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15 de setembro de 2017

A coragem da resignação


A palavra "resignação" não tem boa reputação. Lembra atitude devota, passividade, lágrima ao canto do olho. E todavia, não é isso. Em face dos limites de uma condição, da morte e do nada que vem nela, que outro nome dar à aceitação calma, à fria impassibili­dade? A revolta em tal caso pode falar ao nosso orgulho, à imagem de grandeza que queiramos se tenha de nós. Mas é uma imagem ridícula. Ela responde ainda, não ao reconhecimento do que nos espera, mas a uma notícia recente e não assimilada que disso nos dessem. A coragem não está na atitude espetacular, mas na serena e recolhida e modesta aceitação. Temos assim tendência a julgar herói o que enfrenta a morte com atitudes de grandiosidade, não o que a enfrenta no seu recanto, em silêncio e discrição. Mas o espetáculo é ainda uma forma de compensar o desastre da morte — é ainda uma forma de uma parcela de nós se recusar a morrer. Quem morre resignado morre todo por inteiro, nada ele assim recusa do que a morte lhe exige.
 
Vergílio Ferreira

3 de setembro de 2017

O pudor é masculino


O pudor é um sentimento masculino. Quando uma mulher conhece outra, ao fim de dez minutos está já a explicar-lhe como é que o marido trabalha na cama. Ao fim de dez anos ou de uma vida, um homem não explica a outro como trabalha a mulher. É que o homem não é um novo-rico do sexo. Ou respeita a mulher por simples machismo?
Porque é por machismo, por exemplo, que muitas vezes admira uma mulher que se distinguiu nas artes ou nas ciências. Implicitamente tem-se a ideia de que o normal seria não se distinguir. Se portanto se distingue, é isso tão extraordinário como um trapezista de circo ou coisa assim. Admirando-se então a mulher, simultaneamente se humilha. Dessa humilhação se fazem muitas admirações. 
 
Vergílio Ferreira

24 de outubro de 2016

Heroísmo por procuração


A ação mais degradada é a daquele que não age e passa procuração a outrem para agir - a dos frequentadores dos espetáculos de luta e a dos consumidores da literatura de violência. Ser herói e através de outrem, ser corajoso em imaginação, é o limite extremo da ação gratuita, do orgulho ou da vaidade que não ousa. Corre-se o risco sem se correr, experi­menta-se como se se experimentasse, colhe-se o prazer do triunfo sem nada arriscar. E é por isso que os filmes de guerra, do heroísmo policial, de espionagem, têm de acabar bem. Por­que o que aí se procura é justamente o sabor do triunfo e não apenas do risco. O gosto do risco procura-o o herói real, o jogador que pode perder. Mas o espectador da sua luta, degra­dado na sedução da ação, acentua a sua mediocridade no não poder aceitar a derrota, no fingir que corre o risco mesmo em ficção, mas com a certeza prévia de que o risco é vencido. O que ele procura é a pequena lisonja à sua vaidade pequena, a figuração da coragem para a sua covardia, e só a vitória do herói a quem passou procuração o pode lisonjear. E se o herói morre em grandeza, há o prazer ainda de o espectador estar vivo para saborear a coragem do que morreu e a não pode já saborear. A vida do herói estende-se assim para além da sua morte onde a espera o espectador para se investir da glória que lhe coube e ele já não pôde gozar. É de dentro da vida e do conforto que o espectador da coragem saboreia o prazer da coragem que não tem. Daí às vezes a ilusão de que também ele poderia enfrentar os mesmos riscos, se os enfrentasse. O que lhe fica à superfície de toda a ação é o gosto dessa ação e não a dificuldade de a realizar.
 
Vergílio Ferreira

O animal no homem


Não se constrói o mundo só com a parte minúscula do homem, que é com que os pregadores do futuro julgam poder construí-lo. Há a outra parte, a interesseira, a comilona, e é essa parte que vós acenais para a ilusão. A parte grossa, a parte animal em disputa, a que dá facadas por causa de uma sardinha, a que dá tiros por causa de um olhar em desafio, a que dá pontapés numa pedra só porque tropeçou nela, ainda que fique ele pontapeado, a que rosna por causa de um osso, a que de todos os horizontes possíveis só distingue o da gamela, a pesada e grossa, a gordurosa. Em nove décimos do homem o que pesa é o animal. E é com o décimo que resta que quereis reinventá-lo. Quereis? Mas é da parte que negais nos outros que vos servis de engodo para a pregação. Meu Deus.

Vergílio Ferreira
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