Tenho o desejo e sinto necessidade, para viver, de uma outra sociedade diferente dessa que me rodeia. Como a grande maioria dos homens, posso viver nesta aqui e acomodar-me - de qualquer forma, vivo nela. Por mais criticamente que tente olhar-me, nem minha capacidade de adaptação, nem minha assimilação da realidade me parecem inferiores ao meio sociológico. Não peço a imortalidade, a ubiquidade, a onisciência. Não peço que a sociedade "me dê a felicidade"; sei que isso não é uma ração que poderia ser distribuída pela municipalidade ou pelo Conselho operário do bairro, e que, se esta coisa existe, somente eu posso construi-la para mim, nas minhas medidas, como já me aconteceu e como ainda acontecerá, sem dúvida. Mas na vida, como ela é feita para mim e para os outros, entrechoco-me com uma quantidade de coisas, inadmissíveis, digo que elas não são fatais e que decorrem da organização da sociedade. Desejo e peço que antes de tudo meu trabalho tenha um sentido, que eu possa aprovar aquilo a que lhe serve e a maneira como é feito e que me permita entregar-me a ele verdadeiramente e usar minhas faculdades, bem como enriquecer-me e desenvolver-me. E digo que isso é possível, com uma outra organização da sociedade, para mim e para todos. Digo que já seria uma mudança fundamental nesse sentido, se me deixassem decidir, com todos os outros, o que tenho a fazer, e, com meus companheiros de trabalho, como fazê-lo.
Desejo poder, com todos os outros, saber o que se passa na sociedade, controlar a extensão e a qualidade da informação que me é dada. Peço para poder participar diretamente de todas as decisões sociais que possam afetar minha existência ou o curso geral do mundo em que vivo. Não aceito que meu destino seja decidido, dia após dia, por pessoas cujos projetos me são hostis ou simplesmente desconhecidos e para quem não passamos eu e todos os outros, de números num plano ou peões sobre um tabuleiro de xadrez e que em última análise minha vida e morte estejam nas mãos de pessoas que sei serem necessariamente cegas.
Sei perfeitamente que a realização de uma outra organização social, e sua vida, não serão absolutamente simples, que elas encontrarão a cada passo problemas difíceis. Mas prefiro antes lidar com problemas reais do que com as consequências do delírio de de Gaulle, as astúcias de Johnson ou as intrigas de Kruchev. Se acaso devemos, eu e os outros, encontrar o fracasso nesse caminho, prefiro o fracasso numa tentativa que tem sentido a um estado que permanece aquém do fracasso e do não fracasso, que permanece irrisório.
Desejo poder encontrar o outro como um ser igual a mim e absolutamente diferente, não como um número, nem como um sapo empoleirado sobre outro degrau (inferior ou superior, pouco importa) da hierarquia dos rendimentos e dos poderes. Desejo poder vê-lo e que ele possa ver-me como um outro ser humano, que nossas relações não sejam um campo de expressão da agressividade, que nossa competição permaneça dentro dos limites do jogo, que nossos conflitos, na medida em que não possam ser resolvidos ou superados, digam respeito a problemas e lances reais, envolvam o mínimo possível de inconsciente, o mínimo possível de imaginário. Desejo que o outro seja livre, porquanto minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro, e, sozinho, posso no máximo ser "virtuoso na infelicidade". Não espero que os homens se transformem em anjos, nem que suas almas tornem-se puras como lagos da montanha - que aliás sempre me entediaram profundamente. Sei, porém, o quanto a cultura atual agrava e exaspera a sua dificuldade de ser e de ser com os outros e vejo que ela multiplica ao infinito os obstáculos à sua liberdade.
Sei, certamente, que esse desejo não pode ser realizado atualmente; nem também a revolução se ocorresse amanhã, poderia realizar-se integralmente durante a minha vida. Sei que haverá homens um dia para os quais não existirá nem mesmo a lembrança dos problemas que possam mais nos angustiar hoje. É esse meu destino, o qual devo assumir e assumo. Mas isso não pode reduzir-me nem ao desespero, nem à ruminação catatônica. Tendo esse desejo que é meu, só posso trabalhar para sua realização. E já na escolha que faço do principal interesse de minha vida, no trabalho a que me consagro, cheio de sentido para mim (mesmo se nele encontro, e aceito, o fracasso parcial, os prazos, os desvios, as tarefas em si mesmas sem sentido), no participar de uma comunidade de revolucionários que tenta ultrapassar as relações reificadas e alienadas da sociedade atual - estou em condições de realizar parcialmente esse desejo. Se eu tivesse nascido numa sociedade comunista, a felicidade ter-me-ia sido mais fácil - nada sei e nada posso quanto a isso. Não vou, sob esse pretexto, passar meu tempo livre vendo televisão ou lendo romances policiais.
Cornelius Castoriadis
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