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4 de outubro de 2017

Silêncio e lentidão


Nunca dês ouvidos àqueles que, no desejo de te servir, te aconselham a renunciar a uma das tuas aspirações. Tu bem sabes qual é a tua vocação, pois a sentes exercer pressão sobre ti. E, se a atraiçoas, é a ti que desfiguras. Mas fica sabendo que a tua verdade se fará lentamente, pois ela é nascimento de árvore e não descoberta de uma fórmula. O tempo é que desempenha o papel mais importante, porque se trata de te tornares outro e de subires uma montanha difícil. Porque o ser novo, que é unidade libertada no meio da confusão das coisas, não se te impõe como a solução de um enigma, mas como um apaziguamento dos litígios e uma cura dos ferimentos. E só virás a conhecer o seu poder, uma vez que ele se tiver realizado. Nada me pareceu tão útil ao homem como o silêncio e a lentidão. Por isso os tenho honrado sempre como deuses por demais esquecidos. 
 
 Antoine de Saint-Exupéry

28 de outubro de 2016

Futuro


O futuro não é um lugar onde estamos indo, mas um lugar que estamos criando. O caminho para ele não é encontrado, mas construído e o ato de fazê-lo muda tanto o realizador quanto o destino.
 
Antoine de Saint-Exupéry

26 de outubro de 2016

Mozart assassinado


Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.
Mas os carros de terceira classe estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões, que parecia um quarto, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se viravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.
E assim eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos de vida na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.
Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nas bancas dos mercados. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por faceirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ele, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?
E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para outro.
Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa da vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.
O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.

Antoine de Saint-Exupéry

21 de setembro de 2016

A colecionadora


Não te lembras de ter encontrado na vida aquela que se considera um ídolo? Que havia ela de receber do amor? Tudo, até a tua alegria de a encontrares, se torna homenagem para ela. Mas, quanto mais a homenagem custa, mais vale: ela saborearia melhor o teu desespero.
Ela devora sem se alimentar. Ela apodera-se de ti para te queimar à sua honra. Ela é semelhante a um forno crematório. Ela, na sua avareza, enriquece-se de várias capturas, julgando encontrar a alegria nessa acumulação. E não acumula mais do que cinzas. Porque o verdadeiro uso dos teus dons era caminho de um para o outro, e não captura.
Ela verá penhores nos teus dons e abster-se-á de tos conceder em paga. Na falta de arrebatamentos que te satisfariam, a falsa reserva dela far-te-á ver que a comunhão dispensa sinais. É marca da impotência para amar, não elevação do amor. Se o escultor despreza a argila, terá de modelar o vento. Se o teu amor despreza os sinais do amor a pretexto de atingir a essência, o teu amor não passa de um palavreado. Não descuides as felicitações, nem os presentes, nem os testemunhos. Serias capaz de amar a propriedade, se fosses excluindo dela, um por um, como supérfluos, porque particulares demais, o moinho, o rebanho, a casa? Como construir o amor, que é rosto lido através da urdidura, se não há urdidura sobre a qual escrever?
Sem cerimonial de pedras, não haveria catedral.
Nem haverá amor sem cerimonial em vistas do amor. Eu só atinjo a essência da árvore se ela modelou lentamente a terra segundo o cerimonial das raízes, do tronco e dos ramos. Nessa altura, ela é una. Tal árvore e não uma outra.
Mas aquela acolá desdenha as trocas, que a haviam de fazer nascer. Ela procura no amor um objeto capturável. E esse amor não tem significado algum.
Ela julga que o amor é presente que ela pode fechar nela. Se tu a amas, é porque ela te conquistou. Ela fecha-te nela, convencida de enriquecer. Ora, o amor não é tesouro a conquistar, mas obrigação de parte a parte, fruto de um cerimonial aceite, rosto dos caminhos da troca.
Jamais essa mulher nascerá. Só de uma rede de laços se pode nascer. Ela continuará a ser semente abortada, poder por empregar, alma e coração secos. Ela há de envelhecer funebremente, entregue à vaidade das suas capturas.
Tu não podes atribuir nada a ti próprio. Não és cofre nenhum. És o nó da diversidade. O templo, também é sentido das pedras.

Antoine de Saint-Exupéry

16 de setembro de 2016

Instinto selvagem


Na época das migrações a passagem dos patos selvagens provoca surpreendentes efeitos nas terras que eles atravessam. Os patos domésticos, como que atraídos pelo grande voo triangular, ensaiam pulos desajeitados. O apelo selvagem despertou neles não sei que vestígio selvagem. Eis os patos das fazendas transformados por um minuto em aves de arribação. Naquelas pequenas cabeças duras em que circulavam apenas as imagens humildes de um brejo, de uns vermes, de um galinheiro, desenrolam-se amplidões continentais, o gosto dos ventos do largo, a geografia dos mares. O animal ignorava que seu cérebro fosse bastante vasto para conter tanta maravilha. Mas agora está batendo as asas, e despreza os vermes, despreza o milho, quer se transformar em pato selvagem.
Mas revejo principalmente as minhas gazelas; criei gazelas em Juby. Nós todos lá criamos gazelas. Ficavam presas num cercado de arame, ao ar livre, porque as gazelas precisam da água corrente dos ventos e nada as supera em fragilidade. Prisioneiras desde pequeninas, elas se criam e comem na mão da gente. Deixam-se acariciar e metem o focinho úmido nas palmas de nossas mãos. Então pensamos que já estão domesticadas. Pensamos que já estão livres da tristeza misteriosa que consome em silêncio as gazelas e lhes dá a mais terna das mortes... Mas vem um dia em que vamos encontrá-las apoiando seus pequenos cornos contra a grade, na direção do deserto. Estão hipnotizadas. Nem sequer sabem que querem fugir de nós. Bebem o leite que lhes damos. Deixam-se acariciar e metem, ainda com mais ternura, os focinhos úmidos nas palmas de nossas mãos. Mas logo que as deixamos, depois de uma ligeira corrida que parece alegre, voltam para a cerca. Se não interviermos permanecem ali, nem ao menos tentando lutar contra a barreira, mas apenas apoiando nela seus pequenos cornos. E ficam assim, o pescoço curvado, até morrer. É a estação dos amores que chegou ou simplesmente a necessidade de galopar até perder o fôlego? Elas o ignoram. Seus olhos ainda estavam fechados quando foram presas. Ignoram tudo da liberdade na areia e do cheiro do macho. Mas nós somos mais inteligentes que elas. O que elas procuram - nós o sabemos - é a imensidão que as completará. Querem tornar-se gazelas e dançar a sua dança. A cento e trinta quilômetros por hora querem a fuga retilínea, cortada de desvios bruscos como se escapassem chamas da areia. Pouco importam os chacais, se a verdade das gazelas é gozar o medo. O medo que as torna maiores que si mesmas, que as obriga aos saltos mais altos! Que importa o leão, se a verdade das gazelas é serem abertas por uma patada, sob a luz do sol! Olhando-as, a gente imagina: elas sentem nostalgia. Nostalgia é o desejo não se sabe de que... Ele existe, o objeto desse desejo, mas não há palavras para dizê-lo...
E a nós, que falta?

Antoine de Saint-Exupéry
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