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24 de junho de 2019

Soco no crânio


Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh, Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente- como a morte de alguém que amávamos mais que a nós mesmos -, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana - como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós.
 
Franz Kafka

19 de setembro de 2016

Paternidade


Para mim, sempre foi incompreensível sua total falta de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podia me infligir com palavras e juízos: era como se você não tivesse a menor noção da sua força. Também eu com certeza muitas vezes o magoei com palavras, mas depois sempre o reconheci, isso me doía mas eu não podia me dominar, refrear a palavra, já me arrependia enquanto a pronunciava. Mas você desfechava sem mais as suas, não se condoía de ninguém, nem durante nem depois, contra você estava-se completamente sem defesa.
No entanto, toda a sua educação foi assim. Creio que você tem talento de educador; a uma pessoa da sua índole você certamente teria sido útil através da educação; ela teria percebido a sensatez daquilo que você lhe estava dizendo, não teria se preocupado com nada além disso e dessa maneira levaria as coisas calmamente a termo. Mas para mim, quando criança, tudo o que você bradava era logo mandamento do céu, eu jamais o esquecia, ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o mundo, sobretudo para julgar você mesmo, e nisso o seu fracasso era completo. Como em criança eu ficava junto de você principalmente na hora das refeições, a sua lição principal era em grande parte uma lição sobre o comportamento correto à mesa. O que vinha à mesa precisava ser comido, não era permitido falar sobre a qualidade da comida — mas você frequentemente achava a comida intragável; chamava-a de “grude”, a “besta” (a cozinheira) a tinha estragado. Como você por natureza tinha um apetite vigoroso e uma predileção especial por comer tudo rápido, quente e em grandes bocados, o filho tinha de se apressar, reinava à mesa um silêncio sombrio, interrompido por admoestações: “Primeiro coma, depois fale”, ou “Mais depressa, mais depressa”, ou “Veja: já terminei de comer faz muito tempo”. Não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia. O principal era que se cortasse o pão direito, mas o fato de que você o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente. Era preciso prestar atenção para que não caíssem restos de comida no chão, no final a maioria deles ficava embaixo de você. À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito dos dentes. Por favor, pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles só me oprimiam porque você, o homem tão imensamente decisivo, não atendia ele mesmo aos mandamentos que me impunha. Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência.
 

Franz Kafka

17 de setembro de 2016

Educação pela ironia


Você tinha especial confiança na educação pela ironia, era ela a que melhor correspondia à sua superioridade sobre mim. Em você uma admoestação tinha comumente esta forma: “Será que você não pode fazer isto assim e assado? Será que é demais para você? Naturalmente para isso você não tem tempo, não é?”, e coisas semelhantes. Nessa hora cada pergunta era acompanhada por um riso maldoso e uma cara feia. De certo modo a pessoa já estava punida antes mesmo de saber que tinha feito algo errado. Eram provocadoras também as repreensões em que se era tratado na terceira pessoa, ou seja, como alguém indigno até da interpelação malévola, na qual você se dirigia formalmente à minha mãe, mas na realidade a mim; assim, por exemplo: “Naturalmente não se pode exigir isso do senhor meu filho” e coisas do gênero. (A contrapartida foi que eu, por exemplo, não ousava e mais tarde nem mesmo cogitava de lhe fazer perguntas diretas quando minha mãe estava presente. Era muito menos arriscado para o filho perguntar por você à mãe sentada ao seu lado; então se indagava: “Como vai o meu pai?” e assim se evitavam surpresas.) Evidentemente havia casos em que se estava muito de acordo com a ironia mais acerba, quando ela dizia respeito a outra pessoa, por exemplo Elli, com quem estive em más relações durante anos. Para mim era uma festa da maldade e do júbilo pela infelicidade alheia quando, em quase todas as refeições, se falava dela assim: “A ampla mocinha precisa ficar sentada a dez metros de distância da mesa”, lance em que você, então, maldoso na sua cadeira, sem o menor vestígio de amabilidade ou de humor, mas sim na postura de um inimigo encarniçado, procurava imitar, com exagero, a maneira como ela se sentava, extremamente repulsiva para o seu gosto. Com que frequência essa e outras coisas parecidas tiveram de se repetir, quão pouco você alcançou na prática efetiva! Acredito que isso se devia ao fato de que o dispêndio de ira e malevolência não parecia estar numa proporção certa com a coisa propriamente dita; não havia o sentimento de que a ira tivesse sido provocada por aquela ninharia de se sentar longe da mesa, mas que ela existia de antemão em toda a sua magnitude e que só casualmente fora tomada como pretexto para se desencadear. Uma vez que se estava convencido de que o pretexto seria encontrado de qualquer modo, não havia nenhuma preocupação especial com a conduta; além do que ficava-se insensibilizado com as constantes ameaças, pois aos poucos já se estava quase seguro de que ninguém iria apanhar. A criança se tornava rabugenta, desatenta, desobediente, sempre pensando numa fuga, a maioria das vezes numa fuga interior. Assim você sofria, assim sofríamos nós.

Franz Kafka
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