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20 de julho de 2017

Poema dialético


Todas as formas ainda se encontram em esboço,
Tudo vive em transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade do mundo.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em planos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida?
Sente uma angústia sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror,
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e beberam o próprio suor,
Não se banharam no regato livre.
Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la em carne e espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

É preciso conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.

Murilo Mendes

Meninos


Sentado à soleira da porta
Menino triste
Que nunca leu Julio Verne
Menino que não joga bilboquê
Menino das brotoejas e da tosse eterna

Contempla o menino rico na varanda
Rodando na bicicleta
O mar autônomo sem fim.

É triste a luta de classes.

Murilo Mendes

O rato e a comunidade


O rato apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E depois foram-se embora.
Que sabe este rato de mim?
E esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.

Passam meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecer nossas lágrimas.
Que sabem de nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade?
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes.
...Subúrbios longínquos, esses homens.

Entretanto cada um deve beber no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro deve nos ajudar a reconstituir nossa forma.
O homem que não viu seu amigo chorar
ainda não chegou ao centro da experiência do amor.
Para um amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo sentimento é pressentido, trocado, comunicado.
Quem sabe conviver o outro, quem sabe transferir o coração?
Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.

Desconhecido que atravessas a rua,
Que há de comum entre mim e ti?
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo.
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.

A mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só pessoa.
Esta é a que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os homens pela mão da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram.

Murilo Mendes

19 de julho de 2017

Pós-Poema


O anteontem - não do tempo mas de mim -
Sorri sem jeito
E fica nos arredores do que vai acontecer
Como menino que pela primeira vez põe calça comprida.

Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo;
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser.

Murilo Mendes

18 de julho de 2017

A desconsoladora


Mulher, eu te procuro continuamente. É mais fácil achar Deus, do que te
achar.

Tenho por ti uma grande atração e repulsão - ao mesmo tempo.

Eu, adormeço com teu amor e deperto com o ódio a ti. E te destruo e te
construo a todo o instante.

Hás de me perseguir até a imortalidade. A paz da mulher não é a paz de
Deus.

A mulher não é o amor. A poesia é o amor. A poesia da ausência da mulher
é equivalente à poesia da posse da mulher.

Murilo Mendes

2 de junho de 2017

O diadema


Eu quero uma mulher
Para receber um diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vasta e lisa a cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia.
 
Murilo Mendes
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