26 de outubro de 2016

Mimosa pudica


"He planta emula do Sol; em quanto elle vive, vive ella; e em se pondo, com elle se sepulta, enrolando a gala de seus ramos, quasi amortalhada em suas mesmas folhas, tornadas de cor de luto, até passar o triste da noite, e tornar o alegre do dia: segredo só do Autor que a fez".
A própria singularidade da sensitiva, independentemente de quaisquer simpatias mágicas que se lhe atribuíssem, parecia penhor seguro de maravilhosas qualidades. Da mesma forma que o gambá fornecia a muitos colonos mezinha admirável para todo achaque, pois sua cauda, pisada e misturada com água na quantidade de uma onça, era excelente contra doenças de rins, especialmente as litíases, tomada em jejum, além de curar cólicas, fazer gerar o leite, tirar espinhas, se mastigada, acelerar o parto..., que prodígios não prometia essa erva, à vista dos efeitos admiráveis que nela pôs a Providência?
De tal suspeita já se fizera intérprete Gandavo, onde escreveu: "Esta planta deve ter alguma virtude mui grande, a nós encoberta, cujo effeto nam será pela ventura de menos admiraçam. Porque sabemos de todas as hervas que Deus criou, ter cada huma particular virtude, com que fizessem diversas operações naquellas cousas pera cuja utilidade foram criadas e quanto mais esta, a que a natureza nisto tanto quiz assinalar, dando-lhe hum tam estranho ser e differente de todas as outras". Passados mais de cinquenta anos, Frei Vicente do Salvador repisava as mesmas considerações, para sugerir finalmente que esse vegetal deveria trazer em si, com certeza, alguma propriedade miraculosa comparável à do ímã, ou, como diz, da "pedra de cevar, que tem o dom de atrair o ferro". Por mais que procurassem, não conseguiram os curiosos descobrir-lhe outra propriedade miraculosa, entretanto, senão o fato de ser justamente veneno e contraveneno. Secas e desfeitas em pó, suas folhas, mesmo tomadas em pequena porção, eram mortíferas. Por outro lado não se encontrara melhor antídoto contra a fineza dessa peçonha senão a raiz da própria erva, bebida em pó ou em sumo.
Para imaginações menos rasteiramente utilitárias, bastava porém a lição moral que se poderia tirar de seu exemplo. Houve, ao menos nas Índias de Castela, quem fosse tentado a retorcer um pouco os fatos para realçar a lição. Pois, sendo certo, embora que a sensitiva reage muitas vezes ao simples movimento do ar, quanto mais ao contato de um corpo sólido, seja ele qual for, não hesitou frei Bartolomeu de Las Casas em dizer que, "si le tocamos con un palo o con otra qualquiera cosa, ningúm movimiento hace, pero si con el dedo, luego todas sus ramitas o arpaduras, y toda ella se encoge, como si fuese una cosa sensible, viva". É claro que para melhor justificar-se o conceito em que era tida de erva casta (e foi este um dos nomes que recebeu), destinada a servir de exemplo aos humanos, convinha mais que se encolhesse, mostrando seu agravo e pudor, quando tocada por homens e não tanto por coisas isentas do vício da concupiscência.
Isso concordaria melhor com a ideia, então geralmente admitida, de que a natureza se acha impregnada de mistérios e significações encobertas. Esse modo de pensar só começara a ser completamente liquidado a partir do século XVIII, quando o mundo principia a ser interpretado, de preferência, segundo critérios fornecidos pelas ciências físicas e matemáticas. Se é bem verdade, porém, que o desenvolvimento das ciências naturais acabou por desterrar a interpretação moral da natureza, não é menos exato que a viva impressão causada pelo que corria da pudicícia da sensitiva deixou sua marca na própria denominação científica ainda conservada até os nossos dias por essa mimosa.
 
Sérgio Buarque de Holanda

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