21 de outubro de 2016

Use your illusion


Pensemos ainda, em particular, na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse "folha", uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial. Denominamos um homem "honesto"; por que ele agiu hoje tão honestamente? - perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada de uma qualidade essencial, que se chamasse "a honestidade", mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora, ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: "a honestidade". A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível.
Pois mesmo nossa oposição entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da essência das coisas, mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com efeito, uma afirmação dogmática e como tal tão indemonstrável quanto seu contrário. O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas,
que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos. Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares - e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega ao sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como "vermelha", outra como "fria", uma terceira como "muda", desperta uma emoção que se refere moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em quem ninguém confia, que todos excluem, o homem demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de confiança e útil na verdade. Coloca agora seu agir como ser "racional'' sob a regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em um conceito. Ou seja, no reino daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter êxito sob o efeito das primeiras impressões intuitivas: edificar uma ordenação piramidal por castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais sólido, o mais universal, o mais conhecido, o mais humano e, por isso, como o regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática. Quem é bafejado por essa frieza dificilmente acreditará que até mesmo o conceito, ósseo e octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o resíduo de uma metáfora, e que a ilusão da transposição artificial de um estímulo nervoso em imagens, se não é a mãe, é pelo menos a avó de todo e qualquer conceito. No interior desse jogo de dados do conceito, porém, chama-se "verdade" usar cada dado assim como ele é designado, contar exatamente seus pontos, formar rubricas corretas e nunca pecar contra a ordenação de castas e a seqüência das classes hierárquicas. Assim como os romanos e etruscos retalhavam o céu com rígidas linhas matemáticas e em um espaço assim delimitado confinavam um deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual matematicamente repartido e entende agora por exigência de verdade que cada deus conceitual seja procurado somente em sua esfera. Pode-se muito bem, aqui, admirar o homem como um poderoso gênio construtivo, que consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre água corrente um domo conceitual infinitamente complicado: - sem dúvida, para encontrar apoio sobre tais fundamentos, tem de ser uma construção como que de fios de aranha, tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, firme a ponto de não ser espedaçada pelo sopro de cada vento. Como gênio construtivo o homem se eleva, nessa medida, muito acima da abelha: esta constrói com cera, que recolhe da natureza, ele com a matéria muito mais tênue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de si mesmo. Ele é, aqui, muito admirável - mas só que não por seu impulso à verdade, ao conhecimento puro das coisas. Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la
ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o procurar e encontrar da "verdade" no interior do distrito da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: "Vejam, um animal mamífero", com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja "verdadeiro em si", efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, no fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta por um entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação. Semelhante ao astrólogo que observava as estrelas a serviço do homem e em função de sua sorte e sofrimento, assim um tal pesquisador observa o mundo inteiro como ligado ao homem, como a repercussão infinitamente refratada de um som primordial, do homem, como a imagem multiplicada de uma imagem primordial, do homem. Seu procedimento consiste em tomar o homem por medida de todas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente como objetos puros diante de si. Esquece, pois, as me­táforas intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas.
Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem, que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem mesmo não seria levado em conta, quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um novo território para sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral, na arte. Constantemente ele embaralha as rubricas e compartimentos dos conceitos propondo novas transposições, metáforas, metonímias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o homem acordado uma forma tão cromaticamente irregular, inconsequentemente incoerente, estimulante e eternamente nova como a do mundo do sonho.
O próprio homem, porém, tem uma propensão invencível a deixar-se enganar e fica como que enfeitiçado de felicidade quando o rapsodo lhe narra contos épicos como verdadeiros, ou o ator, no teatro, representa o rei ainda mais regiamente do que o mostra a efetividade. O intelecto, esse mestre do disfarce, está livre e dispensado de seu serviço de escravo, enquanto pode enganar sem causar dano, e celebra então suas Saturnais. Nunca ele é mais exuberante, mais rico, mais orgulhoso, mais hábil e mais temerário: com prazer criador ele entrecruza as metáforas e desloca as pedras-limites das abstrações, de tal modo que, por exemplo, designa o rio como caminho em movimento que transporta o homem para onde ele, do contrário, teria de ir a pé. Agora ele afastou de si o estigma da servilidade: antes empenhado em atribulada ocupação de mostrar a um pobre indivíduo, cobiçoso de existência, o caminho e os instrumentos e, como um servo, roubando e saqueando para seu senhor, ele agora se tornou senhor e pode limpar de seu rosto a expressão da indigência. O que quer que ele faça agora, tudo traz em si, em comparação com sua atividade anterior, o disfarce, assim como a anterior trazia em si a distorção. Ele copia a vida humana, mas a toma como uma boa coisa e parece dar-se por bem satisfeito com ela. Aquele descomunal arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem indigente se agarra, salvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre somente um andaime e um joguete para seus mais audazes artifícios: e quando ele o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais alheio e separando o mais próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de salvação da indigência e que agora não é guiado por conceitos, mas por intuições. Dessas intuições nenhum caminho regular leva à terra dos esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas não foi feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos de conceitos, para pelo menos através da demolição e escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder criadoramente à impressão de poderosa intuição presente.
Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais frequência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estoico instruído pela expe­riência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.

Friedrich Nietzsche

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