6 de janeiro de 2021

Trabalho (extra)ordinário


Em nossa sociedade, a maioria das pessoas estão insatisfeitas com o trabalho que fazem e veem a recreação como o principal objetivo de suas vidas. Assim, o trabalho tornou-se o oposto do lazer, que é servido por uma gigantesca indústria concentrada na produção de aparelhos que consomem recursos e energia - jogos eletrônicos, barcos de corrida, trenós e patins - e que exorta as pessoas a um consumo cada vez mais esbanjador.
No que se refere ao status das diferentes espécies de trabalho, há uma interessante hierarquia em nossa cultura. O trabalho com status mais baixo tende a ser o mais "entrópico", isto é, aquele em que a evidência tangível do esforço é mais facilmente destruída. Trata-se do trabalho feito repetidamente, sem deixar um impacto duradouro - preparar refeições que são imediatamente consumidas, varrer o chão das fábricas, que logo estará sujo de novo, cortar sebes e gramados que não param de crescer. Em nossa sociedade, como em todas as culturas industriais, às tarefas que envolvem um trabalho altamente entrópico - serviços domésticos, serviços de reparações e consertos, agricultura - é atribuído o mais baixo status, e são elas as atividades a que são destinados os mais baixos salários, embora todas sejam essenciais à nossa existência cotidiana. Esses trabalhos são geralmente confiados a grupos minoritários e a mulheres. Os trabalhos com status mais elevados envolvem tarefas que criam algo duradouro - arranha-céus, aviões supersônicos, foguetes espaciais, ogivas nucleares e todos os outros produtos de alta tecnologia. É também concedido um status elevado a todo trabalho administrativo ligado à alta tecnologia, por mais enfadonho que possa ser.
Essa hierarquia de trabalho é exatamente a inversa à das tradições espirituais. Aí, o trabalho de elevada entropia é altamente apreciado e desempenha um papel significativo no ritual cotidiano da prática espiritual. Os monges budistas consideram a culinária, a jardinagem ou o asseio da casa parte de suas atividades meditativas, e os frades e freiras cristãos têm uma longa tradição na agricultura, na enfermagem e em outros serviços. Parece que o alto valor espiritual atribuído ao trabalho entrópico nessas tradições provém de uma profunda consciência ecológica. Executar um trabalho que tem de ser feito repetidamente ajuda-nos a reconhecer os ciclos naturais de crescimento e declínio, de nascimento e morte, e a adquirir, portanto, consciência da ordem dinâmica do universo. O trabalho "ordinário", como o significado do radical da palavra indica, está em harmonia com a ordem que percebemos no meio ambiente natural.
Tal consciência ecológica perdeu-se em nossa cultura atual, onde o valor mais alto foi associado ao trabalho que cria algo "extraordinário", algo fora da ordem natural. Não surpreende que a maior parte desse trabalho altamente valorizado esteja agora gerando tecnologias e instituições extremamente perniciosas para o meio ambiente natural e social. O que se faz necessário, portanto, é rever o conceito e a prática de trabalho de tal maneira que se torne significativo e gratificante para cada trabalhador, útil para a sociedade e parte da ordem harmoniosa do ecossistema. Reorganizar e praticar nosso trabalho desse modo permitir-nos-á reconquistar sua essência espiritual.

Fritjof Capra

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