27 de outubro de 2016

Energia espiritual


- Acredita na imortalidade da natureza ou em Deus, vovô?
- Acredito nos cogumelos – replicou ele com ar astuto. – Ninguém ainda retornou do outro mundo para contar-nos como é. Talvez tenha sido imaginado para que o homem tenha medo de ser punido no outro mundo por atos cometidos neste. Talvez essa punição não exista, mas o medo que suscita já é uma punição neste mundo daqui. E desde que os homens voaram ao espaço e fotografaram a Lua e outros planetas, sem aí encontrar vestígios de outros mundos, esse medo diminuiu. E quanto menos medo, mais pecado.
- Será que realmente se pode construir tudo sobre o medo, vovô?
- Isso depende do medo a que você se refira. Se você é meu superior e eu temo você e cumpro suas ordens sem, no entanto, respeitá-lo, trata-se então de um medo mau, de um medo nocivo. É mau para você, que é meu chefe, porque jamais o amarei, e quando você morrer isso me será indiferente e não pronunciarei uma única palavra em sua memória. Também é mau para a execução de suas ordens, porque, ao sentir medo, executá-las-ei estupidamente e, ainda que essas ordens sejam inteligentes, estragarei tudo, porque sentirei medo. É particularmente mau para mim, pessoalmente, porque se sinto medo, jamais desabrocharei sob a forma de uma flor, nem tornarei a sair da terra sob a aparência de um cogumelo. Tudo o que darei será apenas uma folha de mau aspecto, apodrecida e mirrada. Finalmente, o medo é mau para o povo, porque quando alguém começa a sentir medo transmite-o aos outros, e isso acaba se constituindo num Grande Medo, semelhante a um incêndio que se propaga sem que se note e que, um dia, reduzirá tudo a cinzas. E, no entanto, há um outro tipo de medo, não imposto de fora, mas cultivado pelo próprio homem: é o medo de encontrar-se um dia diante do Juízo Final, quando será impossível dissimular o menor de seus pecados a olhos que tudo verão. É esse medo que faz com que o homem seja ou não seja um homem.
- Então, de qualquer maneira, o senhor acredita em Deus?
- Não no velho de barba branca encarapitado na capa de um livro. Eu mesmo sou um velho, meus olhos não se acostumaram a ver tudo nos outros, e até hoje nunca encontrei um velho que se enquadrasse nesse caso. Eis o que pensam vocês, os jovens, dos velhos: ou bem nos tomam por seres excessivamente estúpidos, ou bem nos honram excessivamente, acreditando-nos mais sábios do que somos. Ora, nós os velhos somos todos diferentes, e a inteligência e a burrice muitas vezes se misturam em nós, exatamente como acontece com os jovens.
- No entanto, o senhor mencionou olhos que viam tudo, referindo-se ao Juízo Final. Isso é porque pensa que haverá alguém para ver?
- Se quer dizer com isso que alguém que olhasse em torno de si seria capaz de ver tudo ao mesmo tempo, então certamente esse homem não existe. Em compensação, no que se refere a dar uma olhada em nosso ser e perceber tudo, então esse olhar tem que estar presente em cada um de nós, e cada um deve temer o julgamento que ele pronunciará sobre si mesmo. Assim, então, nossa consciência é que é nosso Deus. O outro mundo provavelmente não passa de fábula, mas fábula útil, já que nos leva a sentir medo. E precisamos tanto desse medo para não praticar más ações, precisamos tanto!... Você nunca sente medo?
- Não sei, vovô – disse o rapaz com voz indecisa. – Não sinto medo de praticar uma má ação: para isso meu pai e minha mãe me deram uma boa educação. Mas o que temo é não fazer nada de bom.
- Já é uma coisa ruim não fazer nada de bom, e você tem razão em ter medo disso. Aliás, o que é para vocês, os doutos, o espírito humano: também é energia?
- Sim, pode-se dizer que é energia, energia espiritual.
- E essa energia espiritual seria capaz de desaparecer? Tome por exemplo o livro que está lendo... Como se chama o autor?
- É um francês, Saint-Exupéry.
- Não conheço. Conheço Guy de Flaubert e Gustave Maupassant, mas esse Zupéry ainda não... Ainda vive?
- Não. Era um aviador, esborrachou-se no solo.
- Talvez seu corpo se tenha esborrachado com o avião, mas não sua energia espiritual, já que você, um homem de outra nação, está aqui, em plena taiga siberiana, a mil léguas de sua França natal, lendo suas obras. Não é verdade?
- Sim, é verdade.
- Então, pense um pouco em todos aqueles de nós, os homens que existiram desde que o mundo é mundo, e que foram bons, e que morreram, mas cuja energia espiritual vive conosco e influencia nosso destino, como o fazem os raios de sol. Nunca estive em sua Leningrado, mas já fui a Moscou. Há pessoas que chegam a Moscou com listas quilométricas de incumbências. Foram encarregados delas por parentes, amigos, conhecidos, vizinhos. Passam seu tempo correndo de uma loja a outra, com medo de que o tempo seja curto, conseguem comprar tudo o que lhes encomendaram, desde motores para barcos até sutiãs, e retornam sem terem visto a cidade. Quando voltam para cá, não se aguentam em pé. Claro está que também a mim trataram de impingir essas listas de encomendas, mas eu as desprezei. Pouco me importam os sutiãs, disse a mim mesmo. De qualquer maneira, já não tenho idade para desacolchetá-los. Mais vale percorrer os museus. No início, inscrevi-me numa agência para uma visita organizada, mas isso não me agradou. Tinha a impressão de ser um carneiro num rebanho. Pus-me a visitar a cidade sozinho. Às vezes ouvia a explicação de um guia, às vezes preferia ficar inteiramente sozinho a olhar, sem ninguém para mastigar-me a comida e forçar-me a engoli-la. Foi assim que um dia deixei-me ficar admirando um retrato que me impressionara muito. Era obra de um pintor estrangeiro. Em torno dela havia uma enorme quantidade de gente, e com razão. O quadro representava uma mulher, e essa mulher sorria, meio desdenhosamente, com ar misterioso. E aquela diaba continuava a sorrir-me através de todos esses séculos, enquanto eu permanecia plantado olhando para ela, com a impressão que algo passava dela para mim... É a energia que se transmite assim entre os homens. Eis o que um pintor conseguia fazer com um simples sorriso. Pensei então que tudo o que tinha sido feito de bom na Terra flutuava sobre nós como uma nuvem branca de energia espiritual e que isso agia sobre nós. E foi nessa nuvem branca que os homens começaram a imaginar Deus. Mas também existem más ações. Quantos tiranos, quantos pequenos déspotas sanguinários nosso mundo conheceu desde a sua criação! Também eles emitiam energia, e essa energia flutua igualmente sobre nós. Só que é como uma nuvem negra, que age sobre nós de outra maneira, e a essa nuvem demos, em nossas fábulas, o nome de diabo. É essa a explicação de tudo. Mas é de nossa consciência que depende saber se ajudaremos a nuvem branca ou a nuvem negra. E quanto àquele que não permitir que a nuvem branca aumente, dele só sairá uma fumaça vazia, que se dirigirá forçosamente para a nuvem preta afim de juntar-se a ela.
- Ele vai ficar com a cabeça completamente entulhada com todos os seus discursos – disse Tikhon Tikhonovitch, sonolento, apontando para o pretenso geólogo. – Escutei você o tempo todo e há uma única coisa que não compreendi. Eu, por exemplo, que não sou nem escritor, nem pintor, o que posso acrescentar à sua nuvem, já que não escrevo livros e não pinto quadros?
- Um sorriso, Tikhon Tikhonovitch, um sorriso – disse com suavidade o velho colhedor de cogumelos.

Ievgueni Ievtuchenko

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