7 de maio de 2021

Vantagens do bipartidarismo

Por trás da diferença externa entre o sistema bipartidário anglo-saxônico e o sistema multipartidário da Europa continental, existe uma distinção fundamental, e de profundas consequências para a atitude do partido em relação ao poder, entre a função do partido dentro do corpo político e a posição do cidadão dentro do Estado. No sistema bipartidário, um partido sempre representa o governo e realmente governa o país, de sorte que, temporariamente, o partido no poder identifica-se com o Estado. O Estado, como garantia permanente da unidade do país, é representado apenas pela permanência da função do rei. Como ambos os partidos são planejados e organizados para governarem alternadamente, todos os setores da administração são planejados e organizados para essa alternação. E, como o governo de cada partido é limitado no tempo, o partido da oposição exerce um controle cuja eficiência é fortalecida pela certeza de que governará amanhã. De fato, é a oposição, e não a posição simbólica do rei, que garante a integridade do todo contra a ditadura unipartidária. As vantagens desse sistema são óbvias: elimina as diferenças essenciais entre o governo e o Estado; mantém tanto o poder como o Estado ao alcance do cidadão organizado em partido, que representa o Estado de hoje ou de amanhã; e, consequentemente, não dá azo a especulações grandiosas a respeito do Poder e do Estado como se fossem algo fora do alcance humano, entidades metafísicas independentes da vontade e da ação do cidadão. O sistema partidário do continente pressupõe que cada partido se defina conscientemente como parte do todo, e este "todo", por sua vez, é representado por um Estado acima dos partidos, enquanto o governo unipartidário só pode significar o domínio ditatorial de um partido sobre todos os outros. Já os governos formados por alianças entre líderes partidários são apenas governos partidários, claramente distintos do Estado, que permanece acima e além de todos eles. Uma das desvantagens desse sistema é que os membros do gabinete não podem ser escolhidos segundo sua competência, pois, quando há muitos partidos representados, os ministros são necessariamente escolhidos segundo as alianças partidárias; o sistema britânico, por outro lado, permite a escolha dos homens mais capazes dentre os vastos escalões de um só partido. Muito mais importante, contudo, é o fato de que o sistema multipartidário nunca permite que um só homem ou um só partido assuma inteira responsabilidade. Assim, é perfeitamente natural que nenhum governo formado por alianças entre partidos se sinta inteiramente responsável. Mas, se acontecer o improvável e a maioria absoluta de um partido dominar o Parlamento, e formar um governo unipartidário, resultará em uma ditadura, pois o sistema não está preparado para esse tipo de governo, ou em problemas para a liderança, que, ainda que democrata e acostumada a exercer o poder apenas em parte, reluta em usá-lo plenamente. Essa consciência funcionou de modo quase exemplar quando, após a Primeira Guerra Mundial, os partidos social-democratas da Alemanha e da Áustria foram guindados, por breve tempo, à posição de partidos de maioria absoluta e, no entanto, repudiaram o poder que essa posição lhes dava. Desde o surgimento do sistema partidário, é corriqueiro identificar os partidos com interesses particulares, econômicos ou de outra natureza; todos os partidos continentais, e não apenas grupos trabalhistas, admitiam-no com franqueza, seguros de que o Estado, acima dos partidos, exerceria o seu poder mais ou menos no interesse de todos. O partido anglo-saxão, ao contrário, baseado em "princípios" para servir ao "interesse nacional", representa o atual ou futuro Estado do país; os interesses particulares têm a sua representação dentro do próprio partido, sob forma de ala direita ou esquerda, e são refreados pelas próprias necessidades do governo. E, como no sistema bipartidário um partido não pode existir durante tempo algum se não tem força suficiente para assumir o poder, não há necessidade de qualquer justificativa teórica, não se criam ideologias e não existe o fanatismo peculiar à luta partidária do continente, que resulta não tanto do conflito de interesses quanto de ideologias antagônicas. Separados do governo e do poder, os partidos continentais estavam presos à mesquinhez dos interesses particulares; mais do que isso: envergonhavam-se desses interesses e, assim, criaram justificativas que levariam cada um a uma ideologia que alegava que os seus interesses particulares coincidiam com os interesses gerais da humanidade. O partido conservador não se contentava em defender os interesses da propriedade rural; necessitava de uma filosofia segundo a qual Deus havia criado o homem para trabalhar a terra com o suor do seu rosto. O mesmo se aplica à ideologia do progresso dos partidos da classe média e à asserção dos partidos trabalhistas de que o proletariado é o líder da humanidade. Essa estranha combinação de alta filosofia e comezinhos interesses só é paradoxal à primeira vista. Uma vez que esses partidos não organizavam os seus adeptos (nem educavam os seus líderes) para o fim de cuidarem dos negócios públicos, mas os representavam apenas como indivíduos privados com interesses privados, tinham de atender a todas as necessidades privadas, tanto espirituais como materiais. Em outras palavras, a principal diferença entre o partido anglo-saxônico e o partido continental é que o primeiro é uma organização política de cidadãos que precisam agir em conjunto para poderem agir com eficácia, enquanto o segundo é a organização de indivíduos privados que querem proteger os seus interesses contra a interferência dos negócios públicos.

 

Hannah Arendt

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