23 de outubro de 2016

De mãos dadas com a solidão


Ela trancou a casa com aquela sensação, já bastante familiar, de quem sai sem saber exatamente o porquê de estar saindo. Estava bem vestida, como se fosse encontrar alguém. Tarefas domésticas esperavam-na na volta, e não eram poucas. Mas o fato é que sempre há e haverá tarefas domésticas esperando. A vida, por outro lado, não podia esperar. Não naquela noite (e ela desejou secretamente que nunca mais). Por que ficaria ela em casa, ocupando-se de móveis empoeirados, roupas não passadas e verduras que estavam quase estragando? Para sentir-se responsável? Para sentir-se normal? Perante os olhos de quem? Hum... Se naquela noite houvesse um bom par de braços fortes e cuidadosos enlaçando-a, ou se houvesse uma boa recordação vívida o suficiente para entorpecê-la ou então se ela simplesmente se sentisse feliz sem nem saber por que... Não. Não havia nada, absolutamente nada. Menos que nada. Sua casa, que ela esforçava-se por chamar de lar, pareceu-lhe um ambiente estranho e hostil, um lugar pequeno demais para tudo o que carregava dentro de si e ainda assim enorme para sua solidão.
Em sua casa trancada não ficou ninguém, em sua mente nenhuma recordação, em seu coração nenhuma felicidade. Após se afastar alguns passos da porta da casa, parou e acendeu um cigarro. Sem sair do lugar, tragou lentamente duas vezes, olhar perdido, aspirando rapidamente e soltando a fumaça bem devagar, pelas narinas, enquanto olhava para os lados e sentia a presença da noite enorme. Noite brumosa e fria, noite sem som nem céu nem estrelas, noite sem graça, noite de trevas. Seus olhos sem brilho não se detiveram em nenhum objeto, em nenhum ângulo, em ninguém: olhavam sem saber o que procurar e nada registravam: olhavam, simplesmente, pois não havia nada realmente interessante para ser visto. Quando seus olhos se demoraram nos bicos dos seus sapatos, decidiu-se. Caminhou, então, alguns quarteirões. Quase sorriu quando notou que no bar habitual uma das mesas que ficava do lado de fora estava vazia. Sobre a mesa pousou o essencial: cigarro, isqueiro e celular. Sentou-se e acenou meio nervosamente para o garçom.
- Vinho da casa. Jarra. Obrigada.
O lugar trazia-lhe recordações que desejaria não ter. "Ou então", matutou, "vim para cá justamente por causa dessas recordações, para revivê-las em meu íntimo, para o bem ou para o mal, por necessidade. Estaria o meu inconsciente dominando o meu consciente agora?", filosofou. "Provavelmente sim. Afinal, faz só 23 anos que ele faz isso...". E sorriu. Sorriu o sorriso debochado e amargo da ironia contra si mesma, sorriu o sorriso de lábios tortos de quem se sabe refém dos próprios sentimentos. "Ele costumava se sentar aqui... Puxava sua cadeira para o lado da minha e seu braço repousava minha nuca quando nos beijávamos... E que sorriso... ai meu Deus! Que sorriso! A minha alegria sorria pelos lábios dele." E foi lembrando disso que sua face se contraiu toda, num misto de dor e desespero e perdição. Seus olhos finalmente brilharam até ficarem lacrimejantes. "Droga! Nada de dar bafão!", ordenou-se, lembrando-se de que não estava em casa.
Um pouco tarde demais, ela havia percebido que seu conflito interior chamara a atenção de algumas das mesas circundantes. Ciosa da indiscrição alheia, ergueu o queixo, franziu o cenho e passou a vizinhança em revista, como um general que revista suas tropas no campo de batalha. Todos os casais e grupos de amigos desviaram os olhos, nem tanto porque se sentiram intimidados, mas principalmente porque o espetáculo da moça triste e solitária perdera o atrativo tão logo descoberto. Havia apenas uma exceção, um homem com os seus trinta anos, ele também sozinho, que a encarou diretamente sem desgrudar seus olhos dos dela. Mas a cena era ridícula, pois ele semicerrou os olhos como um galã de filme B, como se ela estivesse ali para ser salva por...
- Bond, James Bond!
E gargalhou. Disse e gargalhou alto o suficiente para que todos ouvissem. E, talvez, todos estivessem pensando que ela não era uma moça triste e solitária, e sim uma moça louca e solitária. "Pronto", pensou ela, "o inevitável bafão..." O homem, que entendera o recado, afundou a cabeça nos ombros e fingia, vermelho como um tomate, ler um letreiro qualquer do outro lado da rua.
De repente, aquele bar, o bar das fortes lembranças, tornara-se, qual sua casa, um ambiente estranho e hostil. Ela perguntou-se, censurando-se antes de qualquer resposta, o que ela havia ido fazer ali, sozinha, fumando um cigarro após o outro e tomando uma jarra de vinho sozinha. Ela não sabia, não sabia de verdade, e na verdade nem queria saber. Mas censurava-se. Olhou para o celular. Mudo. Placidamente mudo. Irritantemente mudo. "Ele não vai ligar." Cruzou os braços e pousou os olhos sobre o cinzeiro, os pensamentos acelerando-se, encavalando-se, misturando-se e confundindo-se. Subitamente, como quem toma consciência de uma catástrofe iminente, ergueu os olhos, aterrorizada: "E se ele não me ligar nunca mais?" Seu rosto contraiu-se novamente, e dessa vez foi necessário trancar a garganta com muito ímpeto para não rebentar em soluços.
Sem olhar para os lados, ela dirigiu-se apressadamente ao caixa e pagou a conta. Não quis esperar o troco. Caminhou lentamente de volta para casa. A casa onde não havia ninguém esperando por ela, nem uma boa recordação e nem uma alegria qualquer: só as tarefas domésticas. Caminhou a passos firmes, embora deixasse sua cabeça pender para frente e para baixo, como quem se dirige ao patíbulo após um crime confessado. Um vento gelado queimava seu rosto e secava seus olhos. Seu corpo perdeu-se nas brumas. Talvez ela tenha chorado, de mão dadas com a solidão.

André Faustino

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