23 de outubro de 2016

Fábula da andorinha


Não me recordo com exatidão se eu tinha dezesseis, dezessete ou dezoito anos. Sei que cursava o Colegial (atual Ensino Médio) e que certa vez, tive uma aula de Biologia para lá de interessante. Miguel, o professor, era um professor de verdade, ou seja, não se contentava em ministrar os conhecimentos que possuía. Por simpatizar com os adolescentes justamente nessa fase difícil e problemática da vida deles, sempre dava um jeito de usar os minutos finais da aula pra ensinar algo daquilo que não se encontra nos livros didáticos. Confesso que nunca gostei muito de Biologia. Aquele papo todo de angiospermas e gimnospermas sempre me deu um sono de múmia egípcia. Entretanto, quando o Miguel encerrava oficialmente a aula e dizia "agora eu quero dizer uma coisinha pra vocês", todos, sem exceção, aguçavam os ouvidos e prestavam uma atenção semelhante à do pecador em relação ao padre no confessionário. Certa vez, ele contou a fábula da andorinha imprudente, que transcreverei aqui com minhas próprias cores.
Era uma vez uma andorinha que, no verão, havia acompanhado suas companheiras até o polo sul, na época de reprodução. Uma vez "feito o serviço", ela permitiu-se descansar. Cavou uma covinha com o bico e ali descansou, tendo o límpido céu como vista relaxante. Passado certo tempo, o outono começou a se manifestar. No polo sul a manifestação do outono corresponde ao mais inclemente dos invernos nos trópicos. Sem perder tempo, as companheiras da nossa andorinha começaram a voar, em busca de um local mais quente e aprazível. E a andorinha nada de nada, não movia uma pena de preocupação. Uma das últimas andorinhas a partir, sua amiga, aproximou-se admoestando:
- Venha conosco! Estamos partindo!
- É cedo! Está tão bom aqui no meu buraquinho...
- Venha - insistiu a andorinha amiga. - Logo chegarão os ventos frios e se você não nos acompanhar, morrerá com certeza!
- Sossega! Isso é obsessão da sua parte. Eu logo vou e me salvo. Confie em mim.
- Você é quem sabe - respondeu a andorinha amiga. Dita essa frase, ela alçou voo e desapareceu.
Nossa andorinha ficou mais alguns dias em seu confortável buraquinho. Estava completamente alheia a tudo o que acontecia ao redor e só cuidava de permanecer aquecida e rememorar os bons momentos da última estação. Mas o frio é inclemente e logo começou a engrossar de tal modo que nossa andorinha não conseguiu ignorá-lo. Vencendo sua resistência e comodismo ela enfim confessou-se: "É hora de partir!"
Tarde demais. Não muito depois de ter levantado voo a andorinha começou a sentir cãibras enormes por causa do frio. "Isso passa" - pensou ela, enganando-se sem perceber. Alguns quilômetros adiante o frio era tão intenso que uma fina película de gelo começou a se acumular sobre suas asas. Sentindo a dificuldade crescente de usá-las a andorinha arrependeu-se sinceramente: "Devia ter dado o devido valor ao aviso da minha amiga. Da forma como estou não duro mais meia hora e logo morrerei no mar." Entregando-se ao destino cruel da morte por afogamento a andorinha sentiu suas forças desaparecerem. Era questão de segundos até que ela se entregasse quando, inesperadamente, ela avistou uma ilhota perdida no meio do oceano. Isso fez com que ela recobrasse o ânimo. "Uma ilhota!" - empolgou-se - "Ali poderei descansar antes de prosseguir viagem e, assim, me salvo!" Não foi um verdadeiro pouso, foi mais uma carreira desabalada até o solo da ilha.
Assim que a andorinha tocou o solo, sentiu sobre si o soterramento de uma enorme massa quente. É que, sem perceber, ela havia pousado entre as pernas traseiras de uma vaca que os ilhéus ali criavam. Sim, a vaca cagou nela. E acaso pensa você, leitor, que ela se sentiu a última das últimas por causa disso? Longe disso! O calor da merda derreteu o gelo que se acumulava em suas asas e transmitiu-lhe uma indescritível sensação de bem-estar. Uma sensação tão intensa que ela não conseguiu se conter: começou a piar de felicidade, cantou e cantou como se fosse a pomba branca do Paraíso.
Para sua infelicidade, naquele exato momento uma cobra rastejava por ali. Distraída por seus próprios pensamentos, a cobra procurava seu ninho quando o canto da andorinha despertou-lhe a atenção. Agradecida ao deus das cobras por oferecer-lhe um almoço assim tão eloquente e fácil, a cobra aproximou-se da andorinha e sem pensar duas vezes engoliu-a.
A fábula termina aqui. Dela o professor Miguel extraiu três máximas: duas existenciais e uma pragmática respectivamente.

1) NEM TODO MUNDO QUE TE CAGA EM CIMA É TEU INIMIGO.

2) NEM TODO MUNDO QUE TE TIRA DA MERDA É TEU AMIGO.

3) QUANDO VOCÊ ESTIVER FELIZ, FIQUE QUIETO!

André Faustino

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...