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1 de fevereiro de 2021

Debate com bolsonarismo?


Se você lhe dissesse apenas a verdade, o que realmente pensa dele, isso significa que estaria concordando em ter uma discussão séria com um louco e que você mesmo é louco. Pois bem, é exatamente a mesma coisa com o mundo que nos cerca. Se você teima em lhe dizer a verdade de frente, isso significa que você o leva a sério. E levar a sério algo tão pouco sério é perder, você mesmo, toda a seriedade. 

 Milan Kundera

1 de janeiro de 2021

Sentido póstumo


Atravessamos o presente de olhos vendados, mal podemos pressentir ou adivinhar aquilo que estamos vivendo. Só mais tarde, quando a venda é retirada e examinamos o passado, percebemos o que foi vivido, compreendendo o sentido do que se passou.

Milan Kundera

12 de janeiro de 2020

Afrodisíaco sem contra-indicações


Naquele momento, ouviu Thomas chamá-la. O chamado era importante, pois vinha de alguém que não conhecia sua mãe nem os bêbados de quem ela ouvia todo dia comentários obscenos e nada originais. Sua condição de desconhecido o elevava acima dos outros.
E mais uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Nesse café, ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta. Contra o mundo de grosseria que a cercava, não tinha efetivamente senão uma arma: os livros que pedia emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles não só lhe ofereciam a possibilidade de uma evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um significado como objetos: gostava de passear na rua com um livro debaixo do braço. Eram para ela aquilo que uma elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles distinguiam-na dos outros.
 
Milan Kundera

14 de agosto de 2017

As perguntas verdadeiramente importantes


As perguntas verdadeiramente importantes são as que uma criança pode formular - e apenas essas. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas importantes. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode passar. Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há resposta que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência. 
 
Milan Kundera

27 de outubro de 2016

O martelo


O olhar do homem já foi descrito muitas vezes. Ele pousa friamente sobre a mulher, ao que parece, como se a medisse, a pesasse, a avaliasse, a escolhesse, ou seja, como se a transformasse em coisa.
O que não se sabe tão bem é que a mulher não está inteiramente desarmada contra esse olhar. Se ela é transformada em coisa, ela então observa o homem com o olhar de uma coisa. É como se o martelo tivesse de repente olhos e observasse fixamente o pedreiro que o usa para enfiar um prego. O pedreiro vê o olhar mau do martelo, perde a segurança e dá uma martelada no próprio dedo.
O pedreiro é o senhor do martelo, porém é o martelo que leva vantagem sobre o pedreiro, porque a ferramenta sabe exatamente como deve ser manejada, ao passo que aquele que a maneja só pode sabê-lo mais ou menos.
Poder olhar transforma o martelo em ser vivo, e o bravo pedreiro precisa sustentar seu olhar insolente e, com a mão firme, transformá-lo novamente em coisa. Dizem que a mulher vive assim um movimento cósmico para o alto e depois para baixo: a elevação da coisa tornada criatura e a queda da criatura tornada coisa.
Mas acontecia a Jan cada vez com mais frequência que o jogo do pedreiro e do martelo não fosse mais jogável. As mulheres olhavam mal. Estragavam o jogo. Seria porque nessa época elas haviam começado a se organizar e tinham decidido transformar a condição secular da mulher? Ou seria porque Jan estava envelhecendo e via de outro modo as mulheres e seu olhar? Era o mundo que mudava ou era ele?
Difícil dizer. A verdade é que a mulher do trem o olhava com olhos desconfiados, cheios de dúvidas, e ele largara o martelo antes de ter tido tempo de erguê-lo.
Encontrara recentemente Pascal, que se queixara de Barbara. Barbara o havia convidado para ir à sua casa. Lá estavam duas moças que Pascal não conhecia. Ele conversara um pouco, e em seguida, sem preveni-lo, Barbara fora à cozinha buscar um grande despertador de ferro branco, como aqueles de antigamente. Começara a tirar a roupa sem dizer uma palavra e as duas moças fizeram o mesmo.
Pascal se lamentou: "Você compreende, elas tiraram a roupa com indiferença, com displicência, como se eu fosse um cachorro ou um jarro de flores."
Em seguida, Barbara lhe ordenara que tirasse a roupa também. Ele não queria perder a oportunidade de fazer amor com duas desconhecidas, e obedecera. Quando já estava nu, Barbara lhe mostrara o relógio: "Olhe bem para o ponteiro de segundos. Se não ficar de pau duro dentro de um minuto, pode se retirar!"
"Elas não tiravam os olhos da região entre as minhas pernas e, como os segundos começassem a passar, desataram a rir! Depois disso, me puseram porta afora!"
Eis um caso em que o martelo decidiu castrar o pedreiro.

Milan Kundera

25 de outubro de 2016

Morrer por merda


Só em 1980 se soube da morte do filho de Stalin, Iakov, por um artigo publicado no Sunday Times. Prisioneiro de guerra na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ele ficou no mesmo campo que os oficiais ingleses. Tinham latrinas comuns. O filho de Stalin as deixava sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as latrinas sujas de merda, mesmo que fosse a merda do filho do homem mais poderoso do universo na época. Chamaram-lhe a atenção. Ficou aborrecido. Repetiram as repreensões e o obrigaram a limpar as latrinas. Ele se irritou, vociferou, brigou. Finalmente, pediu uma audiência ao comandante do campo. Queria que ele fosse o árbitro da discussão. Mas o alemão estava imbuído demais de sua importância para discutir sobre merda. O filho de Stalin não pôde suportar a humilhação. Bradando aos céus palavrões russos atrozes, jogou-se contra os fios de alta tensão que cercavam o campo. Deixou-se cair sobre os fios. Seu corpo, que nunca mais sujaria as latrinas britânicas, ficou ali dependurado.
O filho de Stalin não teve uma vida fácil. Foi concebido pelo pai com uma mulher que acabou sendo fuzilada por ele. O jovem Stalin era, portanto, ao mesmo tempo filho de Deus (pois seu pai era venerado como Deus) e amaldiçoado por ele. As pessoas tinham-lhe medo em dobro: podia fazer-lhes mal com seu poder (afinal, era o filho de Stalin) e com sua amizade (o pai podia castigar o amigo no lugar do filho repudiado).
A maldição e o privilégio, a felicidade e a desgraça, ninguém mais do que ele sentiu tão concretamente como estes opostos são permutáveis e como é estreita a margem entre os dois pólos da existência humana.
Logo no início da guerra, foi capturado pelos alemães e acusado de porco por prisioneiros provenientes de uma nação que considerava incompreensivelmente fechada e pela qual sempre tivera uma antipatia visceral. Como podia ele, que carregava nos ombros o mais sublime drama que se possa imaginar (era, ao mesmo tempo, filho de Deus e anjo caído), ser julgado, e, ainda por cima, julgado por coisas que nada tinham de nobres (relacionadas com Deus e com os anjos), mas por uma questão de merda. O mais nobre dos dramas e o mais trivial dos acontecimentos estariam assim tão próximos? Tão vertiginosamente próximos? Pode a proximidade causar vertigem?
É claro que sim. Quando o pólo norte se aproximar do pólo sul a ponto de tocá-lo, o planeta desaparecerá e o homem ficará num vazio que o atordoará e o fará ceder à sedução da queda.
Se a maldição e o privilégio são uma só e única coisa, se não existe diferença alguma entre o nobre e o vil, se o filho de Deus pode ser julgado por uma questão de merda, a existência humana perde suas dimensões e adquire uma insustentável leveza. Assim, o filho de Stalin corre para os arames eletrificados e neles se atira, como se jogasse seu corpo no prato de uma balança que sobe, impiedosa, levantado pela leveza infinita de um mundo que perdeu as dimensões.
O filho de Stalin perdeu a vida por merda. Mas morrer por merda não é morrer de modo absurdo. Os alemães que sacrificaram a vida para ampliar seu império em direção ao leste, os russos que morreram para que o poder de seu país se estendesse em direção ao oeste, esses, sim, morreram por uma tolice, e a morte deles é destituída de sentido, de qualquer valor geral. Em contrapartida, a morte do filho de Stalin foi a única morte metafísica em meio à tolice geral que é a guerra.

Milan Kundera

22 de outubro de 2016

(Des)importante


Ao longo dos últimos duzentos anos, o melro abandonou as florestas para tornar-se um pássaro das cidades. Primeiramente na Grã-Bretanha, desde o final do século XVIII, algumas dezenas de anos mais tarde em Paris e na bacia do Ruhr. No decorrer do século XIX, ele conquistou, uma após a outra, as cidades da Europa. Instalou-se em Viena e em Praga por volta de 1900, depois progrediu em direção ao leste, ganhando Budapeste, Belgrado e Istambul.
Aos olhos do planeta, essa invasão do melro no mundo do homem é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos espanhóis ou do que a volta dos judeus para a Palestina. A modificação das relações entre as diferentes espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma mesma espécie. Que a Boêmia seja habitada pelos celtas ou pelos eslavos, a Bessarábia conquistada pelos romanos ou pelos russos, a Terra não dá importância a isso. Mas que o melro tenha traído a natureza para seguir o homem em seu universo artificial e contra a natureza, eis algo que muda alguma coisa na organização do planeta.
Contudo, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção estática do que é e do que não é importante, fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, ao passo que, às escondidas, nas nossas costas, o insignificante conduz sua guerrilha que terminará por mudar sub-repticiamente o mundo e pulará sobre nós de surpresa.
 
Milan Kundera
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