Em uma das províncias meridionais do Brasil, situada à margem do rio Uruguai, poucas léguas abaixo de São João, existe uma nação de índios completamente selvagens chamados charruas, que acampam num espaço de terra cheio de pântanos e bosques. Vivem cercados de manadas de cavalos selvagens, cuja carne preferem a qualquer outro alimento. É no meio dos caniços, quase deitados dentro da lama, que realizam seus repugnantes festins. Sua extrema sujeira criou em torno deles mil anedotas exageradas que me absterei de contar, embora andem em todas as bocas da região. Sua única vestimenta é o bicuis (espécie de pequeno calção extremamente curto) e seu principal ornamento consiste numa pasta de barro vermelho (thoia) misturada à banha de cavalo e com a qual pintam o rosto.
É somente nas províncias de São Paulo e Santa Catarina que se encontra um grande número de charruas civilizados, em sua maioria originários do Paraguai; andam quase sempre a cavalo, envolvidos em ponchos. O resto de sua vestimenta é copiado dos hispano-americanos; como estes, andam sempre armados de um grande facão preso à cinta ou simplesmente enfiado numa das botas. O comércio de animais constitui sua principal ocupação; muitas vezes, também, com o nome de peões, servem de guia aos viajantes que percorrem essas províncias.
Tão intrépidos a pé quanto a cavalo, não hesitam em atacar a onça, o braço esquerdo envolvido no poncho e recoberto de um pedaço de couro que, como uma espécie de avental, faz parte de sua indumentária. Assim preparados para o combate, marcham ao encontro do animal e o desafiam com seu grande facão na mão direita. O caçador, confiando na sua admirável experiência, ao atacar o perigoso adversário corpo a corpo, apresenta o braço esquerdo e, no momento que a onça pula para abocanhá-lo, mergulha-lhe o facão no peito e mata-a no primeiro golpe.
Esse gênero de combate é-lhes tão familiar que estão sempre dispostos a arranjar uma soberba pele de onça por apenas cinco francos (um patacão); é um "extraordinário" de que se valem para seus divertimentos, pouco variados, em verdade, e que consistem em frequentar as tabernas, onde fumam, bebem cachaça e jogam cartas, prazer este que sempre termina em facadas.
Embora dados à embriaguez, ao roubo e ao assassínio, são suscetíveis de uma fidelidade inalterável quando contratados para uma escolta de proteção.
Ao viajante que se expõe, nessas regiões, aos perigos de uma longa caminhada através dos desertos, o peão aguerrido é indispensável. Por isso, logo à primeira requisição do estrangeiro, procuram trazer-lhe um e lhe apresentam um indivíduo cujo aspecto não deixa dúvidas quanto à força e à audácia. Os amigos que o cercam acrescentam uma recomendação tranquilizadora: "É um homem para dez". Sendo a caravana numerosa e precisando de dois guias, o primeiro contratado tem o direito de escolher o companheiro. Cabe à generosidade do viajante determinar a recompensa pecuniária que lhes deve ser concedida. Mas já se conhecem os hábitos e sabe-se que para uma longa travessia o preço habitual é de oitenta francos para cada um (um dobrão), o que os satisfaz; nada exigem adiantado.
No caminho, o peão marcha à frente do patrão, sonda o terreno e, ante qualquer obstáculo que se apresente, ou qualquer animal perigoso, se expõe generosamente em primeiro lugar. Não é preciso preocupar-se com a alimentação desse fiel companheiro de viagem, sempre munido de uma pequena provisão de aguardente e de fumo suficiente para a jornada; ao cair da noite, atravessando os campos cheios de rebanhos pastando em liberdade, ele pega um boi a laço e, depois de matá-lo, corta um pedaço do filé, que envolve num naco de pele ainda quente, abandonando o resto do animal às feras. Chegando-se ao lugar escolhido para o acampamento da noite, o guia trata de arranjar a cozinha; para isso, principia por cavar a terra e fazer um pequeno buraco de mais ou menos um pé e meio de profundidade; enche-o, a seguir, de galhos a que põe fogo; quando essa madeira se transforma em carvão, ele coloca sobre o braseiro ardente o pedaço de carne envolvido na pele; esconde tudo sob outros ramos, e ateia novamente fogo. Essa carne cozida assim entre duas brasas conserva todo o sabor de seu suco e nada tem a invejar aos melhores assados da Europa. Todos os viajantes repartem entre si esse jantar suculento, que os naturais do país comem sem pão.
Chegado a seu destino, o viajante paga o guia e ambos se tornam estranhos um ao outro. Em qualquer outra posição é geralmente perigoso para um viajante isolado encontrar um charrua, pois este, sempre ávido de patacões, não tem nenhum escrúpulo em assassinar o estrangeiro para apropriar-se de dinheiro ou mesmo de um simples colete que ambicione.
Jean Baptiste Debret
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