26 de agosto de 2019

Homo imaginativus


Nos animais, a experiência se esgota com as informações que seus sentidos captam do mundo exterior. Por isto, não podem eles suspeitar que o possível seja maior que o real. Realidade e possibilidade se identificam. Ou mais precisamente, os limites do real denotam os limites do possível. Protótipos de realismo. Por isto, não podem transcender o seu mundo. Resta-lhes apenas a alternativa de ajustamento e adaptação às condições dadas. Com o homem não é assim. Há, dentro dele, um reduto de resistência, uma parcela do eu que se recusa a socializar-se, que se recusa em aceitar como final o veredito da realidade. Assim, quando as informações do mundo exterior lhe dizem: "Assim são as coisas!" ele retruca: "Mas serão mesmo? não será possível que elas venham a ser de forma diferente?" O homem é, assim, um ser dividido. Se a sua consciência lhe diz como é o mundo, esta mesma consciência se recusa a sacralizá-lo. O que é não pode ser verdade. Este fenômeno único que Durkheim descreveu como sendo a capacidade de "conceber o ideal, de acrescentar algo ao real", essência da religião, assim, se nos revela como uma recusa de promover ao status de realidade última a ordem instaurada, seja a ordem natural, seja a organização da civilização. A essência do realismo que, em nome da realidade objetiva, bania a religião como ilusão, não está em sua aparente irreligiosidade, mas antes na sua sistemática transformação de fatos em valores. Mas é exatamente isto que a imaginação se recusa a fazer. A imaginação só se torna compreensível se percebemos que ela se constrói a partir de uma suspeita de que é provável que os limites do possível sejam muito mais extensos que os limites do real. A imaginação é a consciência de uma ausência, a saudade daquilo que ainda não é, a declaração de amor pelas coisas que ainda não nasceram. Dar nome às coisas que estão ausentes é quebrar o feitiço daquelas que estão presentes. 

Rubem Alves

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