Isso aí, suponho, é matutado pelo tatu, e se não escapa do
interior das placas de sua couraça, em termos de português, é porque o tatu
ignora sabiamente os idiomas humanos, sem exceção, além de não acreditar em
audiência civilizada para seus queixumes. A armadura dos bípedes é ainda mais
invulnerável que a dele, e não há sensibilidade para a dor ou a problemática do
tatu.
Meu amigo andou pelas encostas do Corcovado, em noite de
prata lunal, e conseguiu, por artimanhas só dele sabidas, capturar vivo um tatu
distraído. É, distraído. Do contrário não o pegaria. Estava imóvel, estático,
fruindo o banho de luz na folhagem, essa outra cor que as cores assumem debaixo
da poeira argentina da Lua. Esquecido das formigas, que lhe cumpria pesquisar e
atacar, como quem diz, diante de um motivo de prazer: “Daqui a pouco eu vou
trabalhar; só um minuto mais, alegria da vida”, quedou-se à mercê de inimigos
maiores. Sem pressentir que o mais temível deles andava por perto, em horas
impróprias à deambulação de um professor universitário.
— Mas que diabo você foi fazer naqueles matos, de madrugada?
— Nada. Estava sem sono, e gosto de andar a esmo, quando
todos roncam.
Sem sono e sem propósito de agredir o reino animal, pois é
de feitio manso, mas o velho instinto cavernal acordou nele, ao sentir qualquer
coisa a certa distância, parecida com a forma de um bicho. Achou logo um cipó
bem forte, pedindo para ser usado na caça; e jamais tendo feito um laço de
caçador, soube improvisá-lo com perícia de muitos milhares de anos (o que a
universidade esconde, nas camadas profundas do ser, e só permite que venha
aflorar em noite de lua cheia!).
Aproximou-se sutil, laçou de jeito o animal desprevenido. O
coitado nem teve tempo de cravar as garras no laçador. Quando agiu, já este,
num pulo, desviara o corpo. Outra volta no laço. E outra. Era fácil para o tatu
arrebentar o cipó com a força que a natureza depositou em suas extremidades.
Mas esse devia ser um tatu meio parvo, e se embaraçou em movimentos frustrados.
Ou o narrador mentiu, sei lá. Talvez o tenha comprado numa dessas casas de
suplício que há por aí, para negócio de animais. Talvez na rua, a um vendedor
de ocasião, quando tudo se vende, desde o mico à alma, se o pm não ronda perto.
Não importa. O caso é que meu amigo tem em sua casa um tatu
que não se acomodou ao palmo de terra nos fundos da casa e tratou de abrigar
longa escavação que o conduziu a uma pedreira, e lá faz greve de fome. De lá
não sai, de lá ninguém o tira. A noite perdeu para ele seu encanto luminoso. A
ideia de levá-lo para o zoológico, aventada pela mulher do caçador, não
frutificou. Melhor reconduzi-lo a seu habitat, mas o tatu se revela
profundamente contrário a qualquer negociação com o bicho humano, que pensa em
apelar para os bombeiros a fim de demolir o metrô tão rapidamente feito, ao
contrário do nosso, urbano, e salvar o infeliz. O tatu tem razões de sobra para
não confiar no homem e no luar do Corcovado.
Não é fábula. Eu compreendo o tatu.
Carlos Drummond de Andrade
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