30 de janeiro de 2018

O país do agronegócio


Comentando a descrição de um jantar colonial em Boston no século XVIII - um jantar de dia de festa com pudim de ameixa, carne de porco, galinha, toucinho, bife, carne de carneiro, peru assado, molho grosso, bolos, pastéis, queijos etc. (todo um excesso de proteína de origem animal) - o professor Percy Goldthwait Stiles, de Harvard, observa muito sensatamente que semelhante fartura talvez não fosse típica do regime alimentar entre os colonos da Nova Inglaterra; do ordinário, do comum, do de todo dia. Que as festas gastronômicas entre eles talvez se compensassem com os jejuns. O que parece poder aplicar-se, com literal exatidão, aos banquetes coloniais no Brasil intermeados decerto por muita parcimônia alimentar, quando não pelos jejuns e pelas abstinências mandadas observar pela Santa Igreja. Desta a sombra matriarcal se projetava então muito mais dominadora e poderosa sobre a vida íntima e doméstica dos fiéis do que hoje.
Impossível concluir dos banquetes que o padre Cardim descreve, e a que alude Soares, que fosse sempre de fartura o passadio dos colonos; forte e variada sua alimentação; que o Brasil dos primeiros séculos coloniais fosse o tal "país de Cocagne" da insinuação um tanto literária de Capistrano de Abreu. É ainda no próprio Cardim que vamos recolher este depoimento de um flagrante realismo: no Colégio da Bahia "nunca falta um copinho de vinho de Portugal, sem o qual não se sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos fracos". Note-se de passagem que nesse mesmo vinho de Portugal os puritanos da Nova Inglaterra afogavam a sua tristeza.
País de Cocagne coisa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando ao grosso da população o suprimento de víveres.
O luxo asiático, que muitos imaginam generalizado ao norte açucareiro, circunscreveu-se a famílias privilegiadas de Pernambuco e da Bahia. E este mesmo um luxo mórbido, doentio, incompleto. Excesso em umas coisas, e esse excesso à custa de dívidas; deficiências em outras. Palanquins forrados de seda, mas telha-vã nas casas-grandes e bichos caindo na cama dos moradores.
No Pará no século XVII "as famílias de alguns homens nobres" não podem vir à cidade pelas festas de Natal (1661) "por causa de suas filhas donzelas não terem que vestir para irem ouvir missa". Recorda João Lúcio de Azevedo que exprobrando Antônio Vieira à Câmara do Pará não haver na cidade açougue, nem ribeira, ouvira em resposta ser impossível o remédio "como impossível era haver pagamento pelo sustento ordinário". E acrescenta: "A alimentação trivial, de caça e pescado, abundante nos primeiros tempos rarefez-se à proporção que o número de habitantes aumentava. As terras, sem amanho nem inteligente cultura, perdiam a primitiva fertilidade e os moradores retiravam-se, passando para outras estâncias suas casas e lavouras".
Do Maranhão é o padre Vieira quem salienta não haver, no seu tempo, em todo o Estado, "açougue, nem ribeira, nem horta, nem tendas onde se vendessem as cousas usuais para o comer ordinário". De todo o Brasil é o padre Anchieta quem informa andarem os colonos do século XVI, mesmo "os mais ricos e honrosos" e os missionários, de pé descalço, à maneira dos índios; costume que parece ter-se prolongado ao século XVII e aos próprios fidalgos olindenses - os tais dos leitos de seda para a hospedagem dos padres-visitadores e dos talheres de prata para os banquetes de dia de festa. Seus vestidos finos seriam talvez para as grandes ocasiões. Por uma cena que Maria Graham presenciou em Pernambuco dos princípios do século XIX parece igualmente ter prevalecido entre nossos fidalgos de garfo de prata... para inglês ver (mas inglês raramente se deixa iludir por aparências douradas ou prateadas) o gosto de comer regaladamente com a mão. Nem esqueçamos este formidável contraste nos senhores de engenho: a cavalo grandes fidalgos de estribo de prata, mas em casa uns franciscanos, descalços, de chambre de chita e às vezes só de ceroulas. Quanto às grandes damas coloniais, ricas sedas e um luxo de teteias e joias na igreja, mas na intimidade, de cabeção, saia de baixo, chinelo sem meias. Efeito em parte do clima, esse vestuário tão à fresca; mas também expressão do franciscanismo colonial, no trajar como no comer de muito fidalgo, dos dias comuns.
A própria Salvador da Bahia, quando cidade dos vice-reis, habitada por muito ricaço português e da terra, cheia de fidalgos e de frades, notabilizou-se pela péssima e deficiente alimentação. Tudo faltava: carne fresca de boi, aves, leite, legumes, frutas; e o que aparecia era da pior qualidade ou quase em estado de putrefação. Fartura só a de doce, geleias e pastéis fabricados pelas freiras nos conventos: era com que se arredondava a gordura dos frades e das sinhás-donas.
Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII e XVIII. Nas cidades, péssima e escassa. O bispo de Tucumã, tendo visitado o Brasil no século XVII, observou que nas cidades "mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe e nada lhe traziam, porque nada se achava na praça nem no açougue"; tinha que recorrer às casas particulares dos ricos. As cartas do padre Nóbrega falam-nos da "falta de mantimentos" e Anchieta refere nas suas que em Pernambuco não havia matadouro na vila, precisando os padres do colégio de criar algumas cabeças de bois e vacas para sustento seu e dos meninos: "se assim não o fizessem, não teria o que comer". E acrescenta: "Todos sustentam-se mediocremente ainda que com trabalho por as cousas valerem mui caras, e tresdobro do que em Portugal". Da carne de vaca informa não ser gorda: "não muito gorda por não ser a terra fértil de pastos". E quanto a legumes: "da terra há muito poucos". É ainda do padre Anchieta a informação: "Alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vem vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras cousas de comer".
Era uma dieta, a da Bahia dos vice-reis, com os seus fidalgos e burgueses ricos vestidos sempre de seda de Gênova, de linhos e algodão da Holanda e da Inglaterra e até de tecidos de ouro importados de Paris e de Lyon; era uma dieta, a deles, em que na falta de carne verde se abusava de peixe, variando apenas o regime ictiófago com carnes salgadas e queijos do reino, importados da Europa juntamente com outros artigos de alimentação. "Não se vê carneiro e raro é o gado bovino que preste", informava sobre a Bahia o abade Reynal. Nem carne de vaca nem de carneiro nem mesmo de galinha. Nem frutas nem legumes; que legumes eram raros na terra e frutos quase que só chegavam à mesa já bichados ou então tirados verdes para escaparem à gana dos passarinhos, dos tapurus e dos insetos. A carne que se encontrava era magra, de gado vindo de longe, dos sertões, sem pastos que o refizessem da penosa viagem. Porque as grandes lavouras de açúcar ou de tabaco não se deixavam manchar de pastos para os bois descidos dos sertões e destinados ao corte. Bois e vacas que não fossem os de serviço eram como se fossem animais danados para os latifundiários.
Vacas leiteiras sabe-se que havia poucas nos engenhos coloniais, quase não se fabricando neles nem queijos nem manteiga, nem se comendo, senão uma vez por outra, carne de boi. Isto, explica Capistrano de Abreu, "pela dificuldade de criar reses em lugares impróprios à sua propagação". Dificuldade que reduziu este gado ao estritamente necessário ao serviço agrícola. Era a sombra da monocultura projetando-se por léguas e léguas em volta das fábricas de açúcar e a tudo esterelizando ou sufocando, menos os canaviais e os homens e bois a seu serviço.

Gilberto Freyre

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...