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26 de outubro de 2016

A mancha humana


Nós deixamos uma mancha, deixamos um rastro, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sêmen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial. O que é a ânsia de purificar senão impureza?
Tudo quanto estava a dizer acerca da mancha era que ela é inelutável. Essa era, naturalmente, a visão de Faunia a esse respeito: as criaturas inevitavelmente manchadas que nós somos. Resignada com a horrível imperfeição elementar. Ela é como os Gregos, como os Gregos de Coleman. Como os seus deuses. Eles são mesquinhos. Brigam. Lutam. Odeiam. Assassinam. Fodem. Zeus não quer fazer outra coisa senão foder - deusas, mortais, bezerras, ursas -, e não apenas na sua própria forma, mas também, ainda mais excitantemente, assumindo a forma visível de animal. Para montar colossalmente uma mulher como um touro. Para a penetrar excentricamente como um cisne branco de asas agitadas. Nunca há carne suficiente para o rei dos deuses, nem carne nem perversidade. Toda a loucura que o desejo gera. A devassidão. A depravação. Os prazeres mais grosseiros. E a fúria da esposa que tudo vê.
Não o deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro, monomaniacamente o único deus que existe, existiu e jamais existirá, sem nada melhor para fazer do que preocupar-se com os judeus. Nem o perfeitamente dessexuado homem-deus cristão, e a sua mãe imaculada, e toda a culpa e vergonha que uma espiritualidade sublime inspira. Antes, o Zeus grego, enredado em aventuras, vivamente expressivo, caprichoso, sensual, exuberantemente ligado à sua própria existência opulenta, tudo menos só e tudo menos oculto. Antes a mancha divina.
Uma grande religião refletora da realidade para Faunia Farley se, por intermédio de Coleman, ela tivesse aprendido alguma coisa a esse respeito. Pelos padrões da fantasia hubrística, feita à imagem de Deus, sem dúvida, mas não do nosso: do deles. Deus devasso. Deus corrupto. Um deus da vida, se algum houve. Deus à imagem do homem.

Philip Roth

18 de setembro de 2016

Os outros


Nós combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar tudo com as nossas pás de catterpillar, aceitamo-los de mente aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e, contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário.
Mais vale ter um cérebro de tanque de guerra. Percebemos tudo ao contrário, antes mesmo de estarmos com eles, no momento em que antecipamos o nosso encontro com eles; percebemos tudo ao contrário quando estamos com eles; e, depois, vamos para casa e contamos a outros o nosso encontro e continuamos a perceber tudo ao contrário.
Como, com eles, acontece a mesma coisa em relação a nós, na realidade tudo é uma ilusão sem qualquer percepção, uma espantosa farsa de incompreensão. E, contudo, que fazer com esta coisa terrivelmente significativa que são os outros, que é esvaziada do significado que pensamos ter e que, afinal, adquire um significado lúdico; estaremos todos tão mal preparados para conseguirmos ver as ações íntimas e os objetivos secretos de cada um de nós? Será que devemos todos fecharmo-nos e mantermo-nos enclausurados como fazem os escritores solitários, numa cela à prova de som, evocando as pessoas através das palavras e, depois, afirmar que essas evocações estão mais próximas da realidade do que as pessoas reais que destroçamos com a nossa ignorância, dia após dia? Mantém-se o fato de que o compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois, depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse não ligar ao fato de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e deixar andar. Se conseguirem fazer isso - estão com sorte.

Philip Roth
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