Seu Valdomiro é um mulato de rosto vincado e cantos
grisalhos na carapinha. Em seu olhar de homem preso, as vezes brilha uma
luz que ilumina o rosto inteiro. Os setenta anos e as histórias de cadeia
ao lado de bandidos lendários como Meneghetti, Quinzinho, Sete Dedos, Luz
Vermelha e Promessinha fizeram de seu Valdo um homem de respeito no
presídio.
Na caminhada, cumpriu pena em diversas unidades. Numa
delas, após quatro meses de solitária na escuridão total, quebrada só
quando abriam o guichê da cela para passar o prato de comida, que ele precisava
engolir depressa para se antecipar ao assanhamento das baratas, seu Valdo
simulou ter perdido o juízo. Para convencer os carcereiros da insanidade,
rasgou uma nota de cinco e comeu os próprios excrementos:
– Tive que fazer essa sujeira para sair daquele
lugar. Na solitária daquele tempo, a gente aprendia o limite de um ser
humano.
Seu Valdo nasceu numa ladeira de terra do Pari, perto do
largo Santo Antônio, neto de uma avó racista que discriminava a mãe dele, de pele
negra:
– Meu pai, por ser assim de mente fraca nas influências, se
largou e eu fiquei ao léo dará, com a mãe e duas irmãs pequenas.
Naquelas circunstâncias, a mãe juntou os três filhos e
voltou para a casa da mãe dela na alameda Glete. A acolhida foi calorosa:
- A minha avó materna, que justamente tinha um
puteiro, recebeu nós de braços abertos.
A casa dessa avó, na zona do baixo meretrício de
São Paulo, era um predinho de três andares, no qual trabalhavam doze
mulheres. No fundo ficava a casa deles, normal.
– Com o dinheiro que a vovó ganhou administrando o
puteirinho, compramos um parque de diversões e, nisso, começamos a correr
trecho.
Seu Valdo era grandão, já tinha dezesseis anos, tomava
conta do estande de tiro ao alvo e vivia amigado com a Betina,
ex-funcionária do predinho da alameda Glete.
Um dia, por traição do destino, o parque pegou fogo e a
família voltou para uma pequena chácara da avó previdente, perto
da represa de Guarapiranga, na periferia de São Paulo.
Seu Valdo foi trabalhar como desentupidor de fossa,
levantou uma casinha e levou vida de trabalhador até que os acontecimentos
mudaram o rumo das coisas. A mulher foi a causa de tudo, segundo ele:
– Devido que era muito ciumenta, até dos meus
cachorros. Eu adoro cachorro e nem podia tratar deles direito que ela
enfezava, dizia que eu punha mais atenção nos bichos do que propriamente
na figura dela. Veja que absurdo, doutor, um ser humano rivalizado com um
animal.
O gênio da esposa era um suplício. Ciúmes de
outras mulheres, então:
-Virgem, Deus o livre!
Se ele cumprimentava uma vizinha, ela xingava de mulher da
vida em diante, e cada vez que ele se atrasava, eram quatro horas de
falatório, no mínimo. O gênio da esposa criava problema com maridos e
irmãos das moças ofendidas. Ele só fazia apaziguar; tarefa inglória:
– Não tem jeito, doutor, mulher quando engata no ciúme
é o Cão vestido de saia. De noite, o senhor quer dormir para
trabalhar cedo e a peste não pára. O senhor bebe uma cachaça
depois do serviço, chega em casa disfarçando na hortelã, ela fareja o
bafo e pronto! já acha que estava com outra, que homem tudo não vale nada.
E vai o filho de Deus provar que não!
Um dia, mudou-se para a vizinhança uma mulata
assim descrita por ele:
– Maravilhosa, doutor, duas pernas torneadas por Deus
e um rebolado de parar a feira.
Na rua, quando a mulata vinha de lá, seu Valdo,
discretíssimo, abaixava a cabeça. O comedimento tinha justificativa:
– Para não atiçar a jaguatirica em casa.
E também, admite, para não despertar a ira do marido,
afamado como baiano ciumento, criador de vários casos por causa da mulata.
Um domingo de sol, seu Valdo no portão de casa estreava os
primeiros óculos escuros de sua vida, quando passou a morena requebrante.
Distraído, ele nem percebeu que, atrás dele, Betina chegou na janela para
bater o pano de pó:
– Para quê, doutor! A onça invocou que eu estava de olho
comprido na mulher do baiano. Deu a volta sorrateira, meiga como quem vai
me fazer um carinho, e foi básica: zap! Agarrou no meu membro. Veja só o
desrespeito!
Num instante, Betina avaliou a dureza em questão e
concluiu que seu Valdo era um ordinário sem-vergonha e não valia o
feijão que ela enchia na marmita dele.
A gritaria atraiu os vizinhos. Seu Valdo
não sabia onde esconder a cara. Por fim, convencido da impossibilidade de
acalmar a esposa, mandou-se para o botequim, morto de vergonha dos conhecidos.
– A estrupício ainda veio atrás até a esquina
falando um monte, tudo na voz esganiçada.
No bar ele encontrou o Joca, que lhe pagou um rabo-de-galo
para acalmar e o convidou para uma partida de sinuca. Experiente no taco e
com as mulheres, Joca aconselhava o companheiro quando chegou o baiano.
Não tinha achado bonito o papel de seu Valdo:
– O que você aprontou com a Cida?
– Nunca nem olhei para a sua esposa, cidadão. Até
peço desculpas à sua pessoa, mas o acontecido não é motivo para
ofensa. Minha mulher é ciumenta possessa e sempre dá vexame. A vila
inteira reconhece o feitio dela.
– Tua própria senhora disse na frente de todo
mundo que você não tira os olhos da Cida quando passa. Vou te ensinar a
respeitar a mulher do próximo, seu preto vagabundo!
O baiano puxou a peixeira. Joca, amigo de verdade, não
gostou da ofensa e puxou o revólver:
– Ele é preto sim. E por acaso você é muito
branco? Agora: vagabundo não, que ele tem carteira assinada. Se der um
passo à frente, quem morre é você, baiano!
O baiano vinha cego de ciúmes ou era valente de
fato. Mesmo baleado ainda tentou esfaquear seu Valdo. Só não conseguiu
porque este lhe deu uma pancada na fronte, com a parte grossa do taco de
bilhar.
O baiano morreu no hospital. Joca, que andava
procuradíssimo pela polícia, fugiu para o Nordeste. E seu Valdo:
– Trouxa, dois dias depois se apresentei na delegacia,
pobre, sem advogado, alegando legítima defesa.
Dia de visita, um mês mais tarde na Casa de
Detenção, anunciaram o nome de seu Valdo para receber uma pessoa na
entrada do pavilhão. Morto de ódio, diz ele, no caminho até a porta
decidiu esganar a Betina, aquela mulher possessiva responsável pela
desgraça que o atingira.
No portão, entretanto, não era Betina quem o aguardava:
– Era a morena, a pivô da tragédia, de vestido vermelho, olhos trêmulos e lábios rútilos. Me abriu um sorriso tão alvo, doutor, que encantou meu coração. E nesse dia abençoado começou o nosso amor, que pela vontade de Deus resiste até hoje.
Drauzio Varella
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