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9 de outubro de 2017

Quando a dissimulação é virtude


- Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.
A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os atores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma.
- E notai - acrescentou o senhor de Salazar -, que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário. Deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma.
 
Umberto Eco

3 de setembro de 2017

Prudência e sensatez


- Vós quereis tentar a sorte na grande cidade, e sabeis bem que é lá que deveis gastar essa aura de valentia que a longa inação dentro destas muralhas vos houver concedido. Procurareis também a fortuna, e devereis ser hábil a obtê-la. Se aqui aprendeste a escapar à bala de um mosquete, lá deveis aprender a saber escapar à inveja, ao ciúme, à rapacidade, batendo-vos com armas iguais com os vossos adversários, ou seja, com todos. E portanto escutai-me. Há meia hora que me interrompeis dizendo o que pensais, e com o ar de interrogar quereis mostrar-me que me engano. Nunca mais o façais, especialmente com os poderosos. Às vezes a confiança na vossa argúcia e o sentimento de dever testemunhar a verdade poderiam impelir-vos a dar um bom conselho a quem é mais do que vós. Nunca o façais. Toda a vitória produz ódio no vencido, e se se obtiver sobre o nosso próprio senhor, ou é estúpida ou é prejudicial. Os príncipes desejam ser ajudados mas não superados.
Mas sede prudente também com os vossos iguais. Não humilheis com as vossas virtudes. Nunca falei de vós mesmos: ou vos gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. Deixai antes que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem demasiado dano vosso. Devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. A avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda: deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. E sobretudo, se tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. Não se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. Um silêncio cauto e prudente é o cofre da sensatez. 
 
Umberto Eco

28 de outubro de 2016

Leprosos


Falávamos dos excluídos do rebanho das ovelhas. Por séculos, enquanto o papa e o imperador se estraçalhavam em suas diatribes de poder, eles continuaram a viver à margem, eles, os verdadeiros leprosos, dos quais os leprosos são apenas a imagem disposta por Deus para que nós compreendêssemos esta admirável parábola e dizendo "leprosos" compreendêssemos "excluídos, pobres, simples, deserdados, desenraizados dos campos, humilhados nas cidades". Não compreendemos, o mistério da lepra continuou a obcecar-nos porque não reconhecemos a sua natureza de sinal. Excluídos como eram do rebanho, todos eles estavam prontos a escutar, ou a produzir, qualquer pregação que, reclamando-se da palavra de Cristo, pusesse com efeito sob acusação o comportamento dos cães e dos pastores e prometesse que um dia eles seriam punidos. Isto, os poderosos sempre o compreenderam. A reintegração dos excluídos impunha a redução dos seus privilégios, por isso os excluídos que assumiam consciência da sua exclusão eram rotulados de hereges, independentemente da sua doutrina. E estes, por seu lado, cegos pela sua exclusão, não estavam verdadeiramente interessados em nenhuma doutrina. A ilusão da heresia é esta. Qualquer um é herege, qualquer um é ortodoxo, não conta a fé que um movimento oferece, conta a esperança que propõe. Todas as heresias são a bandeira de uma realidade da exclusão. Raspa a heresia, encontrarás o leproso. Qualquer batalha contra a heresia quer somente isto: que o leproso permaneça tal como é. Quanto aos leprosos, que lhes queres pedir? Que distingam no dogma trinitário ou na definição da eucaristia o que é justo e o que é errado? Vamos, Adso, estes são jogos para nós, homens de doutrina. Os simples têm outros problemas. E, repara, resolvem-nos todos da pior maneira. Por isso se tornam hereges.
- Mas porque é que alguns os apoiam?
- Porque servem o seu jogo, que raramente diz respeito à fé e mais frequentemente à conquista do poder.
- É por isso que a Igreja de Roma acusa de heresia todos os seus adversários?
- É por isso, e é por isso que reconhece como ortodoxia a heresia que pode reconduzir sob o seu próprio controle ou que tem de aceitar, porque se tornou demasiado forte e não seria bom tê-la como adversária. Mas não há uma regra precisa, depende dos homens, das circunstâncias.

Umberto Eco
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