de aplicar a tortura.
Quando o cavaleiro de La Barre, neto de um tenente dos exércitos, jovem de muito espírito e grandes esperanças mas com toda a leviandade de uma juventude desenfreada, foi reconhecido culpado de ter cantado algumas canções ímpias e até de ter passado diante de uma procissão de capuchos sem tirar o chapéu, os juízes de Abbeville, pessoas comparáveis aos senadores romanos, ordenaram não só que lhe arrancassem a língua, que lhe cortassem a mão e que o queimassem lentamente, como o submeteram ainda à tortura para averiguarem precisamente quantas canções tinha cantado e quantas procissões tinha visto passar de chapéu na cabeça.
Este episódio aconteceu não nos séculos XIII ou XIV mas no século XVIII. As nações estrangeiras julgam a França pelos espetáculos, pelos romances, pelos lindos versos, pelas pequenas da ópera, cujos costumes são tão doces, pelos nossos bailarinos, que têm tanta graça, pela senhorita Clairon, que é um encanto a declamar versos. Ignoram que no fundo não há nação mais cruel que a francesa.
 
Voltaire

23 de outubro de 2016

Em briga de marido e mulher...


Zadig passeava pelos jardins dos arredores. De repente avistou, não distante da estrada real, uma mulher que gritava por socorro e um homem furioso que a perseguia. O homem a estava alcançando e ela, caída, abraçava-lhe os joelhos. O homem enchia-a de pancadas e censuras. Pela violência do egípcio e pelos insistentes pedidos de perdão que lhe pedia a dama, Zadig percebeu que ele era ciumento e ela, infiel. Mas, depois de reparar naquela mulher, que era de sublime beleza e até se parecia um pouco à infeliz Astartéia, sua amada, sentiu-se tomado de compaixão por ela e ódio pelo egípcio.
- Ajude-me! - gritou ela para Zadig, entre soluços. - Arranque-me das mãos do mais bárbaro dos homens, salve-me a vida!
A esses pedidos, Zadig lançou-se entre ela e aquele bárbaro. Tinha algum conhecimento da língua egípcia, e assim lhe falou:
- Se possui alguma humanidade, peço-lhe que respeite a beleza e a fraqueza. Pode dessa maneira ultrajar uma obra-prima da criação, que jaz a seus pés e só tem por defesa as lágrimas?
- Ah! Ah! - exclamou o possesso. - Quer dizer então que também a ama? É de você que eu preciso me vingar.
Dizendo essas palavras, o homem larga a dama, a quem segurava pelos cabelos, e, empunhando a lança, tenta matar o estrangeiro. Este, que não havia perdido o sangue-frio, evitou facilmente o golpe furioso. Segurou a lança perto da ponta. Um queria puxá-la e o outro, arrancá-la. A lança quebra-se. O egípcio puxa a espada; Zadig também. Atacam-se. Lança aquele cem golpes precipitados, apara-os este com habilidade. A dama, sentada na relva, arruma os cabelos e olha para os dois. O egípcio era o mais robusto, Zadig o mais ágil. Batia-se aquele como um homem cuja ira cega lhe guiava ao acaso os movimentos. Zadig desarma-o. E como o egípcio, mais furioso, procura lançar-se contra ele, Zadig segura-o, domina-o, derruba-o e, apontando-lhe a espada contra o peito, oferece poupar-lhe a vida. O egípcio, fora de si, arranca o punhal e fere Zadig no mesmo instante em que o vencedor o perdoava. Indignado, Zadig lhe enfia a espada no peito. O egípcio lança um grito horrível e morre, debatendo-se.
Zadig avança então para a mulher e diz-lhe respeitosamente:
- Foi ele quem me obrigou a matá-lo; está vingada e livre do homem mais violento que já vi na minha vida. Que quer agora de mim, senhora?
- Que morra, infame, que morra; você matou o meu amor; eu gostaria de lhe esmagar o coração.

Voltaire

22 de outubro de 2016

O teísta


O teísta é um homem firmemente persuadido da existência de um ente supremo tão bom como poderoso que formou todos os seres extensos, vegetativos, sensitivos e reflexivos; que perpetua as espécies, que castiga sem crueldade os crimes e recompensa com bondade as ações virtuosas.
O teísta não sabe como Deus castiga, como favorece, como perdoa; pois não é assaz temerário para se gabar de conhecer a maneira de agir de Deus; mas sabe que Deus age e que é justo. As dificuldades contra a Providência nao o abalam na sua fé, pois são apenas grandes dificuldades que não constituem provas; submete-se a essa Providência embora só aperceba alguns dos seus efeitos e algumas das suas exterioridades; e, com o julgar as coisas que não vê mediante as coisas que vê, pensa que a Providência se estende a todos os lugares e a todos os séculos.
Reunido nestes princípios a todo o resto do universo, não abraça qualquer das seitas que unanimemente se contradizem. A sua religião é a mais antiga e a de maior extensão, pois a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo. Fala uma língua que todos os povos entendem, ao passo que não se entendem entre si. Tem irmãos desde Pequim a Cayenne e conta todos os sábios como irmãos. Crê que a religião não consiste nas opiniões de uma metafísica ininteligível nem em vãos artefatos mas na adoração e na justiça. Fazer bem, eis o seu culto; submeter-se a Deus, eis a sua doutrina. Grita-lhe o muçulmano: "Se não fizeres a peregrinação a Meca, acautela-te!"; "Ai de ti", diz-lhe um coletor, "se não fizeres uma viagem a Nossa Senhora de Loreto!" Ele ri-se de Loreto e de Meca: mas socorre o indigente e defende o oprimido.
 
Voltaire

10 de outubro de 2016

A conversão de Ingênuo


Seu tio resolveu enfim fazer que ele lesse o Novo Testamento. O Ingênuo devorou-o com grande prazer, mas, não sabendo em que tempo nem em que local haviam acontecido as aventuras ali narradas, não duvidou de que o local dos acontecimentos fosse a Baixa Bretanha, e jurou que cortaria o nariz e as orelhas a Caifás e a Pilatos, se algum dia encontrasse esses patifes.
O tio, encantado com essas boas disposições, esclareceu-o em pouco tempo; louvou o seu zelo, mas fez-lhe ver que esse zelo era inútil, visto que tais pessoas tinham morrido havia cerca de 1690 anos. Em breve o Ingênuo sabia quase todo o livro de cor.
(...) Enfim a graça operou; o Ingênuo prometeu fazer-se cristão; e não teve a menor dúvida de que deveria começar por ser circuncidado.
- Pois - dizia ele - não vejo no livro que me deram para ler um único personagem que não o tenha sido; é, portanto, evidente que devo fazer o sacrifício do meu prepúcio: e quanto mais cedo, melhor.
Não vacilou. Mandou chamar o cirurgião da aldeia e pediu-lhe que lhe fizesse a operação, esperando alegrar infinitamente a todos, depois que o fato estivesse consumado. O cirurgião, que nunca fizera a operação referida, avisou a família, que bradou aos céus. A boa Kerkabon temeu que seu sobrinho, que parecia decidido e expedito, fizesse em si mesmo a operação com desastrada imperícia, e disso resultassem tristes consequências, pelas quais as damas sempre se interessam por bondade de coração.
O tio retificou as ideias do Ingênuo; fez-lhe ver que a circuncisão não estava mais em moda, que o batismo era muito mais suave e salutar, que a lei da graça não era como a lei da austeridade. O Ingênuo, que tinha bastante bom senso e retidão, discutiu, mas afinal reconheceu o seu erro, coisa muito rara na Europa em gente que discute; prometeu enfim submeter-se ao batismo quando bem quisessem.
Antes era preciso confessar-se, e aí estava a maior dificuldade. O Ingênuo, que sempre trazia no bolso o livro que o tio lhe dera, não via ali nenhum apóstolo que se houvesse jamais confessado, e isso o tornava bastante rebelde. O tio fechou-lhe a boca, mostrando-lhe, na epístola de São Tiago, o Moço, estas palavras que causam tanta espécie aos heréticos: "Confessai-vos uns aos outros". O Ingênuo não objetou mais nada e confessou-se a um frade. Terminada a confissão, tirou o frade do confessionário e, segurando-o com força, obrigou-o a pôr-se de joelhos, dizendo-lhe:
- Vamos, meu amigo. Está escrito: "Confessai-vos uns aos outros". Eu te contei os meus pecados; não sairás daqui sem que me hajas contado os teus.
Assim falando, apoiava o joelho contra o peito do adversário. O padre começou a soltar gritos que faziam reboar a igreja. Acudiram ao barulho, viram o Ingênuo esmurrando o monge em nome de São Tiago, o Moço.

Voltaire

3 de outubro de 2016

Pangloss


Pangloss ensinava metafísica, teologia e cosmologia. Provava de forma estupenda que não existe efeito sem causa e que, neste, que é o melhor dos mundos possível, o castelo do barão era o mais bonito possível e a senhora, a melhor possível das baronesas.
- Está provado - dizia ele - que as coisas não podem ser de outro modo: pois, como tudo foi criado para uma finalidade, tudo está necessariamente destinado à melhor finalidade. Notem que o nariz existe para nele apoiarmos os óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram claramente criadas para as calças, e é por isso que temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e construir castelos, e por isso o monsenhor possui um maravilhoso castelo; o mais ilustre barão da província deve ser o mais bem acomodado; e como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro; por conseguinte, aqueles que afirmaram que tudo está bem disseram uma paspalhice; deveriam ter dito que tudo está o melhor possível.
Certo dia em que passeava nas cercanias do castelo, pelo pequeno bosque ao qual denominavam parque, Cunegundes viu entre as moitas o dr. Pangloss, que estava ministrando uma aula de física experimental à camareira de sua mãe, uma linda e dócil moreninha. Por possuir a srta. Cunegundes grande inclinação para as ciências, observou, prendendo a respiração, as repetidas experiências de que foi testemunha; viu com toda clareza a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e voltou toda agitada e pensativa, cheia de desejos de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a sua.
Encontrou Cândido quando regressou ao castelo, e corou; Cândido também corou; ela cumprimentou-o com voz entrecortada, e Cândido falou-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, após o jantar, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido pegou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o rapaz beijou inocentemente a mão da jovem com uma vivacidade, uma intensidade e uma elegância especiais; suas bocas encontraram-se, seus olhos resplandeceram, seus joelhos tremeram, suas mãos perderam-se... O Barão de Thunder-ten-tronckh passou ao lado do biombo e, vendo aquela causa e aquele efeito, expulsou Cândido do castelo a pontapés no traseiro; Cunegundes desfaleceu; quando recuperou a consciência, foi esbofeteada pela baronesa; e houve o maior desalento no mais bonito e mais agradável dos castelos possíveis.
 
Voltaire
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