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19 de julho de 2017

Noite em Salvador



Terminamos nossa perambulação pela cidade, indo de noite à ópera. O teatro é colocado na parte mais alta da cidade e o patamar diante dele domina o mais belo panorama imaginável. É um belo edifício e muito confortável, tanto para os espectadores como para os atores. Interiormente é muito grande e bem traçado, mas sujo, e precisando muito ser pintado de novo. Os atores são muito maus como tais; um pouco melhor como cantores, mas a orquestra é muito tolerável. A peça era uma tragédia muito mal representada, baseada no Maomé de Voltaire. Durante a representação os cavalheiros e damas portugueses pareciam decididos a esquecer o palco, e a rir, comer doces e tomar café, como se estivessem em casa. Quando os músicos, porém, começaram a tocar a ouverture do ballet, todas as vistas e vozes voltaram-se para o palco. Seguiu-se a exigência de tocar-se o hino nacional e só depois de tocá-lo e repeti-lo duas vezes permitiu-se que o ballet continuasse. Durante a algazarra provocada por isso, um capitão do exército foi preso e expulso da plateia, dizem uns que por ser batedor de carteiras, outros por estar empregando linguagem imoderada em assuntos políticos quando se estava a exigir o hino nacional.
Entrementes um dos nossos guardas-marinha teve sua espada roubada, com habilidade, do canto do camarote, ainda que não percebêssemos que houvesse entrado alguém. Chegamos à conclusão de que um cavalheiro fardado no camarote vizinho entendeu que ela lhe conviria e então afivelou-a ao voltar para casa.
A Polícia está aqui num estado de desbarato. O uso do punhal é tão frequente que os assassínios secretos geralmente atingem duas centenas por ano, compreendendo as duas cidades, a alta e a baixa. Para esse malefício contribuem grandemente a escuridão e a inclinação das ruas, que proporcionam uma quase certeza de fuga. O intitulado Intendente de Polícia é também juiz superior em matéria criminal. Não há lei, contudo, que estabeleça os limites de sua jurisdição, ou dos seus poderes, nem do Tenente-coronel de Polícia. Este convoca alguns soldados de qualquer guarnição sempre que tem de agir, e designa patrulhas militares também tiradas dos soldados em serviço. Acontece frequentemente que pessoas acusadas perante esse formidável funcionário são detidas e aprisionadas por anos, sem nunca serem levadas a julgamento; uma informação maliciosa, quer falsa quer verdadeira, sujeita a casa particular de um homem a ser aberta pelo coronel e seu bando. Se o dono escapa da prisão ainda é bom, posto que a casa raramente escape da pilhagem. Nos casos de conflitos e brigas na rua, o coronel geralmente ordena aos soldados que descarreguem as bengalas e surrem o povo à vontade. Sendo tal o estado da Polícia, é ainda mais admirável que os assassínios sejam tão poucos do que sejam tantos. Onde há pouca, ou nenhuma justiça pública, a vindita privada toma o seu lugar.

Maria Graham

Sertanejos em Recife



Hoje, ao virmos de Boa Vista, encontramos uma família de sertanejos, que havia trazido provisões para a cidade há alguns dias, e voltava para o sertão, ou região selvagem do interior. Os sertanejos constituem uma casta de homens rudes e ativos, na maior parte agricultores. Trazem milho e cereais, toucinho e doces, às vezes couro e sebo. Mas o açúcar, o algodão e o café, que formam os produtos principais de Pernambuco, exigem terras mais quentes, mais ricas, junto à costa. O algodão, contudo, é também trazido do sertão, mas é uma colheita precária, dependente inteiramente da quantidade de chuva na estação, e às vezes não chove no sertão durante dois anos. A família que encontramos formava um grupo muito pitoresco: os homens vestidos de couro dos pés à cabeça. A jaqueta leve e as calças são tão apertadas como as roupas dos mármores de Egina, e produzem mais ou menos o mesmo efeito; o pequeno chapéu redondo tem a forma do petaso de Mercúrio. Os sapatos e polainas da maior parte eram excelentemente adaptados para a defesa das pernas e dos pés no cavalgar por entre as asperezas. O tom geral do conjunto era um belo castanho queimado. Fiquei aborrecida porque a mulher do grupo vestia uma roupa evidentemente à moda francesa. Estragava a unidade do grupo. Ia montada por trás do homem principal, num dos pequenos e espertos cavalos da terra. Vários cavalos de carga seguiam atrás, carregados de objetos caseiros e outras coisas obtidas em troca de suas provisões; roupas, tanto de lã como de algodão, louças de barro e outros artigos manufaturados, especialmente facas, é o que eles geralmente trazem de volta; contudo vi algumas alfaias, com pretensões a elegância entre as mercadorias da família que encontrei. Depois dos cavalos veio um grupo de homens, alguns a pé, acompanhando o passo dos animais, outros a cavalo e carregando as crianças. A procissão terminava com um homem corpulento e de boa aparência, que passou a fumar, e que se distinguia por um par de calças verdes de baeta.  

Maria Graham

18 de julho de 2017

Cadeirinha de arruar


A rua pela qual entramos através do portão do arsenal ocupa aqui a largura de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o lugar mais sujo em que eu tenha estado. É extremamente estreita; apesar disso todos os artífices trazem os seus bancos e ferramentas para a rua. Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão vendedores de frutas, de salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e doces, negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras, (espécie de liteiras) com seus carregadores, cães, porcos e aves domésticas, sem separação nem distinção; e como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e alimentam-se os animais. Nessa rua estão os armazéns e os escritórios dos comerciantes, tanto estrangeiros quanto nativos. As construções são altas, mas não tão belas nem tão arejadas quanto as de Pernambuco. 
Chovia quando desembarcamos. Por isso, como as ruas que conduzem para fora da imunda cidade baixa não permitem o emprego de veículos de roda, em virtude da violência da subida, alugamos cadeiras e as achamos, se não agradáveis, ao menos cômodas. Consistem numa poltrona de vime, com um estribo e um dossel coberto de couro. Cortinas, geralmente de melania, com debruns dourados e forradas de algodão ou linho, estão dispostas em torno do dossel, ou abertas, como se queira. Tudo é suspenso pelo alto por um único varal, pelo qual dois negros a carregam a passo rápido sobre os ombros, mudando, de vez em quando, do direito para o esquerdo.

Maria Graham

2 de abril de 2017

Um dia em Recife


Como tudo parece resolvido entre os chefes monarquistas e patriotas, estamos-nos preparando para deixar Pernambuco, e não sem tristeza, porque fomos tratados amavelmente pelos portugueses e recebidos com hospitalidade pelos nossos compatriotas. Fomos à terra para obter coisas necessárias ou agradáveis para nossa viagem adiante. Entre as últimas comprei excelentes doces, que são feitos no interior e trazidos para o mercado em belos barriletes de madeira, cada um contendo seis ou oito libras. É espantoso ver a carga transportada de duzentas ou trezentas milhas de distância pelos cavalos pequenos e fracos, mas rápidos, que há na terra. Os cavalos de carga não são ferrados, tal como os de montaria: os últimos são em quase toda parte treinados num passo rápido, fácil, mas não muito agradável no primeiro momento para os que estão acostumados com os cavalos ingleses. Vi e provei hoje a carne seca, charque, da América do Sul Espanhola. Parece, quando pende em mantas nas portas das lojas, com feixes de couro grosso em tiras. Prepara-se cortando a carne em tiras largas, extraindo os ossos, salgando levemente, comprimindo e secando ao ar. Assim bem poderia servir de recheio dos selins dos bucaneiros, já que a tradição diz que eles arrumavam a carne sob as selas. Como quer que seja, a carne é gostosa. O modo comum de usá-la aqui é de parti-la em pedacinhos e cozê-la na sopa de mandioca, que é o principal alimento da gente pobre e dos escravos.
Após terminar minhas compras, fui procurar uma família portuguesa, e como se fosse a primeira casa portuguesa em que ia entrar, estava curiosa em verificar a diferença entre ela e as casas inglesas daqui. A construção e a distribuição das peças são as mesmas. O salão só diferia em ser mais bem mobiliado e com todos os artigos ingleses, até mesmo um belo piano Broadwood. Mas a sala de jantar era completamente estranha. O solo estava forrado com um tecido estampado e as paredes cheias de gravuras inglesas e pinturas chinesas, sem distinção de assunto ou tamanho. Numa ponta da sala havia uma mesa comprida, coberta com uma caixa de vidro, na qual havia uma peça religiosa de cera: um presépio completo, com os anjos, os três reis, musgo, flores artificiais, conchas e contas, tudo envolvido em gaze e tarlatana de seda, semeado de ouro e prata, e com Santo Antônio e São Cristóvão de guarda, à direita e à esquerda. O resto da mobília  consistia em cadeiras e mesas comuns e uma espécie de consolo ou aparador. Do teto pendiam nove gaiolas de pássaros, cada qual com seu ocupante. Os canários, as patativas, rivais dos primeiros na beleza do canto, e as belas viúvas, eram os favoritos. Em gaiolas maiores, num quarto de passagem, havia mais papagaios e periquitos do que eu poderia julgar agradável numa casa. Mas são bem educados e raramente gritam juntos. Não estávamos sentados por muito tempo na sala de jantar quando passaram em volta biscoitos, bolo, vinho e licores, os últimos em pequenos cálices. Ofereceram-nos em seguida um copo d'água e fomos instados a prová-la, dizendo-nos que era a melhor do Recife. Provém de uma fonte no jardim do convento de Jerusalém, a duas milhas da cidade e o único cano dessa fonte dirige-se ao jardim de um convento de freiras daqui. Soube pela senhora que as jarras porosas para refrescar a água que encontramos aqui são todas feitas na vizinhança da Bahia, e que não há indústria aqui, exceto de algodão grosso para vestimenta de escravos. O ar e as maneiras da família que visitamos, ainda que não fossem nem ingleses nem franceses, eram de perfeita educação, e os vestidos mais belos que da Europa civilizada, com a diferença que os homens usavam jaquetas de algodão em vez de casacos de casimira e estavam sem colarinho. Quando saem, porém, vestem-se como os ingleses.

Maria Graham  
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