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19 de outubro de 2016

Daímones


Os deuses têm muitas formas e são inúmeros, mas o termo theós não é suficiente para abranger “os mais fortes”. A par desta existe, desde Homero, uma outra palavra que fez uma carreira admirável e que até hoje se mantém viva nas línguas europeias: daímon, o demônio, o ser demoníaco. Ao mesmo tempo, é sabido que o conceito de demônio enquanto ser divino inferior, de caráter particularmente perigoso e maligno partiu de Platão e do seu discípulo Xenócrates. O conceito revelou-se tão útil que até hoje não se pode prescindir dele na descrição das crenças populares e da religião primitiva. O significado etimológico desta palavra de aspecto inteiramente grego, mais tarde, não pôde ser estabelecido com segurança. Ainda assim é hoje evidente que nas fontes antigas não é definido o estatuto de um daímon em relação aos deuses, nem o seu caráter próprio, para já não falar no conceito de “espírito”. Na Ilíada os deuses reunidos no Olimpo podem ser denominados daímones. Afrodite mostra o caminho a Helena na forma de daímon. Um herói pode atacar impetuosamente “à semelhança de um daímon” e ao mesmo tempo ser denominado “igual a um deus”, isótheos. Inversamente, os demônios que esvoaçam da caixa de Pandora, personificados como “doenças”, são denominados daímones. Os espíritos malignos que trazem a morte chamam-se theoí, bem assim como as Erínias em Ésquilo. O estado possesso também é obra de um deus. “Daímon” não designa uma classe determinada de seres divinos, mas sim um modo peculiar de agir.
É que daímon e theós nunca podem ser simplesmente trocados. Isto é particularmente nítido na epopeia onde um personagem é frequentemente tratado por daímone. Trata-se mais de uma repreensão do que de um louvor, por isso não significa certamente “divino”. Esta expressão é utilizada quando quem fala não entende o que o outro faz e porque o faz. Daímon é um poder oculto, uma força que leva o homem a fazer algo, mas para a qual não pode ser nomeada a origem. Pode acontecer que o indivíduo tem a sensação de que a tempestade como que está com ele, ele age “com o daímon”, ou então tudo se volta contra ele, ele está “contra o daímon”, sobretudo quando um deus favorece o seu adversário. A doença pode ser descrita como se um “demônio odioso” assediasse o indivíduo, sendo então os deuses quem o pode salvar. Todos os deuses podem atuar como daímones. Nem em toda ação pode ser descoberto o deus por ela responsável. Daímon é o rosto oculto da ação divina. Não existem imagens de demônios, e não existe qualquer culto. Por conseguinte, daímon é um complemento necessário da concepção homérica dos deuses como figuras individuais, com personalidade própria. Ele abrange aquele resto embaraçoso que se subtrai à caracterização figurativa e à nomeação.
O homem comum só vê aquilo que lhe acontece de modo imprevisível e que não é provocado por ele próprio, e nestes casos denomina daímon o poder causal responsável pelo acontecimento. Daímon é assim algo como o “destino”, mas sem que se torne visível a pessoa que planeia e manobra. O indivíduo tem de estar bem com o daímon: “Conseguirei sempre pôr o demônio que atua sobre mim em concordância comigo se o cultivar de acordo com os meus meios”. As formas do demônio são muitas. Os deuses provocam muitas coisas indesejadas.

Walter Burkert
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