27 de outubro de 2016

Hospitalidade dakota


Depois que todos comeram mandei Lope de Oviedo, que tinha mais força e estava em melhores condições que os outros, ir até umas árvores próximas e subir nelas para observar a terra em que nos encontrávamos. Depois disso, entendeu que estávamos numa ilha e viu que a terra estava marcada como se por ali passasse o gado, parecendo-lhe, portanto, que estávamos em terra de cristãos. Pedi-lhe que olhasse de novo especialmente se havia trilhas, mas tomando os devidos cuidados com os perigos que poderia haver. Ele se foi e, topando com uma vereda, seguiu por ela uma meia légua, onde encontrou algumas cabanas de índios abandonadas, porque estes tinham ido para o campo. Pegou uma panela deles, um pequeno cachorro e algumas tartarugas e voltou para onde estávamos. Mas, como ele estava demorando, eu já havia mandado outros dois cristãos para que o procurassem e vissem o que acontecera. Eles o encontraram logo em seguida e viram que três índios com arco e flecha vinham atrás dele, chamando-o. Ele também procurava se comunicar através de sinais. Assim chegaram até onde estávamos, porém os índios ficaram um pouco mais atrás, colocados na mesma ribeira. Depois de meia hora chegaram outros cem índios arqueiros e, se eram grandes ou não, o nosso medo os fazia parecer gigantes. Chegaram e pararam perto de nós, onde os outros três estavam. Entre nós era impossível pensar em defesa, porque dificilmente haveria mais de seis que pudessem se levantar. O inspetor e eu fomos até eles e eles se aproximaram de nós. Usando de toda a artimanha possível, procuramos conquistá-los, dando-lhes contas e guizos, enquanto um deles nos deu uma flecha, o que era sinal de amizade. Através de sinais procuraram nos fazer entender que voltariam no dia seguinte e nos trariam de comer, porque nada tinham ali.
No outro dia, ao romper do sol, como haviam prometido, os índios vieram e nos trouxeram muito peixe e umas raízes que eles comem, parecidas com nozes, sendo que a maior parte delas é extraída debaixo d'água, com muito trabalho. Voltaram à tarde e trouxeram mais pescado e as mesmas raízes, trazendo junto suas mulheres e filhos. E assim voltaram ricos em contas e guizos que lhes demos. Retornaram vários outros dias, trazendo sempre as mesmas coisas. Como nós já estávamos bem providos de pescado, raízes e água, além de outras coisas que lhes pedimos, decidimos desencalhar a barca e sair de novo ao mar. Tivemos de nos despir e passamos grande trabalho para tirar a barca da areia onde encalhara. Depois de embarcar, quando estávamos a dois tiros de balista dentro do mar, nos veio uma tal onda que nos deixou todos molhados. Como íamos todos nus e o frio que fazia era muito grande, resolvemos soltar os remos. Então novo vagalhão fez a barca virar. O inspetor e mais dois ficaram debaixo dela e morreram afogados. Como a costa era muito brava, o mar lançou-nos aos trambolhões e em meio às ondas de volta à margem da mesma ilha. Com exceção dos três que se afogaram, todos conseguiram chegar à costa. Estávamos nus como havíamos nascido, tremendo de frio e mais uma vez sem nada para comer. Podíamos contar todos os ossos, sendo as próprias figuras da morte. Estávamos em novembro e praticamente desde maio eu comia apenas milho tostado ou cru, porque, embora tivéssemos matado os cavalos, não consegui comer a sua carne. E não foram mais de dez as vezes em que comi pescado. Como ainda estava soprando o vento norte, nos sentíamos mais perto da morte do que da vida.
Saímos em busca dos tições de fogo que havíamos deixado e quis Deus Nosso Senhor que encontrássemos brasas, com as quais fizemos grandes fogueiras. Assim ficamos, pedindo misericórdia a Deus e perdão pelos nossos pecados, derramando nossas lágrimas. Na hora do pôr-do-sol, os índios, sem saberem de nossa tentativa de partida, vieram para nos trazer comida como sempre. Mas ao ver-nos naquele estado e com um comportamento completamente diferente, ficaram espantados e recuaram. Fui até eles e, através de gestos, procurei explicar-lhes que nossa barca havia afundado causando a morte de três dos nossos. Ali mesmo, na presença deles, apareceram dois dos corpos. Ao verem o desastre que nos acontecera, os índios se compadeceram de nossa desventura e miséria, e vieram sentar-se junto a nós, começando todos a chorar. Era tão impressionante e profundo seu sentimento, que longe dali se podia ouvir o choro. A lamentação durou mais de meia hora. Era impressionante ver aqueles homens, tão sem razão, tão brutos e tão rudes, se compadecendo de nós. Isso fez com que, em mim e outros da companhia, crescessem o desgosto e o sentimento de nossa desgraça.
Cessado o choro, perguntei a alguns cristãos se não achavam melhor que pedíssemos àqueles índios para nos levarem a suas casas. Alguns, que já haviam estado na Nova Espanha, disseram que não deveríamos fazer isto porque, quando em suas casas, os índios nos matariam e nos ofereceriam em sacrifício a seus ídolos. Mas, como não havia outro remédio e por qualquer outro caminho a morte estava mais próxima, desconsiderei suas observações e roguei aos índios que nos levassem às suas casas. Eles mostraram grande prazer em nos atender e pediram que esperássemos um pouco que iriam providenciar. Em seguida, trinta deles se carregaram de lenha e foram para as casas, que ficavam longe dali. Ficamos com os outros até entardecer. Então nos pegaram pelos braços e com muita pressa fomos para suas casas. Como fazia muito frio, temendo que alguns desmaiassem pelo caminho, fizeram grandes fogueiras ao longo do trajeto. Parávamos em cada uma delas para nos aquecer. Quando viam que havíamos recuperado alguma força e calor, nos tomavam pelos braços e quase sem deixar-nos encostar os pés no chão nos conduziam até a outra fogueira. Chegamos assim até onde moravam e vimos que haviam construído uma casa só para nós, rodeada por fogueiras para ser mantida aquecida. Passada uma hora de nossa chegada começaram a dançar e a fazer uma grande festa que durou toda a noite.

Álvar Nuñes Cabeza de Vaca

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