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28 de outubro de 2016

Feitiçaria na capitania de São Paulo


Em 174, Antônio Raposo de Camargo denunciou Luzia Leme, cujo marido estava havia muitos anos ausente nas minas de Goiás, e que era moradora na vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba. Acusou-a de crime de maleficio e contou que a denunciada, por ciúmes, tinha o ameaçado, na frente de uma testemunha, dizendo que o havia de enfeitiçar. E na verdade Antônio, pela festa da Páscoa de 1747, sentiu uma grande dor no coração "com grande frieza por todo o corpo, ficando quase cego". Queixou-se mais ainda: "picadas que se mudam de uma parte para outra, sem sossego algum, quer de dia, quer de noite, com grandes rugidos na barriga e outras muitas moléstias". Para combater o malefício, Antônio recorrera ao negro escravo Mateus, morador na freguesia de Nossa Sanhora de Araritaguaba. Este lhe aplicara defumadouros de folhas de guarapá, esterco de anta e de capivara, e banha de ictipopé. Fizera-o ainda mastigar "uma raiz incógnita".
Luzia confessara a um forasteiro ter enfeitiçado Antônio e numa caixa que tinha em casa guardava um osso de defunto "e um pedaço de pedra parecia ser pedra do Senhor Bom Jesus de Iguape". A denúncia de malefício foi feita perante o vigário da vara da matriz de Itu e o denunciante era solteiro, natural da cidade de São Paulo, filho de um mestre-de-campo. Na época encontrava-se na vila de Sorocaba "sem domicílio certo", sendo portanto provável que se tenha arranchado no sítio de Luzia e com ela estivesse amancebado, provocando depois os ciúmes que tinham levado ao malefício.
Quanto às curas supersticiosas, elas eram em geral denunciadas quando não produziam o efeito desejado. Na vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu, o negro escravo João denunciou em 1747 Marcela, escrava de um outro senhor da mesma vila. Supondo que a "enfermidade perigosa" de João fosse resultado de um malefício, seu senhor chamara Marcela à sua casa, pagando-lhe pelo serviço de curar o escravo. A cura se processara "untando-lhe o corpo com certo unguento e repetindo palavras que ele denunciante não pôde entender por ela falar e articular com voz muito baixa". Pusera-lhe nas costas uma ventosa, "com que tirou não somente sangue senão também muitos cabelos e espinhos". Estiveram presentes ao ritual da cura o senhor e sua mulher e também os parceiros de escravidão, todos do gentio da Guiné. Mas o negro João não sarou, nem sequer melhorou de suas queixas, e talvez por isso mesmo denunciou Marcela pelo crime de curar malefícios "por meios ilícitos e supersticiosos".
Na mesma vila de Itu, o vigário da vara encaminhou em 1752 a denúncia referente a Isabel Maria, "tida e havida por curadora de feitiços". Ela se oferecera para curar José de Matos Nogueira "dizendo serem feitiços o seu achaque". O ritual curativo fora o seguinte: primeiro mandou-o despir e de noite lhe fez uns defumadouros "com umas cerimônas desusadas", e por fim aspergiu toda a casa com aguardente de cana. Vendo isto, o doente desistira da cura e resolvera denunciar a curandeira.
Na capitania também havia curandeiros; não eram apenas as mulheres a fazer as curas. O escravo José, da freguesia da Sé da cidade de São Paulo, em 1760 curava supersticiosamente por aquele distrito muitas pessoas enfermas, "persuadindo-as a que as queixas que padecem são feitiços para que tem remédio para os lançar fora e adivinhar quem lhos deu e o lugar em que são escondidos". Pronunciava uma palavras enquanto mantinha um frango preso junto de uma panela e, em seguida, dirigia-se ao lugar onde estavam escondidos os feitiços e desenterrava-os.
No interrogatório das testemunhas, dezenove ao todo, sendo sete mulheres, realizado na vila de Mogi das Cruzes onde o escravo José mais atuara, uma delas mencionou que ele, ao ser chamado para curar D. Antônia Pinta do Rego, que estava enferma, logo disse que seus achaques eram feitiços. Mandou buscar uma panela nova com água, que colocou em cimade uns ossos que pareciam de pássaro. Depois botou dentro um anel de prata ou estanho e começou a dizer umas palavras em sua língua. Sabia quem tnha feito os feitiços, mas não o revelou, e cavando no chão tirou um saquinho de pano onde disse estarem os feitiços. Mas desta cura não resultou nenhum efeito positivo na saúde da doente.
Os rituais amatórios, pelo contrário, eram especialidade feminina. Teresa Leme da Silva, moradora no bairro de Jundiaí, termo da vila de Itu, procurou o vigário da vara desta vila em 1745 para denunciar Francisca Leite, "bastarda do gentio da terra", moradora no bairro de Anhembi. Esta costumava trazer "uns bichos branquicentos com cabeças redondas pretas em um cabacinho pequeno para efeito de atrair aos homens ao amor lascivo e trato desonesto e libidinoso". E revelara a Teresa o modo como procedia: tirava um bicho do cabacinho e punha-o numa caixa, ao mesmo tempo em que nomeava "algum varão de sua afeição com quem queria ter tratos ilícitos". Se o bicho dava "sua dentadinha" na caixa, era sinal certo de que iria conseguir o que desejava. Tal procedimento fora usado com um viúvo que andara amigado com Francisca durante três anos e que depois a largara. Voltara, contudo, para ela graças aos bichos do cabacinho, sustentados "com farinha mastigada passando depois a massa pelas suas partes pudendas".

Maria Beatriz Nizza da Silva

24 de outubro de 2016

Rumo ao ouro de Cuiabá


Os territórios além do rio Paraná eram conhecidos dos paulistas pelo menos desde a década de 1630, quando atacaram as chamadas missões do Itatim. Por ali também passaram diversos sertanistas, inclusive Antônio Raposo Tavares, em expedições que avançaram por terras hoje pertencentes à Bolívia.
Tudo indica que o primeiro paulista a alcançar o rio Cuiabá teria sido Antônio Pires de Campos, mas seria somente Pascoal Moreira Cabral, em 1718, quem encontraria nas barrancas do rio Coxipó Mirim os primeiros indícios de existência de ouro. A instalação dos primeiros mineradores nessa paragem teria permitido a descoberta, em 1722, das lavras do Sutil, nomeadas segundo o nome de seu descobridor, Miguel Sutil, e depois conhecidas como minas do Cuiabá.
O ouro encontrado era bastante superficial, e consta que sutil conseguiu meia arroba em apenas um dia. A fama da localidade rapidamente se alastrou, e em muito pouco tempo levas de colonos vieram de São Paulo para se aventurar por essas paragens ermas, tentando passar pelo longo e difícil caminho fluvial que só então começava a ser mais bem conhecido. Tal como ocorrera em Minas Gerais, os momentos iniciais da mineração em Cuiabá foram marcados pela carestia de alimentos, a qual levou também à prática de preços exorbitantes para o mais simples gênero destinado a aplacar a fome.
O capitão-general e governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, assumiu seu cargo em 1721, e tratou de imediatamente organizar essas novas minas, sob ordens expressas de Lisboa, pois já apresentavam rixas perigosas entre facções de paulistas. Muito se escreveu sobre os irmãos Leme, que foram combatidos e eliminados pelo governador, em seu esforço de impor o controle da Coroa sobre aquelas paragens tão distantes.
Rodrigo César acaba optando por ir pessoalmente às novas lavras, na monção de 1726. Essa célebre expedição reuniu três mil pessoas em trezentas canoas e exigiu um enorme aprovisionamento de equipamentos e gêneros diversos, comprovando a grande capacidade mercantil da lavoura paulista. Após cerca de quatro meses de viagem, chega ao arraial de Cuiabá, que erige em vila, instalando Câmara e pelourinho. Graças à garimpagem fácil, muito na superfície, o crescimento populacional foi intenso logo nos primeiros anos e já contavam-se sete mil almas em 1726, das quais cerca de 2600 seriam de negros escravos.
Diferentemente das rotas até Minas Gerais, a viagem para Cuiabá era quase que inteiramente fluvial. Seguia-se pelo rio Tietê a partir do porto de Araritaguaba, a atual Porto Feliz. O percurso era demorado e difícil, devido às diversas cachoeiras, e muitas tinham de ser transpostas com as canoas aliviadas de sua carga, ou até mesmo por terra. Eram precisos pelo menos 25 dias para alcançar o rio Paraná. Este, por sua vez, era descido em cerca de seis dias, sem ocorrência de obstáculos, mas era conhecido por suas ondas perigosas, que obrigavam as canoas a navegarem muito próximas às margens. Virava-se a seguir à direita, tomando o rio Pardo contra a correnteza, em um difícil trecho de sessenta léguas e nada menos que 32 cachoeiras, que podiam demandar dois penosos meses de viagem. Daí entrava-se pelo pequeno Sanguessuga, indo dar no varadouro de Camapuã, local onde se fundou, em 1728, uma fazenda, que daria apoio à travessia terrestre, oferecendo reabastecimento e transporte da mercadoria e embarcações até o rio Camapuã, de onde partiam para o rio Coxim, para a seguir dobrar para o rio Taquari, sempre encontrando cachoeiras pelo caminho. Do Taquari alcançava-se o Paraguai, seguindo pelo seu afluente, o São Lourenço, e deste finalmente subia-se o Cuiabá, destino final.
Este longo e complicado trajeto, tortuoso em seu percurso por rios e tantos obstáculos interpostos pela natureza, jamais teve a concorrência de qualquer caminho terrestre. A presença dos índios guaicurus, o famoso povo cavaleiro que dominava as terras ao longo do rio Pardo e era bastante temido dos viajantes, desencorajava qualquer ideia de varar longas distâncias fora das águas. Mas também havia os ainda mais temidos paiaguás, que atacavam com canoas e por diversas vezes efetuaram grandes massacres. São célebres alguns de seus assaltos, como aquele em que pela primeira vez se manifestaram, em 1725, promovido contra a expedição comandada por Diogo de Sousa: “Tão inesperado e violento foi o assalto que, de um total de 600 pessoas, distribuídas pelas 20 canoas da conserva, só duas se salvaram, um branco e um negro”.
Foi também famoso o infortúnio da monção em que voltava para São Paulo, em 1730, o ouvidor Antônio Alves Lanhas Peixoto, na qual quase todos morreram, inclusive o próprio ouvidor, além de se perderem “60 arrobas de ouro, que se iam pagar os quintos na Casa de Fundição”. Os ataques tornaram-se constantes e as tentativas de eliminá-los em geral fracassaram; somente na segunda metade do século XVIII eles deixaram de oferecer perigo devido aos conflitos com os guaicurus, seus antigos aliados contra os brancos.
Além dos ataques de índios, a própria dificuldade do percurso cobrava seu preço em vidas e em mercadorias extraviadas, como relata o capitão-general Rodrigo César de Meneses, após sua viagem de ida, longa de quatro meses:

“havendo muitos falecido afogados e perdidas várias canoas por causa das muitas cachoeiras, que têm em si todos os rios, e pela furiosa correnteza deles, houve bastantes perdas também de fazendas, que geralmente chegou a todos e eu perdi, sem se poderem salvar nem os remos, uma carregada de víveres desse Reino para poder sustentar-me enquanto aqui assistisse, e parte de minha copa e roupas.”

Maria Beatriz Nizza da Silva
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