23 de outubro de 2016

O poder do fogo



- Vem cá. Vamos praticar um pouco de filosofia, ou seja, calar a boca, deitar-nos sobre o ventre e pensar.
Acendeu um fósforo e deitou fogo ao papel e à lenha que estavam na lareira junto à qual se encontrava e que eu não advertia senão agora. A chama elevou-se, alta, e ele atiçou e alimentou o fogo com extremo cuidado. Cheguei-me para o lado dele e cravei também os olhos no fogo. Durante cerca de uma hora permanecemos em silêncio, deitados sobre o ventre, diante dos lenhos crepitantes, e o vimos arder retorcendo-se e extinguindo-se, estalando e palpitando até desvanecerem-se num ardente braseiro silencioso.
- A adoração do fogo não foi das coisas mais idiotas que se tem inventado - murmurou entre dentes o meu acompanhante.
A não ser isso, nenhum de nós pronunciou qualquer palavra. Com os olhos fitos no fogo, afundado no sonho e no silêncio, via figuras na fumaça e formas na cinza. Num momento fiquei surpreso. Meu companheiro havia atirado ao fogo um pedaço de resina, do qual surgiu uma breve chama esbelta, na qual imaginei ver o pássaro de meu desenho, com sua amarela cabeça de gavião. Na brasa surgiam dourados fios ardentes formando caprichosas redes e apareciam letras e figuras, recordações de rostos, de animais, de plantas, de vermes e serpentes. Quando despertei de minha contemplação, e voltei a vista, meu companheiro fitava a cinza ainda com fanática fixidez.
(...)
Pistórius me dera uma primeira lição enquanto estávamos ambos reclinados no chão diante da lareira de seu triste quarto de eremita. A contemplação do fogo me fizera bem, confirmara e fortificara em mim tendência que sempre trouxera em meu interior, mas que jamais buscara estimular. Pouco a pouco fui apreciando-as, fragmentariamente, com maior nitidez.
Desde criança sempre me agradava contemplar as formas estranhas da natureza, não como observador que investiga, mas abandonando-me apenas ao seu encanto peculiar, à sua profunda e complexa linguagem. As longas raízes das árvores, os veios coloridos das pedras, as manchas de óleo sobrenadando na água, as fendas dos cristais, todas as coisas desse gênero tiveram desde muito para mim um singular encanto, como também a água e o fogo, a fumaça, as nuvens, o pó, e sobretudo as luminosas máculas que via movendo-se ao fechar os olhos. Nos dias seguintes à minha visita a Pistórius tudo aquilo começou a atrair-me de novo, pois percebi que certa sensação de alegria e de força, surgida em mim após aquela tarde, uma intensificação da consciência de mim mesmo, era devida inteiramente à longa contemplação do fogo, benéfica e enriquecedora.
Às escassas afirmações amadurecidas em mim até então na demanda do verdadeiro fim da minha vida, veio agregar-se agora esta: a contemplação dessas criaturas, o abandono às formas irracionais, singulares e retorcidas da Natureza, despertam em nós um sentimento de consciência do nosso interior com a vontade que as fez nascer e acabam por parecer-nos criações próprias, obras de nosso capricho; vemos tremer e dissolver-se as fronteiras entre nós e a Natureza, e conhecemos um novo estado de ânimo em que já não sabemos se as imagens refletidas em nossa retina procedem de impressões exteriores ou interiores. Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo. Uma mesma divindade indivisível atua sobre nós e a Natureza, e se o mundo exterior desaparecesse, qualquer um de nós seria capaz de reconstituí-lo, pois a montanha e o rio, a árvore e a folha, a raiz e a flor, todas as criaturas da Natureza estão previamente criadas em nós mesmos, provêm de nossa alma, cuja essência é a eternidade, essência que escapa ao nosso conhecimento, mas que se faz sentir em nós como força amorosa e criadora.
Hermann Hesse

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