Branca de Neve de Disney fez 80 anos, com direito a chamada
na primeira página de um jornalão e farta matéria crítica lá dentro.
Curiosamente, as críticas não eram à versão Disney cujo aniversário se
comemorava, mas à personagem em si, cuja data natalícia não se comemora porque
pode estar no começo do século XVII, quando escrita pelo italiano Gianbattista
Basile, ou nas versões orais que se perdem na névoa do tempo.
É um velho vício este de querer atualizar, podar, limpar,
meter em moldes ideológicos as antigas narrativas que nos foram entregues pela
tradição. A justificativa é sempre a mesma, proteger as inocentes criancinhas
de verdades que poderiam traumatizá-las. A verdade é sempre outra, impingir às
criancinhas as diretrizes sociais em voga no momento.
E no momento, a crítica mais frequente aos contos de fadas é
a abundância de princesas suspirosas à espera do príncipe. Mas a que
"contos de fadas" se refere? Nos 212 contos recolhidos pelos irmãos
Grimm, há muito mais do que princesas suspirosas. Nos dois volumes de "The
virago book on fairy tales", em que a inglesa Angela Carter registrou
contos do mundo inteiro, não se ouvem suspiros. Nem suspiram princesas entre as
mulheres que correm com os lobos, de Pinkola Estés.
As princesas belas e indefesas que agora estão sendo
criticadas foram uma cuidadosa e progressiva escolha social. Escolha de
educadores, pais, autores de antologias, editores. Escolha doméstica, feita
cada noite à beira da cama. Garimpo determinado selecionando, entre tantas
narrativas, aquelas mais convenientes para firmar no imaginário infantil o
modelo feminino que a sociedade queria impor.
Não por acaso Disney escolheu Branca de Neve para seu
primeiro longa-metragem de animação. O custo era altíssimo, não poderia haver
erro. E, para garantir açúcar e êxito, acrescentou o beijo.
Sim, quem agora critica o beijo como uma forma de assédio —
afinal a moça estava dormindo, impossibilitada de qualquer consentimento —
nunca leu o conto dos Grimm. Ali, o príncipe chega, vê Branca no caixão de
vidro e se apaixona. Já não pode viver sem ela. Pede aos anões que o deixem
levá-la, "a respeitarei e honrarei como a coisa mais querida". Mas na
marcha, os servidores que a levam tropeçam, e o pedaço de maçã envenenada sai
da sua boca. Branca acorda. O príncipe a pede em casamento.
O problema mais sério, entretanto, não está na presença ou
ausência de beijo. Está na incapacidade de ler o conteúdo simbólico dos contos
de fadas. Se beijo houvesse, não seria beijo de assedio, nem ataque de necrofilia,
seria símbolo do beijo vivificador, vida transmitida pelo amor.
Não se trata de narrativas realistas. Lobos não falam, e
teriam certa dificuldade em meter-se em roupas humanas. Mas a senhora idosa que
recentemente falou comigo disse que Chapéuzinho era uma história horrorosa e
muito violenta, porque o lobo comia a avó. Sem se dar conta, ela aceitava a
simbologia de um lobo falante, aceitava que a neta o confundisse com sua
própria avó, mas ofendia-se com o aparente realismo da parte que a tocava.
Os contos maravilhosos, ou contos de fadas, atravessaram
séculos, superaram inúmeras modificações sociais, venceram incontáveis ataques.
Venceram justamente pela densidade do seu conteúdo, pela riqueza simbólica com
que retratam nossas vidas, nossas humanas inquietações. Querer, mais uma vez,
sujeitá-los aos conceitos de ensino mais rasteiros, às interpretações mais
primárias, é pura manipulação, descrença no poder do imaginário.
Marina Colasanti
Nenhum comentário:
Postar um comentário