Esse personagem notável cujo verdadeiro nome parece ter sido John Martin, era inglês nascido em Londres durante o reinado de Isabel. Aos dez anos de idade fora raptado por um mercador português, possivelmente para conservá-lo na fé católica; sete anos depois esse comerciante o levou para o Brasil onde, entregue aos cuidados dos jesuítas, entrou para a Companhia.
Anchieta, seu superior, já velho e alquebrado pelos trabalhos e mortificações, sofria de repetidas vertigens. Almeida costumava então friccionar os pés do superior, pelo que mais tarde costumava dizer que qualquer virtude que suas mãos pudessem ter, provinha dos pés de Anchieta. Nenhum voluptuoso jamais inventou tantos artifícios para estimular os seus sentidos quantos Almeida imaginou para mortificá-los. Considerava seu corpo como escravo rebelde que, morando em sua casa, comendo em sua mesa e dormindo em sua cama, estava continuamente arquitetando meios de perdê-lo; por isso odiava-o, e, como medida de justiça e de legítima defesa, perseguia-o, flagelava-o e o castigava de todas as maneiras concebíveis. Para isso dispunha de seleta coleção de açoites; uns eram de couro trançado, outros de catgut, de couro em tiras e até de fios de arame. Tinha cilício de arame para os braços, coxas e pernas, sendo que um deles era atado em torno do corpo com sete cadeias; outro ao qual chamava sua jaqueta de estimação, era uma espécie de colete feito da mais áspera crina animal, tendo do lado de dentro, sete cruzes de ferro cobertas de agudas pontas, como um raspador de pêlo ou um ralador de noz-moscada. Tais eram as armaduras de probidade com que esse soldado de Cristo se equipava para as suas batalhas com o infernal inimigo. Entre os seus atos virtuosos, conta-se que jamais incomodou os mosquitos e as pulgas quando o picavam; que, por mais exercício que fizesse neste clima quente, nunca mudava de camisa mais que uma vez por semana; e que, em suas longas caminhadas, punha pedrinhas e grãos de milho nos sapatos.
A rotina de sua vida cotidiana obedecia a um programa que a si mesmo se impusera e no qual prometia não tomar alimentação alguma às segundas-feiras em honra à Santíssima Trindade e usar um de seus cilícios, conforme a disposição e a força do pobre animal - como se referia ao seu corpo - acompanhado dos açoites costumeiros, por amor, em reverência e memória da flagelação que o Salvador sofreu por nós. Às terças-feiras sua alimentação devia constituir-se apenas de pão e água, a ela sucedendo a sobremesa acima descrita, em honra e glória do Arcanjo São Miguel, seu protetor e de todos os outros anjos. Às quartas-feiras ele se permitia o excesso de seguir a regra da Companhia. Às quintas-feiras não se alimentava em honra ao Espírito Santo, ao Santíssimo Sacramento, a São Inácio de Loiola e a todos os santos e santas. Às sextas-feiras devia ter em mente que a regra da Companhia recomendava jejum e que há muito havia proscrito o vinho de suas refeições, salvo em caso de necessidade.
Aos sábados abstinha-se de todo alimento em honra à Virgem Maria e o jejum devia ser acompanhado por atos que lhe pudessem ser agradáveis; praticava, então, exercícios de severidade e orava longamente. Aos domingos, como às quartas-feiras, observava a regra da comunidade.
Como devoção particular costumava rezar três horas por dia à Santíssima Trindade e à Virgem Maria.
"Essas orações", dizia ele, "faço-as diante de um oratório imaginário, engastado em meu coração e do qual me utilizo dia e noite, onde quer que eu esteja, no mar ou na terra, no mato ou na cidade. Esse oratório é dividido em três altares: no do centro, a Santíssima Trindade; no da esquerda, a custódia com o Santíssimo Sacramento, e no da direita a Santíssima Virgem e São José, ambos segurando Nosso Senhor por uma das mãos. Aí minh'alma com toda a sua força, inteligência e vontade ajoelha-se, face contra o chão, e faz suas orações enquanto com a boca do espírito vou beijando os pés de cada um e com a do corpo pecaminoso, vou repetindo sem cessar: Jesus, Maria, José e recitando ao fim de cada jaculatória, Glória ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo e à Virgem Maria", suplemento que sempre fazia mentalmente ao Glória.
O grande tema de suas mais caras meditações consistia em recordar que tendo nascido na Inglaterra, em Londres, no centro mesmo da heresia, tinha sido por fim conduzido à vida feliz que levava.
Apesar dos tormentos e flagelos que se impunha, o padre Almeida atingiu a provecta idade de oitenta e dois anos. Quando já muito velho e alquebrado tiravam-lhe os cilícios para que não se lhe abreviassem os dias, percebiam que seu corpo perdia as forças como se o organismo se ressentisse da mudança. Os exercícios de mortificação se tinham tornado para ele tão necessários como uma pústula, sem a qual, o corpo já afeito a ela, não poderia continuar normalmente as suas funções. João de Almeida costumava pedir aos outros, pelo amor de Deus, que lhe emprestassem um açoite ou um cilício, exclamando: "De que meios disponho eu agora para propiciar ao Senhor! Que farei para me salvar!" Tais eram as obras que uma igreja corrupta sobrepunha à verdadeira fé e aos deveres do genuíno cristianismo.
Nem tal exemplo deve ser considerado caso isolado de insânia. Já em vida o padre Anchieta era reverenciado e admirado, não só pelo povo do Rio de Janeiro mas também por personalidades de destaque. Seus exageros se enquadravam no espírito da religião, e, depois de sua morte foram catalogados, para exemplo e edificação dos fieis, com a sanção dos superiores de uma Ordem que ocupava o primeiro lugar na estima do mundo católico.
Durante a enfermidade que o vitimou, o convento esteve sempre cheio de pessoas ansiosas por assistirem aos últimos momentos de um santo. Na cidade não se falava de outra coisa e os conhecidos trocavam condolências como se se tratasse de calamidade pública. Começaram logo a afluir ao convento inúmeros pedidos de objetos que tivessem pertencido ao jesuíta: pedaços de papel com sua letra, fragmentos da estamenha, cilícios, etc., e o porteiro da casa via-se em apuros para receber e entregar terços, roupas e outras coisas que os devotos enviavam para que fossem colocadas junto ao corpo do santo agonizante afim de se embeberem de virtude curativa. Durante a enfermidade, o doente foi sangrado diversas vezes, tendo sido o seu sangue carinhosamente aparado em panos que depois foram distribuídos em pedacinhos, como relíquia, aos mais íntimos do colégio.
Quando o sino anunciou a morte do jesuíta, toda a cidade se agitou como se tivessem dado alarme de uma invasão. O governador, o bispo, os magistrados, a nobreza, o clero, os religiosos das diversas ordens e todo o povo acorreram ao seu enterro. O comércio cerrou as portas e até os aleijados e doentes se fizeram transportar para assistir às cerimônias fúnebres.
Aconteceu que no mesmo dia outro cidadão qualquer também passou desta para melhor e só com grande dificuldade encontraram quem carregasse o féretro até o túmulo.
Daniel Kidder
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