Frank Spencer foi encontrar entre os Pueblo uma dança destinada especialmente a fazer medo aos meninos e incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito aos mais velhos. Os personagens da dança eram uns como papões ou terríveis figuras de outro mundo, descidos a este para devorar ou arrebatar meninos maus. Stevenson informa-nos de dança semelhante entre os Zuñi, esta macabra, terminando na morte de uma criança, escolhida entre as de pior comportamento da tribo: mas realizando-se com intervalos de longos anos. O fim, o moral, o pedagógico, de influir pelo medo ou pelo exemplo do castigo tremendo sobre a conduta do menino.
O trabalho, hoje clássico, de Alexander Francis Chamberlain acerca da criança na cultura primitiva e no folclore, das culturas históricas, indica ser o papão, complexo generalizado entre todas elas; e quase sempre, ao que parece, com fim moralizador ou pedagógico. Entre antigos hebreus era o Libith, monstro cabeludo e horrendo que voava de noite em busca de crianças; entre os gregos roubavam menino umas velhas feiíssimas, as Strigalai; entre os romanos a Caprimulgus saía de noite para tirar leite de cabra e comer menino - talvez avó remota da cabra-cabriola - enquanto de dia dominava nos matos o espírito mau da floresta, Silvanus. Entre os russos é um horroroso papão, terrível como tudo o que é russo, que à meia-noite vem roubar as crianças em pleno sono; entre os alemães, é o Papenz; entre os escoceses e os ingleses, o Boo Man, o Bogle Man. Champlain e os primeiros cronistas do Canadá falam em um horrível monstro, terror das crianças entre os aborígenes; entre os maias havia crença em gigantes que de noite vinham roubar menino - os balams, o culcalkin. E entre os índios Gaulala, da Califórnia, Powers foi encontrar danças do diabo, que comparou às haberfeld treiber da Bavária - instituição para amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em ordem. Eram danças em que aparecia uma figura horrenda. Na cabeça uma pele de urso, nas costas um manto de penas, o peito listrado como uma zebra.Danças semelhantes de "diabo" - ou Jurupari - havia entre os indígenas do Brasil; e com o mesmo fim de amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em boa ordem. Sendo que entre os ameríndios desta parte da América as máscara de dança desempenhavam função importante; Koch-Grunberg salienta que eram guardadas como coisa sagrada e que o seu misterioso poder se transmitia ao dançarino. Eram máscaras imitando animais demoníacos nos quais supunha o selvagem transformarem-se os mortos, e sua eficácia mágica era aumentada pelo fato de serem humanos ou de origem animal muitos dos materiais de sua composição: cabelo de gente, pelo de bichos, penas etc. Por sua vez o dançarino devia imitar os movimentos e as vozes do animal demoníaco tal como nas danças descritas pelos primeiros cronistas. E como as máscaras, os instrumentos sagrados eram igualmente considerados cheios de misterioso poder.
Os jesuítas conservaram danças indígenas de meninos, fazendo entrar nelas uma figura cômica de diabo, evidentemente com o fim de desprestigiar pelo ridículo o complexo Jurupari. Cardim refere-se a uma dessas danças. Desprestigiados o Jurupari, as máscaras e os maracás sagrados, estava destruído entre os índios um dos seus meios mais fortes de controle social: e vitorioso, até certo ponto, o cristianismo. Permanecera, entretanto, nos descendentes dos indígenas o resíduo de todo aquele animismo e totemismo. Sob formas católicas, superficialmente adotadas, prolongaram-se até hoje essas tendências totêmicas na cultura brasileira. São sobrevivências fáceis de identificar, uma vez raspado o verniz de dissimulação ou simulação europeia: e onde muito se acusam é em jogos e brinquedos de crianças com imitação de animais - animais verdadeiros ou vagos, imaginários, demoníacos. Também nas histórias e contos de bichos - de uma fascinação especial para a criança brasileira. Por uma espécie de memória social como que herdada, o brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos intelectualizado pela educação europeia, se sente estranhamente próximo da floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes indígenas e, em grande parte, através das experiências e superstições dos índios. É um interesse quase instintivo, o do menino brasileiro de hoje pelos bichos temíveis. Semelhante ao que ainda experimenta a criança europeia pelas histórias de lobo e de urso; porém muito mais vivo e forte; muito mais poderoso e avassalador na sua mistura de medo e fascinação; embora na essência mais vago. O menino brasileiro do que tem medo não é tanto de nenhum bicho em particular, como do bicho em geral, um bicho que não se sabe bem qual seja, espécie de síntese da ignorância do brasileiro tanto da fauna como da flora do seu país. Um bicho místico, horroroso, indefinível.
Gilberto Freyre
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