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28 de outubro de 2016

Ser como a lua


Havia uma floresta espessa num dos lados da aldeia onde minha avó morava e fazendas de café no outro. Um rio corria da floresta até os limites da cidade, passando pela área onde se concentravam as palmeiras e chegando a um pântano. Acima do pântano, plantações de banana se espalhavam pelo horizonte. A principal estrada de terra que passava por Karbati era trilhada por buracos e atoleiros onde os patos gostavam de tomar banho durante o dia, e nos quintais das casas os pássaros descansavam em mangueiras.
De manhã, o sol subia detrás da floresta. Primeiro, seus raios surgiam por entre folhas de árvores e, gradualmente, com o canto dos galos e pardais que vigorosamente anunciavam a luz do dia, o sol dourado acomodava-se acima da floresta. Ao anoitecer, macacos podiam ser vistos pulando de árvore em árvore na floresta, retornando aos locais onde dormiam. Nas fazendas de café, galinhas estavam sempre ocupadas escondendo suas crias de falcões. Atrás das fazendas, palmeiras sacudiam sua folhagem ao vento. Às vezes avistava-se, no fim da tarde, alguém que escalava uma palmeira para colher sua seiva, que seria depois transformada em licor.
O entardecer terminava com o som de galhos se quebrando na floresta e de arroz sendo triturado por pilões. O eco ressoava na aldeia, fazendo com que os pássaros voassem para lá e para cá chilreando. Grilos, rãs, sapos e corujas faziam coro, todos chamando pela noite enquanto deixavam seus esconderijos. As cozinhas das casas de sapê soltavam fumaça, e as pessoas chegavam das fazendas carregando lampiões e às vezes tocos de madeira acesa.
"Devemos nos esforçar para ser como a lua." Um ancião em Karbati sempre repetia essa frase para as pessoas que passavam por sua casa para buscar água, caçar ou colher seiva nas palmeiras, e também aos que caminhavam de volta a suas fazendas. Eu me lembro de ter perguntado a minha avó o que o ancião queria dizer com aquilo. Ela explicou que o ditado servia para lembrar as pessoas de se comportarem sempre da melhor forma possível e serem boas umas com as outras. Ela disse que as pessoas sempre reclamam quando o sol as castiga demais e está intoleravelmente quente, e também quando chove demais ou está frio. Mas, ela falou, ninguém se queixa quando a lua brilha. Todos ficam felizes e apreciam a lua, cada um a seu modo. As crianças brincam com suas sombras sob a luz da lua, as pessoas se juntam para contar histórias e dançar noite adentro. Muitas coisas boas acontecem quando a lua brilha. Essas são algumas das razões pelas quais devemos desejar ser como a lua.
- Você está com cara de fome. Vou te preparar uma mandioca - disse ela terminando a conversa.
Depois que minha avó me contou por que devíamos nos esforçar para sermos como a lua, passei a observá-la. Toda noite em que a lua aparecia no céu eu me deitava no chão e ficava quieto, olhando para ela. Queria descobrir por que era tão atraente e adorada. Fiquei fascinado com os diferentes desenhos que distinguia dentro da lua. Certas noites eu conseguia ver a cabeça de um homem. Ele tinha uma barba de tamanho mediano e usava um chapéu de marinheiro. Noutras ocasiões eu via um homem com um machado cortando madeira, e às vezes uma mulher ninando um bebê no peito. Sempre que tenho uma chance de observar a lua agora, ainda vejo as mesmas imagens que enxergava quando tinha seis anos, e me agrada saber que aquela parte da minha infância ainda está guardada em mim.
 
Ishmael Beah

26 de outubro de 2016

No continente mais próximo de você


A família de Saidu não conseguiu sair da aldeia durante o ataque. Junto com os pais e três irmãs, que tinham dezenove, dezessete e quinze anos, ele se escondeu debaixo da cama durante a noite. Pela manhã os rebeldes invadiram a casa e encontraram seus pais e as três irmãs. Saidu tinha ido ao sótão pegar o que havia de arroz para a família levar na fuga, quando os rebeldes entraram. Ele ficou no sótão, sentado, segurando a respiração e escutando os gritos das irmãs, enquanto eram estupradas pelos rebeldes. O pai gritava para que parassem, e um dos rebeldes o atingiu com a coronha da arma. A mãe de Saidu chorava e pedia perdão às filhas por tê-las colocado no mundo para serem vítimas daquela loucura. Depois de estuprar as meninas várias vezes, eles juntaram os bens da família e fizeram o pai e a mãe carregar tudo. Levaram as meninas com eles.
- Até hoje eu carrego a dor que meus pais e minhas irmãs sentiram. Eu desci do sótão quando os rebeldes partiram, não consegui suportar e as lágrimas ficaram congeladas nos meus olhos. Senti como se minhas veias estivessem sendo arrancadas do corpo. Ainda me sinto assim o tempo todo, e não consigo parar de pensar naquele dia. O que foi que minhas irmãs fizeram para merecer aquilo? - Saidu disse depois de nos contar a história certa noite, numa aldeia abandonada. Até meus dentes doeram enquanto eu ouvia a história. Foi quando entendi porque ele era sempre tão calado.
 
Ishmael Beah

25 de outubro de 2016

Massacre


Quando descia o morro, ouvi tiros. E cães latindo. E pessoas gritando e chorando. Largamos as bananas e começamos a correr para evitar o morro aberto. Uma fumaça cerrada começou a subir da aldeia. Sobre ela, fagulhas de chamas saltavam no ar.
Ficamos escondidos atrás de arbustos e escutamos os tiros e gritos de homens, mulheres e crianças. As crianças choravam, os homens davam berros agudos que penetravam a floresta e encobriam os gritos das mulheres. Os tiros finalmente pararam, e o mundo ficou muito quieto, como se estivesse escutando. Eu disse a Gasemu que queria ir até a aldeia. Ele me segurou, mas eu o empurrei para os arbustos e corri caminho abaixo o mais rápido que pude. Não sentia minhas pernas. Quando cheguei à aldeia, ela estava completamente em chamas e havia cápsulas de balas cobrindo todo o chão como folhas de mangueira pela manhã. Não sabia por onde começar a procurar minha família. Gasemu e meus amigos tinham me seguido, e começamos todos a vasculhar pela aldeia incendiada.
Eu suava por causa do calor, mas não estava com medo de correr entre as casas. Pregos pulavam dos telhados de zinco e voavam, aterrisando sobre telhados de palha próximos, aumentando o poder do fogo. Enquanto assistíamos a um telhado de zinco voar pelos ares, em chamas, ouvimos gritos e pancadas a poucas casas dali. Corremos por trás das casas vizinhas ao cafezal e chegamos àquela de onde vinha a gritaria. Tinha gente trancada do lado de dentro. O fogo já havia tomado a casa quase inteira. Era possível ver as chamas pelas janelas e pelo teto. Pegamos um pilão e batemos na porta até abri-la, mas já era tarde. Somente duas pessoas saíram, uma mulher e uma criança pequena. Eles estavam pegando fogo, e correram para cima e para baixo pela aldeia, se debatendo contra tudo que encontravam pelo caminho e voltando pela mesma direção, fazendo o mesmo. A mulher caiu e parou de se mover. A criança deu um grito agudo e alto, e sentou ao lado de uma árvore. Ela também parou de se mover. Tudo aconteceu tão rápido que ficamos ali paralisados, grudados no chão. O guincho da criança ainda ecoava na minha cabeça, como se tivesse criado vida própria dentro de mim.
Gasemu tinha saído de perto de onde eu estava. Ele começara a gritar do outro lado da aldeia. Corremos para lá. Mais de vinte pessoas estavam deitadas com o rosto virado para o chão. Elas estavam enfileiradas, e ainda havia sangue jorrando dos buracos das balas em sua carne. Um rio de sangue corria pelo chão, cada afluente saindo debaixo de um corpo, como se assim juntasse aquelas pessoas. Os soluços de Gasemu aumentaram enquanto ele virava corpo por corpo para cima. Alguns tinham a boca e os olhos abertos em expressões que mostravam o quanto tinham se retorcido na expectativa das balas que viriam por trás. Outros tinham respirado terra, talvez em seu último suspiro.
 
Ishmael Beah

24 de outubro de 2016

Seu Aranha


- Seu Aranha vivia numa aldeia cercada por muitas outras aldeias. No fim da estação de colheita, todas as aldeias faziam um banquete para celebrar o sucesso de suas colheitas. Tinha vinho e comida em abundância e as pessoas comiam até que pudessem ver seu próprio reflexo no estômago do outro.
- Como é que é? - protestamos todos, chocados com o detalhe extraordinário que ele adicionara à história.
- Quem está contando a história sou eu, então posso contar a minha versão. Esperem a vez de vocês. - Musa ficou de pé.
Ficamos atentos para ver se ele ia enfeitar a história com mais detalhes surpreendentes. Ele então se sentou outra vez e continuou:
- Cada aldeia era especializada em um prato. A aldeia de Seu Aranha fazia sopa de quiabo com óleo de palmeira e peixe. Hmm... hmm... hmm... As outras aldeias faziam folheados de mandioca com carne, batatas e por aí em diante. Cada aldeia contava vantagem sobre o quanto seu prato ficaria delicioso. Todas as aldeias estendiam o convite para suas festas às demais. Mas Seu Aranha levou isso extremamente a sério. Ele queria estar presente a todas as festas de todas as aldeias. Ele tinha que bolar um plano. Começou a catar cordas por toda a sua aldeia e a trançá-las meses antes das festas. Enquanto as pessoas carregavam cestas cheias de arroz e feixes de madeira para a praça, e as mulheres passavam o arroz nos pilões, debulhando os grãos, Seu Aranha esticava as cordas em sua varanda e media o tamanho delas. Enquanto os homens saíam para caçar, ele estava ocupado estendendo as cordas pelas trilhas que ligavam sua aldeia a todas as outras aldeias vizinhas. Ele deu a ponta de cada corda para o chefe de cada aldeia, que amarraram as pontas às árvores mais próximas das praças locais. "Diga ao seu povo que puxe a corda quando a comida estiver pronta", pediu a cada chefe, com sua voz anasalada. Seu Aranha passou fome durante uma semana para se preparar. Quando finalmente chegou o dia da festa, Seu Aranha levantou antes de todo mundo. Sentou na sua varanda e amarrou com o maior cuidado todas as cordas a sua cintura. Ele chegava a tremer e a saliva escorria de sua boca quando o cheiro de carne defumada, peixe frito e vários cozidos saía das cozinhas das cabanas.
Infelizmente, todas as festas começaram na mesma hora e os chefes mandaram que as cordas fossem puxadas ao mesmo tempo. Seu Aranha ficou suspenso no ar, puxado em todas as direções. Ele gritou por socorro, mas os tambores e a música de cada praça em cada aldeia abafou sua voz. Ele via toda a gente reunida em volta dos pratos e lambendo os dedos depois das refeições. As crianças correndo pelas aldeias a caminho do rio, mastigando pedaços de galinha cozida, carne de cabrito e veado. Toda vez que tentava se soltar das cordas, as pessoas nas aldeias puxavam Seu Aranha com mais força, pois pensavam que aquilo era um sinal de que ele estava pronto para visitar suas festas. No final da comemoração na aldeia do Seu Aranha, um menino o viu lá no alto e chamou os mais velhos. Eles cortaram as cordas e trouxeram Seu Aranha para o chão. Numa voz quase inaudível ele pediu um pouco de comida, mas não havia sobrado nada da festa. Os banquetes já estavam encerrados em toda parte. Seu Aranha continuou com fome e, tendo ficado tanto tempo puxado com força, isso explica por que as aranhas têm uma cintura tão fina.
 
Ishmael Beah

16 de setembro de 2016

O caçador e o macaco


Era noite e estávamos sentados ao redor do fogo com os braços esticados na direção das chamas, ouvindo histórias e olhando a lua e as estrelas se recolhendo. O carvão incandescente da fogueira iluminava nossos rostos na escuridão e fiapos de fumaça subiam continuamente ao céu. Pa Sesay, um dos amigos do meu avô, contou muitas histórias para nós naquela noite, mas, antes que ele iniciasse a última história, disse repetidamente:
- Esta é uma história muito importante. - Ele, então, limpou a garganta e começou: - Havia um caçador que entrou nos arbustos para matar um macaco. Ele havia procurado por apenas alguns minutos quando viu o macaco sentado confortavelmente num galho de uma árvore baixa. O macaco não lhe deu a menor atenção, nem mesmo quando os passos do homem sobre as folhas secas subiam e desciam, se aproximando. Quando estava bem perto do macaco, atrás de uma árvore de onde ele conseguia ver o bicho claramente, ele levantou o rifle e apontou. Justo quando estava para apertar o gatilho, o macaco falou: "Se você atirar em mim, sua mãe vai morrer, e, se você não atirar, seu pai vai morrer." O macaco voltou ao que estava fazendo antes, mastigando comida e de vez em quando coçando sua cabeça ou um lado da barriga. O que vocês iam fazer se vocês fossem o caçador?
Essa história era contada uma vez por ano aos jovens da minha aldeia. O contador de histórias, geralmente um ancião, colocava essa questão irrespondível ao final da história, na presença dos pais das crianças. Toda criança presente na reunião tinha que responder a pergunta, mas nenhuma criança jamais a respondia, pois tanto suas mães quanto seus pais estavam presentes. Nem o contador de histórias oferecia uma resposta. Durante cada reunião dessas, quando chegava minha vez de responder, eu sempre dizia ao contador de histórias que eu teria que pensar direito sobre aquilo, o que, é claro, não era lá uma resposta muito satisfatória.
Depois desses eventos, meus colegas e eu - todas as crianças entre as idades de seis e doze anos - sugeríamos diversas respostas possíveis que pudessem evitar a morte de um dos nossos pais. Não havia resposta correta. Se você poupasse o macaco, alguém ia morrer, e se você não o poupasse, alguém ia morrer do mesmo jeito.
Naquela noite chegamos a uma resposta, mas ela foi imediatamente rejeitada. Dissemos ao Pa Sesay que, se um de nós fosse o caçador, não teríamos saído para caçar macacos. Falamos para ele:
- Há outros animais, como os veados, para caçar.
- Essa não é uma resposta aceitável - ele disse. Estamos supondo que você, como caçador, já levantou sua arma e tem que tomar uma decisão. - Ele quebrou sua noz de kola ao meio e sorriu antes de colocar um pedaço na boca.
Quando eu tinha sete anos, cheguei a uma resposta para aquela pergunta que fez sentido para mim. Porém, nunca a discuti com ninguém, por medo de como minha mãe se sentiria. Concluí que, se eu fosse o caçador, atiraria no macaco, para que ele nunca mais tivesse a oportunidade de colocar outros caçadores na mesma cilada.

Ishmael Beah
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