Mostrando postagens com marcador Artur de Carvalho. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Artur de Carvalho. Mostrar todas as postagens

26 de outubro de 2016

Está tudo acabado entre nós


Foi um choque para a família. O irmão mais novo anunciou oficialmente que pretendia se separar da esposa. Aparentemente, o casamento andava às mil maravilhas. Estavam prosperando, ele como gerente de uma multinacional, ela como professora universitária. Moravam numa bela mansão na qual mantinham um cachorro com pedigree, periquitos, uma chinchila e um filho muito inteligente — isso sem contar dois carros zero na garagem, um deles importado. Parecia o casamento perfeito, porém, de uma hora para outra, a papelada já estava nas mãos dos advogados.
O cunhado e o pai pensaram em intervir, mas foram as mulheres da família que tomaram a iniciativa. A mãe e a irmã marcaram uma reunião com ele, que aparentemente se mantinha irredutível. A razão era simples: não estava mais apaixonado pela mulher.
— Mas ninguém continua apaixonado depois de dez anos de casado, meu filho — dizia a mãe.
— A senhora não ama mais o pai?
— É claro que amo seu pai!
— Então, é o pai que não te ama?
— Para de falar bobagens!
— Mas foi a senhora mesmo que acabou de dizer que a paixão acaba depois de dez anos. E vocês são casados há mais de quarenta!
— Não fica mudando de assunto! — interveio a irmã.
— Eu não estou mudando de assunto. Estou só falando que, depois de dez anos, as mulheres começam a esquecer umas coisas. De levar um cafézinho na cama de vez em quando, por exemplo.
— Larga de ser machista, oras.
— Não é questão de machismo. No começo de casados, você não levava um cafézinho de manhã na cama pro meu cunhado? Ou preparava um jantarzinho especial? E você nunca falou que ele era machista. Agora, há quanto tempo você não faz nada parecido?
— O meu casamento não está em discussão agora... — a irmã emburrou.
— Quer dizer que você está largando a sua mulher só porque ela não leva café na cama pra você? — a mãe tentou entrar na conversa de novo.
— É. Por essas e por outras. Ela não tira mais cravo das minhas costas também.
— Cravos?
— É, cravos. No começo de casados, eu chegava em casa e me deitava no sofá da sala. E ela vinha se chegando, se chegando, e de repente, sem eu nem perceber como, ela já tinha tirado a minha camisa e começado a espremer uns cravos. A gente passava horas ali, daquele jeito. Agora eu nem me lembro mais da última vez que fiquei sem camisa perto dela.
A irmã e a mãe resolveram desistir. A coisa era mais séria do que elas imaginaram.
Uma semana depois, o pai e o cunhado marcaram uma reunião com ele também. Sentaram no barzinho e pediram três chopps. O primeiro a falar foi o candidato a divorciado.
— E aí, como vão indo as coisas?
— Lá em casa, está saindo tudo às mil maravilhas. Precisa ver só. Na semana passada, sua irmã me levou café da manhã dois dias seguidos na cama. Com frutas e geleias.
— E sua mãe, então? Toda noite agora, ela faz uma comidinha especial. Ontem à noite, até acendeu umas velas nos castiçais! A única coisa esquisita é que não para de perguntar se eu não quero que ela me tire uns cravos das costas. Você falou alguma coisa além do combinado, não falou?
 
Artur de Carvalho

22 de outubro de 2016

Banana


Minha mulher e eu, na sala. Assistindo TV. Aguardávamos a chegada da filha, que tinha ido para uma festa. Eu estava comendo uma daquelas bananinhas. Daquelas, que vem embrulhadas numa espécie de celofane, sabe? Antigamente chamavam de "mariola". Ando tendo umas cãibras à noite. Na batata da perna. Estou lá, no maior sono do mundo, sonhando com a Meg Ryan e, de repente, é como se o mundo virasse de ponta cabeça. Não é possível que exista dor maior no mundo. Parece que alguma coisa está querendo sair de dentro da perna, a gente acorda assustado, não sabe direito o que está acontecendo. Estávamos nos braços da Meg Ryan e de repente estamos ali, no quarto, nos contorcendo de dor. Aliás, a personagem vivida pela Meg Ryan no filme "A Cidade dos Anjos" disse que o homem suporta a dor oito vezes menos que a mulher. Deve ser por causa do parto, essas coisas. Mas não é possível que o parto doa mais que uma boa cãibra. Não é possível.
Bem, eu sei que me falaram para comer bananas. Que as cãibras cessariam. Tem ferro, fosfato, sei lá o que. O problema é que eu nunca fui muito chegado em bananas. Não é exatamente o gosto da banana. É a banana como um todo.
Tudo bem enquanto elas estão lá, no cacho. Bonitas, vistosas. Amarelas, quase douradas. Vem até água na boca. Aí a gente escolhe uma. A que nos chama mais atenção. Quase sempre a maior, em diâmetro e comprimento. A separamos do restante do cacho e os problemas começam. Se o pecado está dentro de nossas cabeças, como li não sei onde, então estou condenado aos infernos. Por que não consigo olhar para uma banana e não fazer uma certa comparação. Não consigo. Seguro a banana e fico observando de longe. As vezes até olho em volta, para ver se não tem ninguém espiando. E a banana ali, olhando para mim. Está certo. Bananas não olham. Mas ela fica ali, com aquele seu jeito meio... ela fica ali, encurvada. Me olhando. E eu olhando para ela.
Respiro fundo e tomo coragem. Aproximo a banana de minha boca. Entende que não é uma aproximação normal? Ela ali, cada vez mais próxima, chegando. Com aquele jeitão. Aí temos que descascar a banana. Quando eu era adolescente, descascar era gíria para uma coisa, não sei se ainda é. E eu ali, quase quarenta anos, uma filha que frequenta festas noturnas, e prestes a descascar uma banana. E para descascar, normalmente, a gente vira a banana em nossa direção. Ela é encurvada. Então ela fica ali, descrevendo uma pequena curva. Em direção à nossa boca. Se oferecendo. Normalmente, nessa hora, eu olho em volta novamente. Para me certificar que não tem ninguém observando. Se há alguém, desisto. Bananas não devem ser comidas em público. Se estou sozinho, arrisco.
Seguro na ponta da banana. Na ponta. Uma pequena pressão com o dedo e separo um pedaço da casca. Puxo para baixo, deixando a polpa à mostra. Mais um pedaço da casca e, de repente, ela está ali, desnuda. Subitamente a banana assume uma dupla coloração. A cor da casca quase até a ponta e outra, a da polpa. A casca formando uma espécie de flor em torno daquela ponta. Uma segunda pele.
A sensação de estar sendo observado é inevitável. Quase escondo a banana atrás de mim, mas isso soaria ainda pior. Ela fica ali, na minha mão. E eu já não sei se a seguro assim, com a ponta dos dedos, ou agarro com toda a mão, como se segura em torno de uma garrafa de coca-cola.
E a trago até a boca. As vezes mordo com os olhos abertos, mas a maioria das vezes fecho os olhos. Porque a cena é terrivelmente constrangedora. O entreabrir de minha boca, a aproximação da banana, o fechar dos dentes em torno da ponta descascada. De repente me vem à cabeça que alguém entrou no recinto. E eu ali de olhos fechados. Com a banana na boca. Nunca iriam entender que é porque eu não queria ver a coisa toda. Abro os olhos e afasto rapidamente a banana. Mas não há ninguém. Olho novamente para a banana. Ela está sem a ponta. Sem a ponta. Eu estou mastigando a ponta dela. Aquela massa adocicada na minha boca vai ficando cada vez mais grossa. Por que a banana não é como a maçã ou a pêra, que são quase crocantes. A banana é macia, mole, carnuda. Carnuda?
Bem, mas isso faz parte do passado. Descobri as bananinhas. Muito melhores, industrializadas. Você desembrulha e joga na boca. Mastiga e pronto. Adeus cãibras noturnas. Eu estava ali, comendo minha bananinha e pensando nessas coisas. Minha filha chegou da tal festa. Da porta, fez tchauzinho para alguém que estava na calçada. Entrou e me viu.
— Boa noite, pai. O que é que você já tá mastigando?
— Bananinhas. Quer uma?
— Obrigado, pai. Mas eu prefiro a fruta mesmo.
Ela caminhou até a cozinha. Ia comer uma banana.
E eu não podia fazer absolutamente nada.
 
Artur de Carvalho
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...