5 de março de 2021

Papéis e receitas


A vida cotidiana é constituída por sistemas de rotinas de interação entre pessoas, coisas e instituições. Interação, como o nome indica, tem a ver com ações recíprocas: o que fazemos com as coisas e o que elas fazem conosco, o que fazemos com as pessoas e o que elas fazem conosco, o que fazemos com as instituições e o que elas fazem conosco. Mundo essencialmente prático, definido pelas relações de uso e programado segundo uma lógica estrutural. Apenas uma ilustração. Se estamos viajando e nosso companheiro, estranho, nos pergunta, como início de conversa: "O que é o senhor?" Nossa resposta: "Sou uma pessoa estranha. Não me entendo a mim mesmo. Meio neurótica. Frequentemente tenho pesadelos. Gosto de guiar em alta velocidade porque isto me dá uma sensação de liberdade. Gosto de orquídeas e tenho dois cachorros. Sou louco por Scarlatti. E além disto tenho medo de morrer". É muito provável que nosso amigo se encolhesse assustado e que a conversa parasse aí. Não era esta a resposta que ele esperava. Ah! Mas que grande papo teria começado se disséssemos: "Sou professor" ou "Sou agente funerário". Qual o problema na primeira resposta? Muito embora ela fosse a mais autêntica e honesta, ela não contou ao meu vizinho o que faço. Não me definiu como papel, como conjunto de comportamentos práticos ajustados ao sistema social. No mundo do cotidiano somos o que fazemos. Papéis são uniformes que usamos. E frequentemente papéis chegam a definir a nossa identidade. É necessário saber o papel do outro para saber que tipo de comportamento devo adotar. Para reis, "Vossa Majestade", para alto dignitários, "Vossa Excelência", para garçons, "Ei..." Papéis simplificam o comportamento, por simplificar o outro. Livram-nos do problema de encontrar cada pessoa com um Tu único e reduzem os homens a tipos, havendo para cada um deles uma receita precisa acerca do que fazer. Isto é válido para toda a realidade social. As rotinas sociais são, na realidade, um conjunto de receitas que programam nosso agir e pensar. Há receitas para todas as coisas, que vão desde como pegar no garfo até como morrer com dignidade. Esta é uma realidade objetiva, rotineira, previsível, resistente a mudanças, e que pode ser estudada como se fosse uma coisa.

Rubem Alves

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