5 de setembro de 2023

Quando eu tinha a tua idade


Entre as muitas frases que os pais dirigem aos filhos, existe uma que é particularmente perigosa. É aquela que começa com o “Quando eu tinha a tua idade”. A continuação frequentemente representa uma velada ou aberta censura. Quando eu tinha a tua idade acordava antes das seis. Quando eu tinha tua idade ajudava minha mãe a arrumar a casa. Quando eu tinha tua idade já estava fazendo vestibular. Quando eu tinha tua idade já estava empregado, ganhando bom dinheiro e auxiliando no sustento da família.
Ou seja: o filho ou a filha inevitavelmente perdem na comparação, ao menos do ponto de vista do adulto. Isto gera ressentimento, sobretudo porque às vezes corresponde à verdade. Tomem o mercado de trabalho; já foi bem mais fácil, menos competitivo. Quando me formei na UFRGS os médicos eram caçados no Estado. Havia dezenas, centenas de lugares de trabalho. Hoje, até a luta para conseguir uma vaga na residência é feroz. Disso os pais freqüentemente esquecem. Esquecem que, quando tinham a idade de seus filhos, o mundo era diferente.
E era melhor? Aí está uma boa pergunta. Porque a tendência dos adultos é recordar as coisas boas e esquecer as más. E confirmam seus argumentos mostrando as manchetes dos jornais ou as notícias da tevê. Um mundo violento, cheio de ameaças, um mundo que parece sempre à beira do caos. 
Será? Tomem o caso da violência. As cidades brasileiras (e outras cidades) são violentas. Mas foram as cidades que inventaram a violência? Quando a vida era principalmente rural, não havia violência? Claro que havia. Capangas degolavam inimigos a torto e a direito e isso sequer era mencionado. Poucos conflitos bélicos foram tão devastadores quanto a I Guerra Mundial.
E as doenças? A ameaça da Aids é sempre lembrada, mas no início da Idade Moderna uma epidemia de peste matou um terço da população européia, sem falar na sífilis, que se disseminou como fogo numa pradaria seca. Ainda no começo deste século a expectativa de vida na Europa era de cerca de 40 anos. Hoje chega quase aos 80. As crianças morriam como moscas, de diarréia, de pneumonia, de fome. Como disse o filósofo inglês do século 17, Thomas Hobbes, “life is solitary, poor, nasty, brutish and short”, a vida é solitária, carente, repulsiva, brutal e curta. Sobretudo curta.
Temos vacinas, temos antibióticos, temos computadores, temos eletrodomésticos – temos mil maneiras de tornar a vida mais cômoda e mais produtiva. Precisamos reconhecer que estas coisas todas mudaram a cabeça de nossos filhos, na maior parte das vezes para melhor. Portanto, o tom mais adequado para a frase “Quando eu tinha a tua idade” não é o de sermão moralizante, e sim o de afetuosa nostalgia. Nostalgia, sim: “Ai que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais” De fato, os anos não trazem a infância de volta. Mas trazem os filhos, e através deles a preciosa oportunidade de recuperar um pouco do tempo que se foi. Lembrem disso, na véspera do Dia da Criança.

Moacyr Scliar

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