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3 de fevereiro de 2018

Uma hóstia para Eros


Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico do que o português. Das religiões pagãs conservou como nenhum outro cristianismo na Europa o gosto da carne. Cristianismo em que o Menino-Deus se identificou com o próprio Cupido e a Virgem Maria e os Santos com os interesses de procriação, de geração e de amor mais do que com os de castidade e de ascetismo. Os azulejos animaram-se de formas quase afrodisíacas nos claustros dos conventos e nos rodapés das sacristias. De figuras nuas. De meninozinhos-Deus em que as freiras adoraram muitas vezes o deus pagão do amor de preferência ao Nazareno triste e cheio de feridas que morreu na cruz. Uma delas, sóror Violante do Céu, foi quem comparou o Menino Jesus a Cupido:

Pastorzillo divino
que matas de amor
Ay, tened no flecheis,
No tereis, nó,
Que no caben más flechas
En mi coraçon!
Mas tirad, y flachadme
Matadme d'amor,
que nó quiro más vida
Que morir por vós!

No culto ao Menino Jesus, à Virgem, aos Santos, reponta sempre no cristianismo português a nota idílica e até sensual. O amor ou o desejo humano. Influência do maometanismo parece que favorecida pelo clima doce e como que afrodisíaco de Portugal. É Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. É São Gonçalo do Amarante só faltando tornar-se gente para emprenhar as mulheres estéreis que o aperreiam com promessas e fricções. É São João Batista festejado no seu dia como se fosse um rapaz bonito e namorador, solto entre moças casadouras, que até lhe dirigem pilhérias:

Donde vindes, São João,
que vindes tão molhadinho?

Ou

Donde vindes, ó Batista,
que cheirais a alecrim?

E os rapazes ameaçam de pancadas o santo protetor de namoros e idílios:

As moças não me querendo
Dou pancadas no santinho.

Impossível conceber-se um cristianismo português ou luso-brasileiro sem essa intimidade entre o devoto e o santo. Com Santo Antônio chega a haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se peteca em festas de igreja dos tempos coloniais.
Em Portugal, como no Brasil, enfeitam-se de teteias, de joias, de braceletes, de brincos, de coroas de ouro e diamante as imagens das virgens queridas ou dos meninos-Deus como se fossem pessoas da família. Dão-se-lhes atributos humanos de rei, de rainha, de pai, de mãe, de filho, de namorado. Liga-se cada um deles a uma fase da vida doméstica e íntima.
(...)
Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio, São João, São Gonçalo do Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom Sucesso, do Bom Parto. Nem os santos guerreiros como São Jorge, nem os protetores da população contra a peste como São Sebastião ou contra fome como Santo Onofre - santos cuja popularidade corresponde a experiências dolorosamente portuguesas - elevaram-se nunca à importância ou ao prestígio dos outros patronos do amor humano e da fecundidade agrícola. Importância e prestígio que se comunicaram ao Brasil, onde os problemas do povoamento, tão angustiosos em Portugal, prolongaram-se através das dificuldades da colonização com tão fracos recursos  de gente. Uma das primeiras festas meio populares, meio de igreja, que nos falam as crônicas coloniais do Brasil é a de São João já com as fogueiras e as danças. Pois as funções desse popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se ligam até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência:

Dai-me noivo, São João, dai-me noivo,
dai-me noivo, que me quero casar.

As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de São João, festejado a foguetes, busca-pés e vivas, visam no Brasil, como em Portugal, a união dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e não se encontrou ainda. No Brasil faz-se a sorte da clara de ovo dentro do copo de água; a da espiga de milho que se deixa debaixo do travesseiro, para ver em sonho quem vem comê-la; a da faca que de noite se enterra até o cabo na bananeira para de manhã cedo decifrar-se sofregamente a mancha ou a nódoa na lâmina; a da bacia de água, a das agulhas, a do bochecho. Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antônio. Por exemplo: as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos associados às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil. É a imagem desse santo que frequentemente se pendura de cabeça para baixo dentro da cacimba ou do poço para que atenda às promessas o mais breve possível. Os mais impacientes colocam-na dentro de urinóis velhos. São Gonçalo do Amarante presta-se a sem-cerimônias ainda maiores. Ao seu culto é que se acham ligadas as práticas mais livres e sensuais. Às vezes até safadezas e porcarias. Atribuem-lhe a especialidade de arrumar marido ou amante para as velhas como a São Pedro a de casar as viúvas. Mas quase todos os amorosos recorrem a São Gonçalo:

Casai-me, casai-me,
São Gonçalinho,
Que hei de rezar-vos,
Amigo santinho.

Exceção só das moças:

São Gonçalo do Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Por que não casais as moças?
Que mal vos fizeram elas?

Gente estéril, maninha, impotente, é a São Gonçalo que se agarra nas suas últimas esperanças. Antigamente no dia da sua festa dançava-se dentro das igrejas - costume que de Portugal comunicou-se ao Brasil. Dançou-se e namorou-se muito nas igrejas coloniais do Brasil. Representaram-se comédias de amor. Em uma de suas pastorais, recomendava-se em 1726 aos padres de Pernambuco D. frei José Fialho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo de Olinda: "não consintão que se fação comedias, colloquios, representações nem bailes dentro de alguma Egreja, capella, ou seus adros". Isto em princípios do século XVIII. De modo que talvez não exagere Le Gentil de la Barbinais ao descrever-nos as festas do Natal de 1717 que teria presenciado no convento de freiras de Santa Clara na Bahia. Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor.
Em Pernambuco parece ter D. frei José Fialho clamado em vão porque em princípio do século XIX Tollenare soube, no Recife, que ainda se dançava da igreja de São Gonçalo de Olinda. Só em 1817 os cônegos proibiram tais danças "porque os europeus as censuravam como uma indecência indigna do templo de Deus". Na Bahia dançava-se dia de São Gonçalo não só no convento do Desterro como na ermida de Nazaré, na igreja de São Domingos, na do Amparo, em várias outras. E mesmo depois da proibição das danças, continuou o namoro nas igrejas. Até nas da Corte. Max Radiguet ainda alcançou as moças das melhores famílias do Rio de Janeiro namorando com os rapazes na Capela Imperial: "sentadas à turca em tapetes conversavam com eles no lugar sagrado". Namorando e tomando sorvete nas igrejas exatamente como noventa anos depois nas confeitarias e nas praias.
Mas outros característicos pagãos do culto de São Gonçalo conservam-se em Portugal. Entre outros, as enfiadas de rosários fálicos fabricados de massa doce e vendidos e "apregoados em calão fescenino" - informa Luís Chaves - pelas doceiras à porta das igrejas. E já nos referimos ao costume das mulheres estéreis de se friccionarem "desnudadas", pelas pernas da imagem jacente do Bem-Aventurado, "enquanto os crentes rezam baixinho e não erguem os olhos para o que não devem ver". A fricção sexual dos tempos pagãos acomodada a formas católicas.
(...)
A festa de São Gonçalo do Amarante a que La Barbinais assistiu na Bahia no século XVIII surge-nos das páginas do viajante francês com todos os traços dos antigos festivais pagãos. Festivais não só de amor, mas de fecundidade. Danças desenfreadas em redor da imagem do santo. Danças em que o viajante viu tomar parte o próprio vice-rei, homem já de idade, cercado de frades, fidalgos, negros. E de todas as marafonas da Bahia. Uma promiscuidade ainda hoje característica das nossas festas de igreja. Violas tocando. Gente cantando. Barracas. Muita comida. Exaltação sexual. Todo esse desadoro - por três dias e no meio da mata. De vez em quando, hinos sacros. Uma imagem do santo tirada do altar andou de mão em mão, jogada como uma peteca de um lado para outro. Exatamente - notou La Barbinais - "o que outrora faziam os pagãos num sacrifício especial anualmente oferecido a Hércules, cerimônia na qual fustigavam e cobriam de injúrias as imagens do semideus. Festa evidentemente já influenciada, essa de São Gonçalo, na Bahia, por elementos orgiásticos africanos que teria absorvido no Brasil. Mas o resíduo pagão característico, trouxera-o de Portugal o colonizador branco no seu cristianismo lírico, festivo, de procissões alegres com as figuras de Baco, Nossa Senhora fugindo para o Egito, Mercúrio, Apolo, o Menino Deus, os Doze Apóstolos, sátiros, ninfas, anjos, patriarcas, reis e imperadores dos ofícios; e só no fim o Santíssimo Sacramento". 
Não foram menos faustosas nem menos pagãs as grandes procissões no Brasil colonial. Froger notou na do Corpus Christi, na Bahia, músicos, bailarinos e mascarados em saracoteios lúbricos. E uma que se realizou em Minas em 1733 foi uma verdadeira parada de paganismo ao lado dos símbolos do cristianismo. Turcos e cristãos. A Serpente do Éden. Os quatro pontos cardeais. A lua rodeada de ninfas. E no fim, uma verdadeira consagração das raças de cor: caiapós e negros congos dançando à vontade as suas danças gentílicas e orgiásticas em honra dos santos e do Santíssimo. (...) A festa de igreja no Brasil, como em Portugal, é o que pode haver de menos nazareno no sentido detestado por Nietzsche.

Gilberto Freyre

1 de fevereiro de 2018

O filho educando o pai


A melhor atenção do jesuíta no Brasil fixou-se vantajosamente no menino indígena. Vantajosamente sob o ponto de vista, que dominava o padre da Companhia de Jesus, de dissolver no selvagem, o mais breve possível, tudo o que fosse valor nativo em conflito sério com a teologia e com a moral da Igreja. O eterno critério simplista do missionário que não se apercebe nunca do risco enorme de ser incapaz de reparar ou substituir tudo quanto destrói. 
O culumim, o padre ia arrancá-lo verde à vida selvagem: com dentes apenas de leite para morder a mão intrusa do civilizador; ainda indefinido na moral e vago nas tendências. Foi, pode-se dizer, o eixo da atividade missionária: dele o jesuíta fez o homem artificial que quis.
O processo civilizador dos jesuítas consistiu principalmente nesta inversão: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo ao homem; na criança trazer ao caminho do Senhor e dos europeus a gente grande.
O culumim tornou-se o cúmplice do invasor na obra de tirar à cultura nativa osso por osso, para melhor assimilação da parte mole aos padrões de moral católica e de vida europeia; tornou-se o inimigo dos pais, dos pajés, dos maracás sagrados, das sociedades secretas. Do pouco que havia de duro e de viril naquela cultura e capaz de resistir, ainda que fracamente, à compreensão europeia. Longe dos padres quererem a destruição da raça indígena: queriam era vê-la aos pés do Senhor, domesticada para Jesus. O que não era possível sem antes quebrar-se na cultura moral dos selvagens a sua vértebra e na material tudo o que estivesse impregnado de crenças e tabus difíceis de assimilar ao sistema católico. Às vezes os padres procuraram, ou conseguiram, afastar os meninos da cultura nativa, tornando-a ridícula aos seus olhos de catecúmenos: como no caso do feiticeiro referido por Montoya. Conseguiram os missionários que um velho feiticeiro, figura grotesca e troncha, dançasse na presença da meninada: foi um sucesso. Os meninos acharam-no ridículo e perderam o antigo respeito ao bruxo, que daí em diante teve de contentar-se em servir de cozinheiro dos padres.

Gilberto Freyre

31 de janeiro de 2018

A Cuca vem pegar


Frank Spencer foi encontrar entre os Pueblo uma dança destinada especialmente a fazer medo aos meninos e incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito aos mais velhos. Os personagens da dança eram uns como papões ou terríveis figuras de outro mundo, descidos a este para devorar ou arrebatar meninos maus. Stevenson informa-nos de dança semelhante entre os Zuñi, esta macabra, terminando na morte de uma criança, escolhida entre as de pior comportamento da tribo: mas realizando-se com intervalos de longos anos. O fim, o moral, o pedagógico, de influir pelo medo ou pelo exemplo do castigo tremendo sobre a conduta do menino.
O trabalho, hoje clássico, de Alexander Francis Chamberlain acerca da criança na cultura primitiva e no folclore, das culturas históricas, indica ser o papão, complexo generalizado entre todas elas; e quase sempre, ao que parece, com fim moralizador ou pedagógico. Entre antigos hebreus era o Libith, monstro cabeludo e horrendo que voava de noite em busca de crianças; entre os gregos roubavam menino umas velhas feiíssimas, as Strigalai; entre os romanos a Caprimulgus saía de noite para tirar leite de cabra e comer menino - talvez avó remota da cabra-cabriola - enquanto de dia dominava nos matos o espírito mau da floresta, Silvanus. Entre os russos é um horroroso papão, terrível como tudo o que é russo, que à meia-noite vem roubar as crianças em pleno sono; entre os alemães, é o Papenz; entre os escoceses e os ingleses, o Boo Man, o Bogle Man. Champlain e os primeiros cronistas do Canadá falam em um horrível monstro, terror das crianças entre os aborígenes; entre os maias havia crença em gigantes que de noite vinham roubar menino - os balams, o culcalkin. E entre os índios Gaulala, da Califórnia, Powers foi encontrar danças do diabo, que comparou às haberfeld treiber da Bavária - instituição para amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em ordem. Eram danças em que aparecia uma figura horrenda. Na cabeça uma pele de urso, nas costas um manto de penas, o peito listrado como uma zebra.Danças semelhantes de "diabo" - ou Jurupari - havia entre os indígenas do Brasil; e com o mesmo fim de amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em boa ordem. Sendo que entre os ameríndios desta parte da América as máscara de dança desempenhavam função importante; Koch-Grunberg salienta que eram guardadas como coisa sagrada e que o seu misterioso poder se transmitia ao dançarino. Eram máscaras imitando animais demoníacos nos quais supunha o selvagem transformarem-se os mortos, e sua eficácia mágica era aumentada pelo fato de serem humanos ou de origem animal muitos dos materiais de sua composição: cabelo de gente, pelo de bichos, penas etc. Por sua vez o dançarino devia imitar os movimentos e as vozes do animal demoníaco tal como nas danças descritas pelos primeiros cronistas. E como as máscaras, os instrumentos sagrados eram igualmente considerados cheios de misterioso poder.
Os jesuítas conservaram danças indígenas de meninos, fazendo entrar nelas uma figura cômica de diabo, evidentemente com o fim de desprestigiar pelo ridículo o complexo Jurupari. Cardim refere-se a uma dessas danças. Desprestigiados o Jurupari, as máscaras e os maracás sagrados, estava destruído entre os índios um dos seus meios mais fortes de controle social: e vitorioso, até certo ponto, o cristianismo. Permanecera, entretanto, nos descendentes dos indígenas o resíduo de todo aquele animismo e totemismo. Sob formas católicas, superficialmente adotadas, prolongaram-se até hoje essas tendências totêmicas na cultura brasileira. São sobrevivências fáceis de identificar, uma vez raspado o verniz de dissimulação ou simulação europeia: e onde muito se acusam é em jogos e brinquedos de crianças com imitação de animais - animais verdadeiros ou vagos, imaginários, demoníacos. Também nas histórias e contos de bichos - de uma fascinação especial para a criança brasileira. Por uma espécie de memória social como que herdada, o brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos intelectualizado pela educação europeia, se sente estranhamente próximo da floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes indígenas e, em grande parte, através das experiências e superstições dos índios. É um interesse quase instintivo, o do menino brasileiro de hoje pelos bichos temíveis. Semelhante ao que ainda experimenta a criança europeia pelas histórias de lobo e de urso; porém muito mais vivo e forte; muito mais poderoso e avassalador na sua mistura de medo e fascinação; embora na essência mais vago. O menino brasileiro do que tem medo não é tanto de nenhum bicho em particular, como do bicho em geral, um bicho que não se sabe bem qual seja, espécie de síntese da ignorância do brasileiro tanto da fauna como da flora do seu país. Um bicho místico, horroroso, indefinível.

Gilberto Freyre

30 de janeiro de 2018

Questão de higiene


Quanto ao asseio do corpo, os indígenas do Brasil eram decerto superiores aos cristãos europeus aqui chegados em 1500. Não nos esqueçamos de que entre estes exaltavam-se por essa época santos como Santo Antão, o fundador do monaquismo, por nem os pés dar-se à vaidade de lavar; ou como São Simeão, o Estilita, de quem de longe se sentia a inhaca do sujo. E não seriam os portugueses os menos limpos entre os europeus do século XVI, como a malícia antilusitana talvez esteja a imaginar; mas, ao contrário, dos mais asseados, devido à influência dos mouros.
(...)
O século da descoberta da América - o XV - e os dois imediatos, de colonização intensa, foram por toda a Europa época de grande rebaixamento nos padrões de higiene. Em princípios do século XIX - informa um cronista alemão - ainda se encontravam pessoas na Alemanha que em toda a sua vida não se lembravam de ter tomado banho uma única vez. Os franceses não se achavam, a esse respeito, em condições superiores às dos seus vizinhos. Ao contrário. O autor de Primitive society recorda que a elegante rainha Margarida de Navarra passava uma semana inteira sem lavar as mãos; que o rei Luís XIV quando lavava as suas era com um pouco de álcool perfumado, uns borrifos apenas; que um manual francês de etiqueta do século XVII aconselhava o leitor a lavar as mãos uma vez por dia e o rosto quase com a mesma frequência; que outro manual, do século anterior, advertia os jovens da nobreza a não assoarem o nariz à mesa com a mão que estivesse segurando o pedaço de carne; que em 1530 Erasmo considerava decente a pessoa assoar-se a dedo, uma vez que esfregasse imediatamente com a sola do sapato o catarro que caísse no chão; que um tratado de 1539 trazia receitas contra os piolhos, provavelmente comuns em grande parte da Europa.
Pela Europa os banhos à romana, ou de rio, às vezes promíscuos, contra os quais por muito tempo a voz da Igreja clamara em vão, haviam cessado quase de todo. 
(...)
Em contraste com tudo isso é que surpreendeu aos primeiros portugueses e franceses chegados nesta parte da América um povo ao que parece sem mancha de sífilis na pele; e cuja maior delícia era o banho de rio. Que se lavava constantemente da cabeça aos pés; que se conservava em asseada nudez; que fazia uso de folhas de árvores, como os europeus mais limpos de toalhas de enxugar as mãos e de panos de limpar menino novo; que ia lavar no rio a sua roupa suja, isto é, as redes de algodão.

Gilberto Freyre

Bate com força, que eu gosto


O mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado marechal de ferro. A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar "povo brasileiro" ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais - não de todo invulgares nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil - de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se.
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em "princípio de Autoridade" ou "defesa da Ordem". Entre essas duas místicas - a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia - é que se vem equilibrando entre nós  a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e analfabetos.

Gilberto Freyre

O país do agronegócio


Comentando a descrição de um jantar colonial em Boston no século XVIII - um jantar de dia de festa com pudim de ameixa, carne de porco, galinha, toucinho, bife, carne de carneiro, peru assado, molho grosso, bolos, pastéis, queijos etc. (todo um excesso de proteína de origem animal) - o professor Percy Goldthwait Stiles, de Harvard, observa muito sensatamente que semelhante fartura talvez não fosse típica do regime alimentar entre os colonos da Nova Inglaterra; do ordinário, do comum, do de todo dia. Que as festas gastronômicas entre eles talvez se compensassem com os jejuns. O que parece poder aplicar-se, com literal exatidão, aos banquetes coloniais no Brasil intermeados decerto por muita parcimônia alimentar, quando não pelos jejuns e pelas abstinências mandadas observar pela Santa Igreja. Desta a sombra matriarcal se projetava então muito mais dominadora e poderosa sobre a vida íntima e doméstica dos fiéis do que hoje.
Impossível concluir dos banquetes que o padre Cardim descreve, e a que alude Soares, que fosse sempre de fartura o passadio dos colonos; forte e variada sua alimentação; que o Brasil dos primeiros séculos coloniais fosse o tal "país de Cocagne" da insinuação um tanto literária de Capistrano de Abreu. É ainda no próprio Cardim que vamos recolher este depoimento de um flagrante realismo: no Colégio da Bahia "nunca falta um copinho de vinho de Portugal, sem o qual não se sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos fracos". Note-se de passagem que nesse mesmo vinho de Portugal os puritanos da Nova Inglaterra afogavam a sua tristeza.
País de Cocagne coisa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o suprimento de víveres.
O luxo asiático, que muitos imaginam generalizado ao norte açucareiro, circunscreveu-se a famílias privilegiadas de Pernambuco e da Bahia. E este mesmo um luxo mórbido, doentio, incompleto. Excesso em umas coisas, e esse excesso à custa de dívidas; deficiências em outras. Palanquins forrados de seda, mas telha-vã nas casas-grandes e bichos caindo na cama dos moradores.
No Pará no século XVII "as famílias de alguns homens nobres" não podem vir à cidade pelas festas de Natal (1661) "por causa de suas filhas donzelas não terem que vestir para irem ouvir missa". Recorda João Lúcio de Azevedo que exprobrando Antônio Vieira à Câmara do Pará não haver na cidade açougue, nem ribeira, ouvira em resposta ser impossível o remédio "como impossível era haver pagamento pelo sustento ordinário". E acrescenta: "A alimentação trivial, de caça e pescado, abundante nos primeiros tempos rarefez-se à proporção que o número de habitantes aumentava. As terras, sem amanho nem inteligente cultura, perdiam a primitiva fertilidade e os moradores retiravam-se, passando para outras estâncias suas casas e lavouras".
Do Maranhão é o padre Vieira quem salienta não haver, no seu tempo, em todo o Estado, "açougue, nem ribeira, nem horta, nem tendas onde se vendessem as cousas usuais para o comer ordinário". De todo o Brasil é o padre Anchieta quem informa andarem os colonos do século XVI, mesmo "os mais ricos e honrosos" e os missionários, de pé descalço, à maneira dos índios; costume que parece ter-se prolongado ao século XVII e aos próprios fidalgos olindenses - os tais dos leitos de seda para a hospedagem dos padres-visitadores e dos talheres de prata para os banquetes de dia de festa. Seus vestidos finos seriam talvez para as grandes ocasiões. Por uma cena que Maria Graham presenciou em Pernambuco dos princípios do século XIX parece igualmente ter prevalecido entre nossos fidalgos de garfo de prata... para inglês ver (mas inglês raramente se deixa iludir por aparências douradas ou prateadas) o gosto de comer regaladamente com a mão. Nem esqueçamos este formidável contraste nos senhores de engenho: a cavalo grandes fidalgos de estribo de prata, mas em casa uns franciscanos, descalços, de chambre de chita e às vezes só de ceroulas. Quanto às grandes damas coloniais, ricas sedas e um luxo de teteias e joias na igreja, mas na intimidade, de cabeção, saia de baixo, chinelo sem meias. Efeito em parte do clima, esse vestuário tão à fresca; mas também expressão do franciscanismo colonial, no trajar como no comer de muito fidalgo, dos dias comuns.
A própria Salvador da Bahia, quando cidade dos vice-reis, habitada por muito ricaço português e da terra, cheia de fidalgos e de frades, notabilizou-se pela péssima e deficiente alimentação. Tudo faltava: carne fresca de boi, aves, leite, legumes, frutas; e o que aparecia era da pior qualidade ou quase em estado de putrefação. Fartura só a de doce, geleias e pastéis fabricados pelas freiras nos conventos: era com que se arredondava a gordura dos frades e das sinhás-donas.
Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII e XVIII. Nas cidades, péssima e escassa. O bispo de Tucumã, tendo visitado o Brasil no século XVII, observou que nas cidades "mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe e nada lhe traziam, porque nada se achava na praça nem no açougue"; tinha que recorrer às casas particulares dos ricos. As cartas do padre Nóbrega falam-nos da "falta de mantimentos" e Anchieta refere nas suas que em Pernambuco não havia matadouro na vila, precisando os padres do colégio de criar algumas cabeças de bois e vacas para sustento seu e dos meninos: "se assim não o fizessem, não teria o que comer". E acrescenta: "Todos sustentam-se mediocremente ainda que com trabalho por as cousas valerem mui caras, e tresdobro do que em Portugal". Da carne de vaca informa não ser gorda: "não muito gorda por não ser a terra fértil de pastos". E quanto a legumes: "da terra há muito poucos". É ainda do padre Anchieta a informação: "Alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vem vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras cousas de comer".
Era uma dieta, a da Bahia dos vice-reis, com os seus fidalgos e burgueses ricos vestidos sempre de seda de Gênova, de linhos e algodão da Holanda e da Inglaterra e até de tecidos de ouro importados de Paris e de Lyon; era uma dieta, a deles, em que na falta de carne verde se abusava de peixe, variando apenas o regime ictiófago com carnes salgadas e queijos do reino, importados da Europa juntamente com outros artigos de alimentação. "Não se vê carneiro e raro é o gado bovino que preste", informava sobre a Bahia o abade Reynal. Nem carne de vaca nem de carneiro nem mesmo de galinha. Nem frutas nem legumes; que legumes eram raros na terra e frutos quase que só chegavam à mesa já bichados ou então tirados verdes para escaparem à gana dos passarinhos, dos tapurus e dos insetos. A carne que se encontrava era magra, de gado vindo de longe, dos sertões, sem pastos que o refizessem da penosa viagem. Porque as grandes lavouras de açúcar ou de tabaco não se deixavam manchar de pastos para os bois descidos dos sertões e destinados ao corte. Bois e vacas que não fossem os de serviço eram como se fossem animais danados para os latifundiários.
Vacas leiteiras sabe-se que havia poucas nos engenhos coloniais, quase não se fabricando neles nem queijos nem manteiga, nem se comendo, senão uma vez por outra, carne de boi. Isto, explica Capistrano de Abreu, "pela dificuldade de criar reses em lugares impróprios à sua propagação". Dificuldade que reduziu este gado ao estritamente necessário ao serviço agrícola. Era a sombra da monocultura projetando-se por léguas e léguas em volta das fábricas de açúcar e a tudo esterelizando ou sufocando, menos os canaviais e os homens e bois a seu serviço.

Gilberto Freyre

29 de janeiro de 2018

Os mortos e os santos


O costume de se enterrarem os mortos dentro de casa - na capela, que era uma puxada da casa - é bem característico do espírito patriarcal de coesão de família. Os mortos continuavam sob o mesmo teto que os vivos. Entre os santos e as flores devotas. Santos e mortos eram afinal parte da família. Nas cantigas de acalanto portuguesas e brasileiras as mães não hesitaram nunca em fazer dos seus filhinhos uns irmãos mais moços de Jesus, com os mesmos direitos aos cuidados de Maria, às vigílias de José, às patetices de vovó de Sant'Ana. A São José encarrega-se com a maior sem-cerimônia de embalar o berço ou a rede da criança:

Embala, José, embala,
que a Senhora logo vem:
foi lavar seu cueirinho
no riacho de Belém.

E a Sant'Ana de ninar os meninozinhos no colo:

Senhora Sant'Ana,
ninai minha filha;
vede que lindeza
e que maravilha.

Esta menina
não dorme na cama,
dorme no regaço
da Senhora Sant'Ana.

E tinha-se tanta liberdade com os santos que era a eles que se confiava a guarda das terrinas de doce e de melado contra as formigas:

Em louvor de São Bento
que não venham as formigas
cá dentro.

Escrevia-se em um papel que se deixava à porta do guarda-comida e em papéis que se grudavam às janelas e às portas:

Jesus, Maria, José,
rogai por nós que recorremos a vós.

Quando se perdia um dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro, ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geleia de araçá ou goiaba; brincar com os moleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces.
Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos no santuário, entre as imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas. Também se conservavam às vezes as tranças das senhoras, os cachos dos meninos que morriam anjos. Um culto doméstico dos mortos que lembra o dos antigos gregos e romanos.

Gilberto Freyre
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