6 de setembro de 2023

Infeliz aniversário

Branca de Neve de Disney fez 80 anos, com direito a chamada na primeira página de um jornalão e farta matéria crítica lá dentro. Curiosamente, as críticas não eram à versão Disney cujo aniversário se comemorava, mas à personagem em si, cuja data natalícia não se comemora porque pode estar no começo do século XVII, quando escrita pelo italiano Gianbattista Basile, ou nas versões orais que se perdem na névoa do tempo.

É um velho vício este de querer atualizar, podar, limpar, meter em moldes ideológicos as antigas narrativas que nos foram entregues pela tradição. A justificativa é sempre a mesma, proteger as inocentes criancinhas de verdades que poderiam traumatizá-las. A verdade é sempre outra, impingir às criancinhas as diretrizes sociais em voga no momento.

E no momento, a crítica mais frequente aos contos de fadas é a abundância de princesas suspirosas à espera do príncipe. Mas a que "contos de fadas" se refere? Nos 212 contos recolhidos pelos irmãos Grimm, há muito mais do que princesas suspirosas. Nos dois volumes de "The virago book on fairy tales", em que a inglesa Angela Carter registrou contos do mundo inteiro, não se ouvem suspiros. Nem suspiram princesas entre as mulheres que correm com os lobos, de Pinkola Estés.

As princesas belas e indefesas que agora estão sendo criticadas foram uma cuidadosa e progressiva escolha social. Escolha de educadores, pais, autores de antologias, editores. Escolha doméstica, feita cada noite à beira da cama. Garimpo determinado selecionando, entre tantas narrativas, aquelas mais convenientes para firmar no imaginário infantil o modelo feminino que a sociedade queria impor.

Não por acaso Disney escolheu Branca de Neve para seu primeiro longa-metragem de animação. O custo era altíssimo, não poderia haver erro. E, para garantir açúcar e êxito, acrescentou o beijo.

Sim, quem agora critica o beijo como uma forma de assédio — afinal a moça estava dormindo, impossibilitada de qualquer consentimento — nunca leu o conto dos Grimm. Ali, o príncipe chega, vê Branca no caixão de vidro e se apaixona. Já não pode viver sem ela. Pede aos anões que o deixem levá-la, "a respeitarei e honrarei como a coisa mais querida". Mas na marcha, os servidores que a levam tropeçam, e o pedaço de maçã envenenada sai da sua boca. Branca acorda. O príncipe a pede em casamento.

O problema mais sério, entretanto, não está na presença ou ausência de beijo. Está na incapacidade de ler o conteúdo simbólico dos contos de fadas. Se beijo houvesse, não seria beijo de assedio, nem ataque de necrofilia, seria símbolo do beijo vivificador, vida transmitida pelo amor.

Não se trata de narrativas realistas. Lobos não falam, e teriam certa dificuldade em meter-se em roupas humanas. Mas a senhora idosa que recentemente falou comigo disse que Chapéuzinho era uma história horrorosa e muito violenta, porque o lobo comia a avó. Sem se dar conta, ela aceitava a simbologia de um lobo falante, aceitava que a neta o confundisse com sua própria avó, mas ofendia-se com o aparente realismo da parte que a tocava.

Os contos maravilhosos, ou contos de fadas, atravessaram séculos, superaram inúmeras modificações sociais, venceram incontáveis ataques. Venceram justamente pela densidade do seu conteúdo, pela riqueza simbólica com que retratam nossas vidas, nossas humanas inquietações. Querer, mais uma vez, sujeitá-los aos conceitos de ensino mais rasteiros, às interpretações mais primárias, é pura manipulação, descrença no poder do imaginário.


Marina Colasanti

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