3 de março de 2018

Manual do bom escravocrata


Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. E porque comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que outros e de forças muito diferentes, se há de fazer a repartição com reparo e escolha, e não às cegas. Os que vêm para o Brasil são ardas, minas, congos, de São Tomé, de Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique, que vêm nas naus da Índia. Os ardas e os minas são robustos. Os de Cabo Verde e de São Tomé são mais fracos. Os de Angola, criados em Luanda, são mais capazes de aprender ofícios mecânicos que os das outras partes já nomeadas. Entre os congos, há também alguns bastantemente industriosos e bons não somente para o serviço da cana, mas para as oficinas e para o meneio da cana.
Uns chegaram ao Brasil muito rudes e muito fechados e assim continuam por toda a vida. Outros, em poucos anos saem ladinos e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida e para se lhes encomendar um barco, para levarem recados e fazerem qualquer diligência das que costumam ordinariamente ocorrer. As mulheres usam de foice e de enxada, como os homens; porém, nos matos, somente os escravos usam de machado. Dos ladinos, se faz escolha para caldeireiros, carapinas, calafates, tacheiros, barqueiros e marinheiros, porque estas ocupações requerem maior advertência. Os que desde novatos se meteram em alguma fazenda, não é bem que se tirem dela contra sua vontade, porque facilmente se amofinam e morrem. Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde pequenos em casa dos brancos, afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si; e levando bom cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais.
Melhores ainda são, para qualquer ofício, os mulatos; porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, são soberbos e viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E, contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque, com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e, talvez, dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a repreendê-los: antes, todos os mimos são seus. E não é fácil cousa decidir se nesta parte são mais remissos os senhores ou as senhoras, pois não falta entre eles e elas quem se deixe governar de mulatos, que não são os melhores, para que se verifique o provérbio que diz: que o Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas; salvo quando, por alguma desconfiança ou ciúme o amor se muda em ódio e sai armado de todo o gênero de crueldade e rigor. Bom é valer-se de suas habilidades quando quiserem usar bem delas, como assim o fazem alguns; porém não se lhes há de dar tanto a mão que peguem o braço, e de escravos se façam senhores. Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem, raras vezes sai de outras minas que dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e, depois de forras, continuam a ser a ruína de muitos.
Opõem-se alguns senhores aos casamentos dos escravos e escravas, e não somente não fazem caso dos seus amancebamentos, mas quase claramente os consentem, e lhes dão princípio, dizendo: Tu, fulano, a seu tempo, casarás com fulana; e daí por diante os deixam conversar por si como se já fossem recebidos por marido e mulher; e dizem que os não casam porque temem que, enfadando-se do casamento, se matem logo com peçonha ou com feitiços, não faltando entre eles mestres insígnes nesta arte. Outros, depois de estarem casados os escravos, os apartam de tal sorte, por anos que ficam como se fossem solteiros, o que não podem fazer em consciência. Outros, são tão pouco cuidadosos do que pertence à salvação dos seus escravos, que os têm por muito tempo no canavial ou no engenho, sem batismo; e, dos batizados, muitos não sabem quem é seu Criador, o que hão de crer, que lei hão de guardar, como se hão de encomendar a Deus, a que vão os cristãos à igreja, por que adoram a hóstia consagrada, que vão a dizer ao padre, quando ajoelham e lhe falam aos ouvidos, se têm alma, e se ela morre, e para onde vai, quando se aparta do corpo. E, sabendo logo os mais boçais como se chama e quem é seu senhor, quantas covas de mandioca hão de plantar cada dia, quantas mãos de cana hão de cortar, quantas medidas de lenha hão de dar, e outras cousas pertencentes ao serviço ordinário de seu senhor, e sabendo também pedir-lhe perdão, quando erraram e encomendar-se-lhe para que não os castigue, com prometimento da emenda, dizem os senhores que estes não são capazes de aprender a confessar-se, nem de pedir perdão a Deus, nem de rezar pelas contas, nem de saber os dez mandamentos; tudo por falta de ensino, e por não considerarem a conta grande que de tudo isto hão de dar a Deus, pois (como diz São Paulo), sendo cristãos e descuidando-se dos seus escravos, se hão com eles pior do que se fossem infiéis. Nem os obrigam os dias santos a ouvir missa, antes talvez os ocupam de sorte que não têm lugar para isso; nem encomendam ao capelão doutriná-los, dando-lhe por este trabalho, se for necessário, maior estipêndio.
O que pertence ao sustento, vestido e moderação do trabalho, claro está, que se lhes não deve negar, porque a quem o serve deve o senhor de justiça, dar suficiente alimento, mezinhas na doença e modo com que decentemente se cubra e vista, como pede o estado de servo, e não aparecendo quase nu pelas ruas; e deve também moderar o serviço de sorte que não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que possam aturar. No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano. E, posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um valão que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor, e sela e freio dourado.
Dos escravos novos se há de ter maior cuidado, porque ainda não têm modo de viver, como os que tratam de plantar suas roças; e os que as têm por sua indústria, não convém que sejam só reconhecidos por escravos na repartição do trabalho e esquecidos na doença e na farda. Os domingos e dias santos de Deus, eles os recebem, e quando seu senhor lhos tira e os obriga a trabalhar, como nos dias de serviço, se amofinam e rogam mil pragas. Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana, para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor, para que não descuidem; e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia, e de noite com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de Deus sem castigo? Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é negá-la a Cristo Senhor nosso, como Ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas, as que são ocasião da sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da serra, a quem se derrete em suor para o servir e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer? E se, em cima disto, o castigo for frequente e excessivo, ou se irão embora, fugindo para o mato, ou se matarão per si, como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas, ou chamarão de tal sorte a Deus, que os ouvirá e fará aos senhores o que já fez aos egípcios, quando anexavam com extraordinário trabalho aos hebreus, mandando as pragas terríveis contra suas fazendas e filhos, que se leem na Sagrada Escritura, ou permitirá que, assim como os hebreus foram levados cativos para a Babilônia, em pena do duro cativeiro que davam aos seus escravos, assim algum cruel inimigo leve esses senhores para suas terras, para que nelas experimentem quão penosa é a vida que eles deram e dão continuamente aos seus escravos.
Não castigar os excessos que eles cometem seria culpa não leve porém estes se hão de averiguar antes, para não castigar inocentes, e se hão de ouvir os delatados e, convencidos, castigar-se-ão com açoites moderados ou com os meter em uma corrente de ferro por algum tempo o tronco. Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre os bárbaros, muito menos entre cristãos católicos. O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo. E se, depois de errarem como fracos, vierem por si mesmos a pedir perdão ao senhor ou buscarem padrinhos que os acompanhem, em tal caso é costume, no Brasil, perdoar-lhes. E bem é que saibam que isto lhes dá de valer, porque, de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no mato, e se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los ou que algum parente tome à sua conta a vingança, ou com feitiço, ou com veneno.
Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juízes e dando-lhes algum prêmio do seu continuado trabalho. Porque se os juízes e juízas da festa houverem de gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes e ofensas a Deus, por serem poucos os que o podem licitamente ajuntar.
O que se há de evitar nos engenhos é o emborracharem-se com garapa azeda, ou água ardente, bastando conceder-lhes a garapa doce, que lhes não faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipins e batatas.
Ver que os senhores têm cuidado de dar alguma cousa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é causa de que os escravos os sirvam de boa vontade e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas. Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem.
 
André João Antonil

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