3 de fevereiro de 2018

Uma hóstia para Eros


Nenhum cristianismo mais humano e mais lírico do que o português. Das religiões pagãs conservou como nenhum outro cristianismo na Europa o gosto da carne. Cristianismo em que o Menino-Deus se identificou com o próprio Cupido e a Virgem Maria e os Santos com os interesses de procriação, de geração e de amor mais do que com os de castidade e de ascetismo. Os azulejos animaram-se de formas quase afrodisíacas nos claustros dos conventos e nos rodapés das sacristias. De figuras nuas. De meninozinhos-Deus em que as freiras adoraram muitas vezes o deus pagão do amor de preferência ao Nazareno triste e cheio de feridas que morreu na cruz. Uma delas, sóror Violante do Céu, foi quem comparou o Menino Jesus a Cupido:

Pastorzillo divino
que matas de amor
Ay, tened no flecheis,
No tereis, nó,
Que no caben más flechas
En mi coraçon!
Mas tirad, y flachadme
Matadme d'amor,
que nó quiro más vida
Que morir por vós!

No culto ao Menino Jesus, à Virgem, aos Santos, reponta sempre no cristianismo português a nota idílica e até sensual. O amor ou o desejo humano. Influência do maometanismo parece que favorecida pelo clima doce e como que afrodisíaco de Portugal. É Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. É São Gonçalo do Amarante só faltando tornar-se gente para emprenhar as mulheres estéreis que o aperreiam com promessas e fricções. É São João Batista festejado no seu dia como se fosse um rapaz bonito e namorador, solto entre moças casadouras, que até lhe dirigem pilhérias:

Donde vindes, São João,
que vindes tão molhadinho?

Ou

Donde vindes, ó Batista,
que cheirais a alecrim?

E os rapazes ameaçam de pancadas o santo protetor de namoros e idílios:

As moças não me querendo
Dou pancadas no santinho.

Impossível conceber-se um cristianismo português ou luso-brasileiro sem essa intimidade entre o devoto e o santo. Com Santo Antônio chega a haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se peteca em festas de igreja dos tempos coloniais.
Em Portugal, como no Brasil, enfeitam-se de teteias, de joias, de braceletes, de brincos, de coroas de ouro e diamante as imagens das virgens queridas ou dos meninos-Deus como se fossem pessoas da família. Dão-se-lhes atributos humanos de rei, de rainha, de pai, de mãe, de filho, de namorado. Liga-se cada um deles a uma fase da vida doméstica e íntima.
(...)
Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio, São João, São Gonçalo do Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom Sucesso, do Bom Parto. Nem os santos guerreiros como São Jorge, nem os protetores da população contra a peste como São Sebastião ou contra fome como Santo Onofre - santos cuja popularidade corresponde a experiências dolorosamente portuguesas - elevaram-se nunca à importância ou ao prestígio dos outros patronos do amor humano e da fecundidade agrícola. Importância e prestígio que se comunicaram ao Brasil, onde os problemas do povoamento, tão angustiosos em Portugal, prolongaram-se através das dificuldades da colonização com tão fracos recursos  de gente. Uma das primeiras festas meio populares, meio de igreja, que nos falam as crônicas coloniais do Brasil é a de São João já com as fogueiras e as danças. Pois as funções desse popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se ligam até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência:

Dai-me noivo, São João, dai-me noivo,
dai-me noivo, que me quero casar.

As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de São João, festejado a foguetes, busca-pés e vivas, visam no Brasil, como em Portugal, a união dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e não se encontrou ainda. No Brasil faz-se a sorte da clara de ovo dentro do copo de água; a da espiga de milho que se deixa debaixo do travesseiro, para ver em sonho quem vem comê-la; a da faca que de noite se enterra até o cabo na bananeira para de manhã cedo decifrar-se sofregamente a mancha ou a nódoa na lâmina; a da bacia de água, a das agulhas, a do bochecho. Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antônio. Por exemplo: as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos associados às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil. É a imagem desse santo que frequentemente se pendura de cabeça para baixo dentro da cacimba ou do poço para que atenda às promessas o mais breve possível. Os mais impacientes colocam-na dentro de urinóis velhos. São Gonçalo do Amarante presta-se a sem-cerimônias ainda maiores. Ao seu culto é que se acham ligadas as práticas mais livres e sensuais. Às vezes até safadezas e porcarias. Atribuem-lhe a especialidade de arrumar marido ou amante para as velhas como a São Pedro a de casar as viúvas. Mas quase todos os amorosos recorrem a São Gonçalo:

Casai-me, casai-me,
São Gonçalinho,
Que hei de rezar-vos,
Amigo santinho.

Exceção só das moças:

São Gonçalo do Amarante,
Casamenteiro das velhas,
Por que não casais as moças?
Que mal vos fizeram elas?

Gente estéril, maninha, impotente, é a São Gonçalo que se agarra nas suas últimas esperanças. Antigamente no dia da sua festa dançava-se dentro das igrejas - costume que de Portugal comunicou-se ao Brasil. Dançou-se e namorou-se muito nas igrejas coloniais do Brasil. Representaram-se comédias de amor. Em uma de suas pastorais, recomendava-se em 1726 aos padres de Pernambuco D. frei José Fialho, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo de Olinda: "não consintão que se fação comedias, colloquios, representações nem bailes dentro de alguma Egreja, capella, ou seus adros". Isto em princípios do século XVIII. De modo que talvez não exagere Le Gentil de la Barbinais ao descrever-nos as festas do Natal de 1717 que teria presenciado no convento de freiras de Santa Clara na Bahia. Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor.
Em Pernambuco parece ter D. frei José Fialho clamado em vão porque em princípio do século XIX Tollenare soube, no Recife, que ainda se dançava da igreja de São Gonçalo de Olinda. Só em 1817 os cônegos proibiram tais danças "porque os europeus as censuravam como uma indecência indigna do templo de Deus". Na Bahia dançava-se dia de São Gonçalo não só no convento do Desterro como na ermida de Nazaré, na igreja de São Domingos, na do Amparo, em várias outras. E mesmo depois da proibição das danças, continuou o namoro nas igrejas. Até nas da Corte. Max Radiguet ainda alcançou as moças das melhores famílias do Rio de Janeiro namorando com os rapazes na Capela Imperial: "sentadas à turca em tapetes conversavam com eles no lugar sagrado". Namorando e tomando sorvete nas igrejas exatamente como noventa anos depois nas confeitarias e nas praias.
Mas outros característicos pagãos do culto de São Gonçalo conservam-se em Portugal. Entre outros, as enfiadas de rosários fálicos fabricados de massa doce e vendidos e "apregoados em calão fescenino" - informa Luís Chaves - pelas doceiras à porta das igrejas. E já nos referimos ao costume das mulheres estéreis de se friccionarem "desnudadas", pelas pernas da imagem jacente do Bem-Aventurado, "enquanto os crentes rezam baixinho e não erguem os olhos para o que não devem ver". A fricção sexual dos tempos pagãos acomodada a formas católicas.
(...)
A festa de São Gonçalo do Amarante a que La Barbinais assistiu na Bahia no século XVIII surge-nos das páginas do viajante francês com todos os traços dos antigos festivais pagãos. Festivais não só de amor, mas de fecundidade. Danças desenfreadas em redor da imagem do santo. Danças em que o viajante viu tomar parte o próprio vice-rei, homem já de idade, cercado de frades, fidalgos, negros. E de todas as marafonas da Bahia. Uma promiscuidade ainda hoje característica das nossas festas de igreja. Violas tocando. Gente cantando. Barracas. Muita comida. Exaltação sexual. Todo esse desadoro - por três dias e no meio da mata. De vez em quando, hinos sacros. Uma imagem do santo tirada do altar andou de mão em mão, jogada como uma peteca de um lado para outro. Exatamente - notou La Barbinais - "o que outrora faziam os pagãos num sacrifício especial anualmente oferecido a Hércules, cerimônia na qual fustigavam e cobriam de injúrias as imagens do semideus. Festa evidentemente já influenciada, essa de São Gonçalo, na Bahia, por elementos orgiásticos africanos que teria absorvido no Brasil. Mas o resíduo pagão característico, trouxera-o de Portugal o colonizador branco no seu cristianismo lírico, festivo, de procissões alegres com as figuras de Baco, Nossa Senhora fugindo para o Egito, Mercúrio, Apolo, o Menino Deus, os Doze Apóstolos, sátiros, ninfas, anjos, patriarcas, reis e imperadores dos ofícios; e só no fim o Santíssimo Sacramento". 
Não foram menos faustosas nem menos pagãs as grandes procissões no Brasil colonial. Froger notou na do Corpus Christi, na Bahia, músicos, bailarinos e mascarados em saracoteios lúbricos. E uma que se realizou em Minas em 1733 foi uma verdadeira parada de paganismo ao lado dos símbolos do cristianismo. Turcos e cristãos. A Serpente do Éden. Os quatro pontos cardeais. A lua rodeada de ninfas. E no fim, uma verdadeira consagração das raças de cor: caiapós e negros congos dançando à vontade as suas danças gentílicas e orgiásticas em honra dos santos e do Santíssimo. (...) A festa de igreja no Brasil, como em Portugal, é o que pode haver de menos nazareno no sentido detestado por Nietzsche.

Gilberto Freyre

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