7 de outubro de 2020

Sem sonhos

 

Oh Musas, por que sacudistes meu corpo inerte?

Deixem-me dormir! Por que quereis despertar quem, 

Cansado e vencido, busca no sono a paga da desesperança,

Nas sombras o abrigo, e no esquecimento a dissolução do ser?


Oh Musas, quero-vos muito mal, e, se estiver em meu poder,

E julgar que for de bom alvitre, esquentarei suas belas bundas,

De ambos os jeitos, pare que não voltem a me perturbar, e então

Voltarei ao escuro que me acolhia, sem recordar patavina.

 

Oh Musas, eu vos odeio do fundo do meu ser! Não podem para de falar?

Não fôsseis filhas de Zeus! O quê? Meu eu lírico? O que é que tem o meu eu lírico?

Sumido? Cansado? Vocês estão com saudade dos meus versos? Ah! Por favor,

Não me façam rir, porque isso espantaria o resto de torpor que ainda me sustém.


Oh Musas, suas danadas de traseiros lindos e empinados

(Andaram tendo aulas com Afrodite não é? Suas safadinhas...)

O que quereis de mim, além de excitar-me com suas belas vozes,

Peles macias, pés bem feitos, gemidos virginais e olhos sagazes e fugidios?

 

Oh Musas, isso não!, isso não farei! Isso seria minha morte (de novo).

Por favor, não me adulem com elogios e belos epítetos. A mudez se instalou.

Aquela epifania não quero mais. Parti minha flauta, quebrei minha harpa.

Nem pássaro canta mais por aqui, nem jovem pastor passa cantarolando

 

Oh Musas, Vossa tagarelice está a me deixar de mau humor, o que

Me recorda que foi sob os cuidados do vermelho Ares que me recolhi

Sedento de sangue, de vingança e, finalmente, abatido pela fadiga...

Não, a guerra não vale a pena, mas os encantos de Afrodite valem mais?

 

Oh Musas! Tudo ilusões! Como confundir o fogo com o sol,

A luz com a chama, a vontade com a certeza, e a certeza com a razão...

Os deuses, imersos no tédio inescapável de Sua imortalidade,

Divertem-se, pondo-se a observar as humanas provações.

 

Oh Musas! Atentem-se quanto a isso! Os deuses tudo podem,

Tudo sabem, tudo decidem. Mas são deuses, desde o início dos tempos,

Estão gastos. De tanto pensarem, já de nada sabem, de tanto sentirem,

Tornarem-se insensíveis, e tudo decidem como velhos bêbados!

 

Oh Musas! Aproximai-vos, que lhes contarei o grande segredo:

Os deuses invejam os mortais. Porque são mortais, não condenados ao tédio.

Quando um mortal pensa sabe que não tem o resto da vida para se desenganar,

Quando um mortal sente, sente como se fosse a primeira vez, e torna-se novo a si mesmo.


Oh Musas! Quando um mortal decide, ele é tão animal e displicente...

Mas quando um mortal ama... Ah!... Quando um mortal ama...

Quando um mortal ama ele vai para além do infinito, onde deus algum

Pode alcançar, experimentar-se, compreender ou sofrer...


Oh Musas! Minhas queridas de belos trejeitos sedutores!

Entendam que eu já fui tudo e não fui nada e fui além de tudo

Comi a terra, respirei o céu, me liquefiz, e a tudo incendiei

Tornei-me deus, nada mais é novidade para mim.


Oh Musas, percebeis que há tempos não sou mais mortal

Que não estava deveras dormindo, nem vos querendo mal

Que aqui vieram a serviço do meu próprio ardil, só para eu pudesse

Vos dizer, sem sonhos, que não lhes quero nunca mais.

 

André Faustino

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