28 de outubro de 2016

Tortura


Trata-se de uma estranha maneira de interrogar as pessoas. Não foram, porém, simples curiosos os que a inventaram; segundo todas as aparências, esta parte da nossa legislação deve a sua origem primeira a um ladrão de estrada. Na sua maior parte, estes senhores conservam o hábito de serrar polegares, de queimar os pés e de interrogar mediante outros tormentos os que se recusam a revelar onde têm o dinheiro.
Os conquistadores, que sucederam a estes ladrões, acharam que a invenção era muito útil para os seus interesses; puseram-na em prática quando suspeitaram que haveria alguns maus desígnios contra eles, como, por exemplo, o de ser-se livre, verdadeiro crime de lesa-majestade divina e humana. Era preciso conhecer os cúmplices; e, para esse efeito, fazia-se sofrer mil mortes a todos aqueles que eram objeto de suspeitas, pois, segundo a jurisprudência desses primeiros heróis, quem quer que fosse suspeito de ter tido algum pensamento pouco respeitoso contra eles era digno de morte. Desde que assim se merece a morte, pouco importa acrescentar tormentos pavorosos durante muitos dias e até semanas; esta prática tem mesmo um não-sei-quê de Divindade. A Providência submete-nos algumas vezes à tortura empregando a pedra, areias na urina, a gota, o escorbuto, a lepra, a varíola grande ou pequena, o despedaçamento das entranhas, as convulsões de nervos e outros executantes das vinganças da Providência.
Ora, posto que os primeiros déspotas foram, segundo confissão de todos os seus cortesãos, imagens da Divindade, trataram de a imitar tanto quanto puderam.
Os franceses que passam, não sei por que, por serem um povo muito humano, admiram-se que os ingleses, que tiveram a desumanidade de nos tomarem todo o Canadá hajam renunciado ao prazer de aplicar a tortura.
Quando o cavaleiro de La Barre, neto de um tenente dos exércitos, jovem de muito espírito e grandes esperanças mas com toda a leviandade de uma juventude desenfreada, foi reconhecido culpado de ter cantado algumas canções ímpias e até de ter passado diante de uma procissão de capuchos sem tirar o chapéu, os juízes de Abbeville, pessoas comparáveis aos senadores romanos, ordenaram não só que lhe arrancassem a língua, que lhe cortassem a mão e que o queimassem lentamente, como o submeteram ainda à tortura para averiguarem precisamente quantas canções tinha cantado e quantas procissões tinha visto passar de chapéu na cabeça.
Este episódio aconteceu não nos séculos XIII ou XIV mas no século XVIII. As nações estrangeiras julgam a França pelos espetáculos, pelos romances, pelos lindos versos, pelas pequenas da ópera, cujos costumes são tão doces, pelos nossos bailarinos, que têm tanta graça, pela senhorita Clairon, que é um encanto a declamar versos. Ignoram que no fundo não há nação mais cruel que a francesa.
 
Voltaire

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