7 de maio de 2021

A ideologia totalitária


Embora o racismo e o comunismo tenham se tornado as ideologias decisivas do século XX, não eram, em princípio, "mais totalitárias" do que as outras; isso aconteceu porque os elementos da experiência nos quais originalmente se baseavam — a luta entre as raças pelo domínio do mundo, e a luta entre as classes pelo poder político nos respectivos países — vieram a ser politicamente mais importantes que os das outras ideologias. Nesse sentido, a vitória ideológica do racismo e do comunismo sobre todos os outros ismos já estava definida antes que os movimentos totalitários se apoderassem precisamente dessas ideologias. Por outro lado, todas as ideologias contêm elementos totalitários, mas estes só se manifestam inteiramente através de movimentos totalitários — o que nos dá a falsa impressão de que somente o racismo e o comunismo são de caráter totalitário. Mas, no fundo, é a verdadeira natureza de todas as ideologias que se revelou no papel que a ideologia desempenhou no mecanismo do domínio totalitário. Vistas desse ângulo, surgem três elementos especificamente totalitários, peculiares de todo pensamento ideológico.
Em primeiro lugar, na pretensão de explicação total, as ideologias têm a tendência de analisar não o que é, mas o que vem a ser, o que nasce e passa. Em todos os casos, elas estão preocupadas unicamente com o elemento de movimento, isto é, a história no sentido corrente da palavra. As ideologias sempre se orientam na direção da história, mesmo quando, como no caso do racismo, parecem partir da premissa da natureza; nesse caso, a natureza serve apenas para explicar as questões históricas e reduzi-las a elementos da natureza. A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos — a explanação total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro. Em segundo lugar, o pensamento ideológico, nessa capacidade, liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer. Assim, o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade "mais verdadeira" que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia, por aquela doutrinação ideológica particular que é ensinada nas instituições educacionais, estabelecidas exclusivamente para esse fim, para treinar os "soldados políticos" nas Ordensburgen do nazismo ou nas escolas do Comintern e do Cominform. A propaganda do movimento totalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade; procura sempre injetar um significado secreto em cada evento público tangível e farejar intenções secretas atrás de cada ato político público. Quando chegam ao poder, os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas. O conceito de inimizade é substituído pelo conceito de conspiração, e isso produz uma mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em seus próprios termos — a verdadeira inimizade ou a verdadeira amizade — mas automaticamente se presume que ela significa outra coisa.
Em terceiro lugar, como as ideologias não têm o poder de transformar a realidade, conseguem libertar o pensamento da experiência por meio de certos métodos de demonstração. O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade. A dedução pode ser lógica ou dialética: num caso ou no outro, acarreta um processo de argumentação que, por pensar em termos de processos, supostamente pode compreender o movimento dos processos sobre-humanos, naturais ou históricos. Atinge-se a compreensão pelo fato de a mente imitar, lógica ou dialeticamente, as leis dos movimentos "cientificamente" demonstrados, aos quais ela se integra pelo processo de imitação. A argumentação ideológica, sempre uma espécie de dedução lógica, corresponde aos dois elementos das ideologias que mencionamos acima — o elemento do movimento e o elemento da emancipação da realidade e da experiência —, primeiro, porque o movimento do pensamento não emana da experiência, mas gera-se a si próprio e, depois, porque transforma em premissa axiomática o único ponto que é tomado e aceito da realidade verificada, deixando, daí em diante, o subsequente processo de argumentação inteiramente a salvo de qualquer experiência ulterior. Uma vez que tenha estabelecido a sua premissa, o seu ponto de partida, a experiência já não interfere com o pensamento ideológico, nem este pode aprender com a realidade.
O expediente que ambos os governantes totalitários usaram para transformar suas respectivas ideologias em armas, com as quais cada um dos seus governados podia obrigar-se a entrar em harmonia com o movimento do terror, era enganadoramente simples e imperceptível: levavam-nas mortalmente a sério e orgulhavam-se, um, do seu supremo dom de "raciocínio frio como o gelo" (Hitler), e o outro, da "impiedade da sua dialética", e passaram a levar as implicações ideológicas aos extremos da coerência lógica que, para o observador, pareciam despropositadamente "primitivos" e absurdos: a "classe agonizante" consistia em pessoas condenadas à morte; as raças "indignas de viver" eram pessoas que iam ser exterminadas. Quem concordasse com a existência de "classes agonizantes" e não chegasse à consequência de matar os seus membros, ou com o fato de que o direito de viver tinha algo a ver com a raça e não deduzisse que era necessário matar as "raças incapazes", evidentemente era ou estúpido ou covarde. Essa lógica persuasiva como guia da ação impregna toda a estrutura dos movimentos e governos totalitários. Deve-se exclusivamente a Hitler e a Stálin, que, embora não acrescentassem um único pensamento novo às ideias e aos slogans de propaganda dos seus movimentos, só por isso merecem ser considerados ideólogos da maior importância.
Esses novos ideólogos totalitários distinguiam-se dos seus predecessores por já não serem atraídos basicamente pela "ideia" da ideologia — a luta de classes e a exploração dos trabalhadores, ou a luta de raças e a proteção dos povos germânicos — mas sim pelo processo lógico que dela pode ser deduzido. Segundo Stálin, nem a ideia nem a oratória mas "a força irresistível da lógica subjugava completamente o público" [de Lênin]. Verificou-se que a força, que Marx julgava surgir quando a ideia se apossava das massas, residia não na própria ideia, mas no seu processo lógico, que, "como um poderoso tentáculo, nos aperta por todos os lados, como num torno, e de cujo controle não temos a força de sair; ou nos entregamos, ou nos resignamos à mais completa derrota". Essa força somente se manifesta quando está em jogo a realização dos objetivos ideológicos, a sociedade sem classes ou a raça dominante. No processo da realização, a substância original que servia de base às ideologias no tempo em que buscavam atrair as massas — a exploração dos trabalhadores ou as aspirações nacionais da Alemanha — gradualmente se perde, como que devorada pelo próprio processo: em perfeita consonância com o "raciocínio frio" e a "irresistível força da lógica", os trabalhadores perderam, sob o domínio bolchevista, até mesmo aqueles direitos que haviam tido sob a opressão czarista, e o povo alemão sofreu um tipo de guerra que não tinha a mais leve ligação com as necessidades mínimas de sobrevivência da nação alemã. É da natureza das políticas ideológicas — e não simples traição cometida em benefício do egoísmo ou do desejo do poder — que o verdadeiro conteúdo da ideologia (a classe trabalhadora ou os povos germânicos), que originalmente havia dado azo à "ideia" (a luta de classes como lei da história, ou a luta de raças como lei da natureza), seja devorado pela lógica com que a "ideia" é posta em prática.
O preparo das vítimas e dos carrascos, que o totalitarismo requer em lugar do princípio de ação de Montesquieu, não é a ideologia em si — o racismo ou o materialismo dialético —, mas a sua lógica inerente. Nesse ponto, o argumento mais persuasivo — argumento muito do gosto de Hitler e de Stálin — é: não se pode dizer A sem dizer B e C, e assim por diante, até o fim do mortífero alfabeto. Parece ser esta a origem da força coerciva da lógica: emana do nosso pavor à contradição. Quando o expurgo bolchevista faz com que as vítimas confessem delitos que nunca cometeram, confia principalmente nesse medo básico e argumenta da seguinte forma: todos concordamos com a premissa de que a história é uma luta de classes e com o papel do Partido nessa luta. Sabemos, portanto, que, do ponto de vista histórico, o Partido sempre tem razão (nas palavras de Trótski, "só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos concede outro meio de termos razão"). Neste momento histórico, que obedece à lei da história, certos crimes certamente serão cometidos, e o Partido, conhecendo a lei da história, deve puni-los. Para esses crimes, o Partido necessita de criminosos; pode suceder que o Partido, conhecendo os crimes, não conheça inteiramente os criminosos; porém, mais importante que ter certeza quanto aos criminosos é punir os crimes, porque, sem essa punição, a História não poderia progredir, e até mesmo o seu curso poderia ser tolhido. Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo Partido para desempenhar o papel de criminoso — de qualquer forma, és objetivamente um inimigo do Partido. Se não confessares, deixarás de ajudar a História através do Partido, e te tornarás um verdadeiro inimigo. A força coerciva do argumento é: se te recusas, te contradizes e, com essa contradição toda a tua vida perde o sentido; pois o A que pronunciaste domina toda a tua vida através das consequências do B e do C que se lhe seguem logicamente.
Para a limitada mobilização das pessoas, que nem ele pode dispensar, o governante totalitário conta com a compulsão que nos impele para a frente; essa compulsão interna é a tirania da lógica, contra a qual nada se pode erguer senão a grande capacidade humana de começar algo novo. A tirania da lógica começa com a submissão da mente à lógica como processo sem fim, no qual o homem se baseia para elaborar os seus pensamentos. Através dessa submissão, ele renuncia à sua liberdade interior, tal como renuncia à liberdade de movimento quando se curva a uma tirania externa. A liberdade, como capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do mesmo modo que a liberdade como realidade política equivale a um espaço que permita o movimento entre os homens. Contra o começo, nenhuma lógica, nenhuma dedução convincente pode ter qualquer poder, porque o processo da dedução pressupõe o começo sob forma de premissa. Tal como o terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz, também a força autocoerciva da lógica é mobilizada para que ninguém jamais comece a pensar — e o pensamento, como a mais livre e a mais pura das atividades humanas, é exatamente o oposto do processo compulsório de dedução. O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria força de vontade do homem para forçá-lo a mergulhar naquele gigantesco movimento da História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora nascimento ou morte.
Por um lado, a compulsão do terror total — que, com o seu cinturão de ferro, comprime as massas de homens isolados umas contra as outras e lhes dá apoio num mundo que para elas se tornou um deserto — e, por outro, a força autocoerciva da dedução lógica — que prepara cada indivíduo em seu isolamento solitário contra todos os outros — correspondem uma à outra e precisam uma da outra para acionar o movimento dominado pelo terror e conservá-lo em atividade. Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e meramente tirânica, arruína todas as relações entre os homens, também a autocompulsão do pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia; pois, juntamente com esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).
 
Hannah Arendt

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